A conversão dos bárbaros
03/04/2005
- Opinión
" A trombeta da liberdade ja soou, e nao foi com um toque de recolher"
(George W. Bush, Le Monde, 10 de marco de 2005)
O New York Times publicou, recentemente, uma matéria sobre o funcionamento das
20 agencias federais americanas encarregadas pela administração Bush, de formar a
opinião pública nacional e internacional através de matérias e entrevistas de
autoridades, pré-fabricadas e distribuídas prontas para os jornais e as televisões de
todo mundo. Resultado: cada vez mais, a grande imprensa americana e européia se
move de forma sincronizada, e às vezes se tem a impressão que os fatos se
transformam em acessórios de grandes campanhas e mobilizações publicitárias, em
escala global. Isso ocorreu, por exemplo, com a recente reunião de Bruxelas - no dia
22 de fevereiro passado - entre o presidente Bush e os governantes europeus. As
notícias foram substituídas pelas imagens, e as divergências efetivas foram trocadas
por uma imagem e um sentimento publicitário de reconciliação e fraternidade, entre
os Estados Unidos e a Europa, apesar de que os desacordos entre americanos e
europeus tenham permanecido quase os mesmos, depois da reunião de Bruxelas. Logo
depois, uma nova "onda sentimental" tomou conta da imprensa dos dois lados do
Atlântico, uma espécie de autocongratulação coletiva pela "redemocratização do
Grande Oriente Médio", anunciada pelo presidente norte-americano, numa
conferência na Universidade de Defesa de Washington, feita no dia 8 de marco. "O
degelo começou e a historia evolui rapidamente [.] as trombetas da liberdade estão
soando." (Le Monde, 10 marco, p;3). Alguns dias antes, a secretária de estado
americana, Condolezza Rice, afirmou com todas as letras numa cadeia de televisão
americana, que "esta era uma vitória do espírito humano, da vontade do homem ser
livre", e o jornal New York Times, que apoiou os democratas nas últimas eleições
presidenciais, fez uma homenagem ao presidente Bush, "a quem se deve atribuir -
segundo o jornal - uma boa parte do crédito por estes novos acontecimentos". Numa
linha ainda mais radical, a Revista Newsweek, propôs uma revisão da história recente
e o reconhecimento da "visão histórica" do presidente Bush. Na mesma hora, o
senador Edward Kennedy, que criticou a invasão do Iraque, reconheceu o crédito de
Bush, nas mudanças positivas do Oriente Médio. Quase nos mesmos dias, a imprensa
européia discutiu exatamente o mesmo assunto, ainda quando tenha mantido uma
posição mais analítica e discreta. Como conseqüência, por todo lado se difundiu
instantaneamente a idéia e o sentimento positivo de que o mundo estaria vivendo uma
repetição das "revoluções de veludo" da Europa Central, do início da década de 90, só
que agora, no Afeganistão, na Ucrânia, no Líbano, na Palestina, no Egito, no Iraque e
na Arábia Saudita. Por todos os lados, estaria em curso um movimento massivo e
espontâneo, quase telúrico, de sublevação das massas populares - em busca da
liberdade - desencadeado a partir do Iraque, o que acabaria justificando ex-post as
guerras desencadeadas na região, pelo presidente Bush - verdadeira origem - ainda
que trágica - desta verdadeira "primavera árabe".
No momento, a opinião pública internacional parece perplexa frente ao esta
acontecendo, e por isso, mais do que nunca, é preciso manter a objetividade. E nesse
caso, a primeira coisa importante que se deve entender é que, de fato, o Oriente Médio
e a Ásia Central foram abalados profundamente pelas guerras do Afeganistão e do
Iraque. Alias, não poderia ter acontecido outra coisa, depois de duas guerras
arrasadoras, numa mesma região e num lapso de apenas dois anos. No mínimo, ficou
claro em toda a região do "Grande Oriente Médio", que os Estados Unidos vieram
para ficar, e que ninguém desafia hoje o poder americano impunemente, exatamente
como ocorreu, na mesma região, com o poder imperial britânico, nos tempos da
Rainha Vitória. Portanto, não há como se enganar, porque a presença militar
americana na região, a partir de agora, terá um papel decisivo nos desdobramentos da
política interna dos países de toda a região. Mas isto não significa necessariamente
que o "Grande Oriente Médio" vá se transformar numa região democrática, segundo a
vontade e o modelo anglo-saxão. As eleições do Afeganistão confirmaram o governo
escolhido pelos invasores, mas sua autoridade vai pouco além dos subúrbios de Kabul,
num país onde quase todas as demais regiões voltaram a ser controladas pelos seus
antigos "senhores da guerra" pelos produtores de papoulas para a produção de heroína
e pelos próprios talibãs, que pouco a pouco vem retomando suas velhas zonas de
influência. As eleições no Iraque, por sua vez, só se realizaram porque foram exigidas
