Corpos emancipados, mentes subjugadas

18/02/2005
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A indústria cultural, tão bem dissecada pela Escola de Frankfurt, retarda a emancipação humana ao introduzir a sujeição da mente no momento em que a humanidade se livrava da sujeição do corpo. É longa a história da sujeição do corpo, a começar pela escravidão que durou séculos, inclusive no Brasil, onde foi considerada legal e legítima por 358 anos. Não apenas escravos tiveram seus corpos sujeitados. Também mulheres. Faz menos de um século que elas iniciaram o processo de apropriação do próprio corpo. A dominação sofrida pelo corpo feminino era endógena e exógena. Endógena porque a mulher não tinha nenhum controle sobre o seu organismo, encarado como mera máquina reprodutiva e, com freqüência, demonizado. Exógena pelas tantas discriminações sofridas, da proibição de votar à castração do clitóris, da obrigação de encobrir o rosto em paises muçulmanos à exibição pública de sua nudez como isca publicitária nos paises capitalistas de tradição cristã. No momento em que o corpo humano alcançava sua emancipação, a indústria cultural introduziu a sujeição da mente. A multimídia é como um polvo cujos tentáculos nos prendem por todos os lados. Tente pensar diferente da monocultura que nos é imposta via programas de entretenimento! Se a sua filha de 20 anos disser que permanece virgem, isso soará como ridículo anacronismo; se aparecer no Big Brother transando via satélite para o onanismo visual de milhões de telespectadores, isso faz parte do show. O processo de sujeição da mente utiliza como chibatas o prosaico, o efêmero, o virtual, o fugidio. E detona progressivamente os antigos valores universais. Ética? Ora, não deixe escapar as chances de ter sucesso e ficar rico, desde que sua imagem não fique mal na foto... Agora, tudo é descartável, inclusive os valores. E todos somos impelidos à reciclagem perpétua - na profissão, na identidade, nos relacionamentos. Nossos pais aposentavam-se num único emprego. Hoje, coitado do profissional que, ao oferecer-se a uma vaga, não apresentar no currículo a prova de que já trabalhou em pelo menos três ou quatro empresas do ramo! Eis a civilização intransitiva, desistorizada, convencida de que nela se esgota a evolução do ser humano e da sociedade. Resta apenas dilatar a expansão do mercado. A tecnologia multimídia sujeita-nos sem que tenhamos consciência dessa escravidão virtual. Pelo contrário, oferece- nos a impressão de que somos ³imperadores de poltrona², na expressão cunhada por Robert Stam. Temos tanto ³poder² que, monitor à mão, pulamos velozmente de um canal de TV a outro, configurando a nossa própria programação. Já não estamos propensos a suportar discursos racionais e duradouros. Pauta-nos a vertiginosa velocidade tecnológica, que nos mantém atrelados às conveniências do mercado. Nossa bóia de salvação reside, felizmente, na observação de Jean Baudrillard, de que o excesso de qualquer coisa gera sempre o seu contrário. É o caso da obesidade. O alimento é imprescindível à vida, mas em excesso afeta o sistema cardiovascular e produz outros defeitos colaterais. Há tanta informação que preferimos não mais prestar atenção nelas. A comunicação torna-se incomunicação. Ou comunicassão, pois cassa-nos a palavra, tornando-nos meros receptores da avassaladora máquina publicitária. Essa sujeição da mente vem no bojo da crise da modernidade que, desmistificada pela barbárie - duas guerras mundiais, a incapacidade de o capitalismo distribuir riquezas, o fracasso do socialismo soviético etc. -, passa a rejeitar todos os ³ismos². Os espaços da expressão da cidadania, como a política e o Estado, caem em descrédito. Tudo e todos prestam culto a um único soberano: o mercado. É ele a Casa Grande que nos mantém na senzala do consumo compulsivo, do hedonismo desenfreado, da dessolidariedade e do egoísmo. Felizmente iniciativas como o Fórum Social Mundial rompem o monolitismo cultural e abrem espaço à consciência crítica e novas práticas emancipatórias. * Frei Betto é escritor, autor de "Treze Contos Diabólicos e um Angélico² (Planeta) e ³Saborosa Viagem pelo Brasil² (Mercuryo Jovem ­ em parceria com Maria Stella Libânio Christo).
https://www.alainet.org/fr/node/111385
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