Brincadeira inocente?

17/01/2005
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O mundo ainda não acordou do pesadelo das tsunamis que arrasaram boa parte dos países da Ásia, o Ano Novo ainda não estreou direito, espreguiçando-se lento por este indigesto janeiro e já nossos alertas interiores começam a soar com estridência. A foto do príncipe Harry, neto da rainha da Inglaterra, com uma suástica enorme estampada na manga da camisa, horroriza e assusta. Harry é um belo rapaz de 20 anos, louro como a mãe, a inesquecível e infeliz princesa Diana, e alto como o pai, o enigmático Príncipe Charles. Terceiro na linhagem de sucessão do trono britânico, Harry está constantemente sob a mira dos paparazzi e devia saber que qualquer gesto seu será imediatamente documentado e fotografado. O escândalo do tamanho e da nitidez da imagem pôs o belo príncipe na mira implacável da mídia e agora é assunto de conversa de boa parte do mundo informado e pensante. O príncipe desculpou-se em nota pelo gesto. E acha que com isso encerrou o assunto. Diversos grupos e figuras de expressão no mundo britânico e europeu, no entanto, não pretendem deixar a coisa parar por aí. Querem um pedido de desculpas formal e público, não apenas uma nota. Há pressão no sentido de que que Harry deveria visitar Auschwitz - o mais cruel dos campos de extermínio nazistas - como forma de retratar-se por ter usado um uniforme nazista em uma festa, a duas semanas do 60º aniversário da libertação deste campo na Polônia. Para agravar ainda mais a polêmica, a atitude do príncipe aconteceu dias antes da recepção que a rainha Elizabeth II oferecerá a sobreviventes de Auschwitz no Palácio de Saint James, em 27 de janeiro, quando o mundo lembra o Dia do Holocausto. Talvez o ato de Harry tenha sido impensado e sem intencionalidade. Pelo menos é isso que ele mesmo diz em seu pedido de desculpas. Mas há que concordar que é no mínimo irresponsável. E preocupante. Porque revela que há o perigo de que os sinais do grande genocídio, que há mais de meio século dizimou muitos milhões de vidas e pretendeu exterminar todo um povo, comecem a ser outra vez visíveis, banalizados, e lentamente, suavemente, voltem a infiltrar- se no imaginário e no cotidiano da opinião pública. Nossa geração, que viveu a ferida aberta do pós-guerra e até hoje treme diante da memória do holocausto, não pode deixar de ver na imagem do príncipe herdeiro do trono da Inglaterra, país cruelmente bombardeado pelas mortíferas forças de Adolf Hitler, uma perigosa reedição da década de 30, quando a ascensão do ditador nazista ao poder se dava sob os olhos críticos de alguns e incrédulos de outros, sem que muitos acreditassem que nada de maior poderia acontecer. E quando se deu a anexação da Checoslováquia, em 1938, e a onda de barbárie que se seguiu, todos se perguntaram estarrecidos como não se haviam dado conta antes? Na verdade, tudo começou com vários jovens da idade de Harry desfilando pelas ruas da Alemanha, e depois da Áustria, e depois de outros países, vestidos com uma roupa igual à do príncipe, com uma suástica do tamanho da sua pregada na manga. Desfilavam, cantavam hinos militares, e quando se percebeu estavam de armas na mão matando e sendo mortos. Harry não era nascido e, portanto, não pode lembrar-se. Mas ao mesmo tempo que sua roupa de festa se visibilizava sempre mais em uma Europa que olhava ainda sem entender muito o desempenho e o discurso do Fuehrer, havia outro grupo que também levava uma marca na roupa. A diferença é que era a marca da discriminação, do extermínio, do desprezo, da morte. A estrela que cada judeu era obrigado a levar cosida em sua roupa era a denúncia velada e mórbida da arrogância que a suástica desfilava e apresentava ao mundo enquanto o estado maior de Hitler maquinava a diabólica ³solução final². Foram muitos milhões, príncipe Harry. Milhões de crianças separadas dos pais, que nunca mais viram. Milhões de mães enlouquecendo ao terem os filhos arrancados de seus braços. Milhões de pessoas - gente como você, jovens da sua idade - levadas nos trens da morte ao encontro dos fornos crematórios, das câmaras de gás e dos laboratórios onde se faziam ³experiências². Está certo que você é um jovem e que pode ter cometido um gesto impensado. Mas você também é o herdeiro de um trono, um potencial estadista. E a autoridade implica fidelidade a valores e coerência de atitudes. Sua posição não lhe permite atitudes como esta. Sua festinha reabriu uma ferida para sempre hemorrágica em muita gente que sofreu e sofre até hoje as conseqüências do que representou aquele símbolo que você usou em sua camisa. Se o ódio e a vingança certamente não ajudam nem ajudarão as vítimas do holocausto, o esquecimento e a impunidade também não. Por isso, Alteza, seus críticos estão certos. Não basta o pedido de desculpas. O mundo agradeceria muito que seu pedido de perdão fosse realmente acompanhado de uma visita ao campo de concentração de Auschwitz; agradeceria se visse você inclinar a cabeça diante daquele outrora campo de horrores e hoje santuário de memória perpetuamente vigilante; agradeceria que você, como cristão que é, rezasse uma oração naquele lugar que se mantém aberto à visitação para que a humanidade nunca se esqueça do que ali aconteceu. A coisa é séria demais para brincadeiras, príncipe. Trata- se da sobrevivência da raça humana. Por favor, não nos deixe convivendo com a angústia de que a qualquer momento a serpente pode romper a casca do ovo e levantar-se, novamente ameaçadora, sobre o futuro que ainda conseguimos preservar. * Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio
https://www.alainet.org/fr/node/111270
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