e garantidas pelo Ayatolla Sistani, no momento em que as autoridades norte-
americanas pensavam em postergá-las. Foi uma vitória e uma revanche da maioria
xiita, de influência iraniana, que chega ao poder de forma paradoxal, pelas mesmas
armas americanas que ameaçam invadir e derrubar o regime xiita do Iran, logo do
outro lado da fronteira. As mudanças na Palestina e no Líbano ocorreram na
seqüência de duas mortes que ainda não foram esclarecidas: a doença de Yasser
Arafat, e o atentado contra o antigo primeiro ministro libanês, Rafik Ariri. Duas
mortes que provocaram, num primeiro momento, um deslocamento político, na
direção dos interesses estratégicos americanos, muito mais do que um processo de
redemocratização. Mas mesmo assim, no caso da Palestina, as negociações com Israel
estão praticamente paralisadas, desde a cúpula de Charm El-Cheikh, no Egito, no dia
8 de fevereiro. E, no caso do Líbano, a "revolução da cidra", foi seguida
imediatamente por massivas manifestações xiitas, lideradas pelo movimento
Hizbollah, e pela volta ao governo do primeiro-ministro "pro-sírio" de Omar Karameh,
que havia renunciado há uma semana, sob pressão do movimento popular de oposição,
reabrindo o conflito que foi responsável pela violenta guerra civil do Líbano, na
década de 80. No Egito e na Arábia Saudita, aliados incondicionais e protetorados
militares dos Estados Unidos, o anúncio do presidente Mubarak de eleições
presidenciais competitivas foi muito mais impreciso e encomendado do que as
eleições locais realizadas pelas autoridades sauditas, sem a participação da população
feminina. No resto da região, não se escuta uma só nota da "trombeta libertaria" do
presidente Bush, nos territórios do Paquistão, da Tunísia, da Jordânia, do Yemen, do
Kuwait, ou mesmo, no caso da Líbia e da Argélia. E só olhar para o mapa geopolítico
da região, para ver que até agora, os movimentos populares pró-democratização, só
aparecem e se expandem dentro dos países que não são aliados dos Estados Unidos, e
que além disto, em todos os casos, essas "explosões democráticas" têm sido obra de
grupos ou minorias nacionais ou religiosas que foram reprimidas e que agora estão
sendo "libertados" pela geopolítica americana, dentro da região. Esta combinação de
interesses e de estratégia "revolucionaria" não é completamente nova. Foi concebida
durante a Primeira Guerra Mundial, pelos próprios ingleses e nesta mesma reg
Deste ponto de vista, a experiência recente da "revolução laranja", na Ucrânia, é
verdadeiramente paradigmática, porque ocorreu num território situado historicamente
dentro da zona de influência política e econômica "indiscutível" da Rússia, mas
contando com uma grande população de origen polonesa. A Ucrânia nunca foi
considerada parte da "Europa Central", libertada pelas "revoluções de veludo", mas
depois de 1991, os Estados Unidos tem demonstrado uma firme decisão de retirar
também este território da influencia russa, o que representaria uma mudança radical
na geopolítica eurasiana dos dois últimos séculos. Alem disto, representaria uma
derrota geoeconômica muito importante, para a Rússia, porque a Ucrânia, junto com a
Geórgia e a Moldavia são hoje o principal corredor de comunicação, entre o mar
Negro e o mar Báltico e, portanto, do escoamento do petróleo do Mar Cáspio, do
maior interesse das petroleiras e do governo russo. Em síntese, trava-se hoje na
Ucrânia uma pesadíssima batalha geopolítica e geoeconômica entre os Estados
Unidos e a Rússia, que esteve por trás das ultimas eleições presidenciais ucranianas, e
do nascimento midiático da "revolução laranja". Na Ucrânia, como nos demais paises
envolvidos nesta história, existem forças represadas há muito tempo, e que
pressionam por mudanças políticas somando-se as pressões externas e aos interesses
estratégicos dos Estados Unidos e da União Européia que apontam, na verdade, para
uma mudança imediata da correlação de forças dentro de cada um desses paises, mas
não necessariamente, para a formação e consolidação de regimes democráticos. Como
no caso da estratégia dos "contra" utilizada por Ronald Reagan, na década de 80, para
lutar contra, e derrubar governos e regimes contrários aos interesses norte-americanos.
Em síntese: o presente não é nada animador, ao contrário do que diz a grande
imprensa, os desdobramentos futuros são rigorosamente imprevisíveis, e os
ensinamentos passados da história não falam muito bem das "democracias ocidentais".
Aliás, neste sentido, o presidente Bush não e um pioneiro, dentro dos Estados Unidos.
Muito antes dele, Theodore Roosevelt invadiu o Haiti, em 1902, com a intenção de
impor-lhe um regime democrático. Uma história conhecida e que ainda não terminou,
um século depois.
https://www.alainet.org/fr/node/111702?language=en
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