O eclipse do pai

26/08/2004
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A complexa divisão social do trabalho, a participação das mulheres na vida pública e sua dura crítica ao patriarcalismo e ao machismo vigente, trouxeram uma crise à figura do pai. De certa forma surgiu uma sociedade sem pai ou do pai ausente. O eclipse da figura do pai, entretanto, desestabilizou a família tradicional. O aumento dos divórcios, importa reconhecer, acarretou consequências, por vezes, dramáticas. Estatísticas oficiais recentes nos EUA referem que 90% dos filhos fugidos de casa ou sem moradia fixa eram de famílias sem pai. 70% da criminalidade juvenil provinha de famílias onde o pai era ausente. 85% dos jovens em prisões cresceram em famílias sem pai. 63% de jovens suicidas tinham pais ausentes. A falta da figura do pai desestrutura os filhos/filhas, tira-lhes o rumo da vida e debilita-lhes a vontade de assumir um projeto consistente de vida. Precisamos trazer de volta o pai. Para resgatar a relevância da figura do pai, se faz importante distinguir entre os modelos de pai e o princípio antropológico do pai. Os modelos variam consoante os tempos e as culturas: o pai patriarcal, tirânico, participante, companheiro, amigo. O princípio antropológico do pai constitui estrutura permanente, imprescindível para o complexo processo de individuação humana. Em todos os modelos, age o princípio antropológico do pai, mas sem se exaurir em nenhum deles. A crise dos modelos libera o princípio paterno para novas expressões. A tradição psicanalítica tirou a limpo a importância insubstituivel do princípio antropológico do pai. A figura do pai é responsável pela primeira e necessária ruptura da intimidade mãe-filho/a e pela introdução do filho/a no mundo transpessoal, dos irmãos/irmãs, dos parentes e da sociedade. Nesse outro mundo, vige ordem, disciplina, autoridade e limites. As pessoas têm que trabalhar, realizar projetos e inventar o novo. Em razão disso, devem ter coragem, mostrar segurança e disposição para fazer sacrifícios. Ora, o pai é a personificação simbólica destas atitudes. É a ponte para o mundo transpessoal e social. Nessa travessia, a criança se orienta pelo pai-herói arquetípico que sabe, pode e faz. Se lhe faltar essa referência, ela se sente insegura, perdida e sem iniciativa. Pertence à figura do pai fazer compreender a diferença entre o mundo da família e o mundo social. Não há só aconhego, mas também trabalho, não só bondade mas também conflito, não apenas ganhos mas também perdas. Se os programas de entretenimento da televisão exacerbam o desejo, fazendo crer que só o céu é o limite, cabe ao pai mostrar que em tudo há limite, que todos somos incompletos e mortais. Operar esta verdadeira pedagogia desconfortável mas vital é atender ao chamado do princípio antropológico do pai, sem o que ele está prejudicando seu filho/filha, talvez de forma permanente. A partir de uma figura de pai bem realizada, a criança pode elaborar uma imagem benfazeja de Deus-Pai. A despeito das dificuldades, nunca faltam figuras concretas de pais que conhecemos, que se imunizaram da impregnação patriarcal e dentro da complexa sociedade moderna, vivem dignamente, trabalham duro, cumprem seus deveres de pais, mostram responsabilidade e determinação. Desta forma cumprem a função arquetípica e simbólica para com os filhos/as, função indispensável para que eles amadureçam o seu eu e, sem perplexidades e traumatismos, ingressem na vida autônoma, até serem pais e mães de si mesmos. Leonardo Boff é teólogo
https://www.alainet.org/fr/node/110429
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