Querido João Paulo II

06/04/2005
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Fiquei constrangido com a exibição pública de sua figura combalida pelaenfermidade. Será que a Cúria Romana queria nos convencer de que o senhor era um super-homem, impedindo-o de cuidar tranqüilamente da saúde? Jesus não entrou em Jerusalém montado num jumento, contrapondo-se ao cavalo branco dos imperadores? Por que não o ajudaram a renunciar, como fez Celestino V em 1294, hoje contado entre os santos da Igreja Católica? Será que convinha à Cúria mantê-lo à frente da barca de Pedro, para que seus cardeais pudessem exercer o poder de fato? Foi em 1980 que nos conhecemos, quando de sua primeira visita ao Brasil. Levei um grupo de sindicalistas, entre os quais Lula, para encontrá-lo no Colégio Santo Américo, em São Paulo. Chovia a cântaros e, ensopados e com frio, esperamos na rua a permissão de entrada. Entardecia quando dom Luciano Mendes de Almeida, então presidente da CNBB, nos conduziu à capela. Havia ali pouca luz, e seu secretário particular, o padre Stanislaw Dziwisz, entrou carregando uma bandeja repleta de saquinhos de plástico transparente. Faminto, Lula aceitou um, abriu e pôs na boca o que parecia amemdoim. Era terço. O senhor abençoou os líderes de greves operárias e deixou clara sua posição contrária à ditadura militar que nos governava. No ano anterior, eu o vira em Puebla e, nos seguintes, em Roma, na Nicarágua e também em Cuba que, em 1998, mereceu a sua visita e seus elogios aos avanços na saúde e na educação. Qual a impressão que guardo de sua pontificado? Sempre o defini como um pontífice com a cabeça de direita e o coração de esquerda. Conservador em matéria de doutrina, admirável era a sua sensibilidade para as questões sociais. Sob o seu governo a Igreja Católica não fez avançar o Concílio Vaticano II, manteve as mulheres fora das funções eclesiásticas, condescendeu com os casos de pedofilia do clero, reagiu reticente à corrupção do arcebispo Marcinkus, condenou o homossexualismo como doença, proibiu o uso de preservativos e qualquer debate sobre o sacerdócio de homens casados. Já no âmbito social sua atuação surpreendeu: apoiou as greves antitotalitárias na Polônia e no Brasil; exigiu reforma agrária do presidente Sarney; acolheu Yasser Arafat, apoiando a causa palestina; manteve-se distante da Casa Branca; condenou a agressão dos EUA ao Iraque. Quando me perguntam o que passa com a Teologia da Libertação, respondo que, felizmente, ela chegou ao Vaticano. Há vinte anos apenas os teólogos da libertação falavam de neoliberalismo, dívida externa, efeitos negativos da globalização. Nos últimos anos, todos esses temas estão presentes em seus pronunciamentos e documentos. Quantas vezes sua voz não se levantou para pedir a anulação da dívida das nações mais pobres! Muitos identificam como a principal marca de seu pontificado a queda do Muro de Berlim. Não por seu anticomunismo. E sim por seu antitotalitarismo. Jamais sua atitude contrária à estatocracia socialista significou aprovação do capitalismo. Sua doutrina social propõe a globalização da solidariedade nesse sistema que exalta a competitividade como valor supremo. Agora que o senhor descansa em paz, a Igreja se agita na escolha de seu sucessor. Pressinto que será uma eleição difícil. Os italianos vão querer retomar o monopólio do papado, que o senhor quebrou em 1978, após quinhentos anos. Porém, muitos sabem que a Igreja precisa abandonar seu eurocentrismo se quiser evangelizar os mundos africano e asiático. Um papa negro ou de olhos puxados representaria um forte sinal de mudança de rumo. Quais os desafios que aguardam o novo pontífice? Primeiro, conquistar essa empatia que o senhor tinha com a mídia e o público. E como é mal-humorada e carrancuda a maioria dos cardeais! Depois, abrir o debate interno sobre a moral sexual, as relações de gênero, o celibato obrigatório e o papel da mulher. Se o valor supremo é o amor, por que ainda hoje a Igreja considera a procriação a finalidade primordial do matrimônio? E quem convencerá os jovens a evitar a Aids pela abstinência sexual? Há no mundo uma profunda fome de Deus. As pessoas querem mais espiritualidade, profundidade, ética, solidariedade. Querem a paz como filha da justiça. Nisso a Igreja joga um papel preponderante. Tomara que o novo papa seja como Jesus, que anunciou a todos o Deus da vida e do amor a partir do seu compromisso com os mais pobres. Fora dos pobres a Igreja não tem salvação. * Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de "Mística e Espiritualidade" (Garamond), entre outros livros.
https://www.alainet.org/fr/node/111724
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