O Papa é nosso rei

06/04/2005
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Estamos em plena era monárquica, alimentada pela morte de João Paulo II e a eleição do novo papa, o casamento do príncipe Charles e a sucessão no Principado de Mônaco. Há em nós uma nostalgia do reino, infundida pelas histórias infantis, pelo imaginário coletivo dessa nação que já foi império e cujo povo consagra rei um jogador de futebol e um cantor, e rainha uma animadora de auditório. No carnaval, os desfiles de escolas de samba costumam ser tão suntuosos quanto as cerimônias reais em países onde há nobreza. Fora a decisão da copa do mundo em 1970, nada superou a audiência televisiva no Brasil por ocasião das visitas do papa ao nosso país. Há muitos fatores que influem no nosso inconsciente. O papa é o único e o último monarca absoluto do Ocidente. Não está obrigado nem a respeitar as próprias leis que promulga. A fé católica o reveste de sacralidade. Ele representa Jesus na Terra. E o dogma reforça o seu poder: desde o século XIX é considerado infalível quando imprime sua autoridade em questões de fé e moral. Todos os poderes são ampliados pela liturgia que o cerca. Não há governante sem protocolo e nem este sem rubricas. No caso do papa, a liturgia resulta da função que ocupa, tributária do Império Romano. É chamado de Sumo Pontífice, título herdado de César; ao ser eleito é coroado; à sua volta os cardeais fazem às vezes do senado romano. Acrescem-se a isso a natureza religiosa da liturgia católica; a suntuosidade do Vaticano, ornado com esculturas e pinturas de artistas imortais; a pompa da basílica de São Pedro, o maior templo da Igreja Católica, com 74 m de comprimento. Essa magnificência é reforçada pelo seu caráter paradoxal. Monarca absoluto, o papa não dispõe de tropas; seu poder é mais moral que legal; sua autoridade transpõe fronteiras e chega ao coração de fiéis em todos os recantos do mundo; ele é capaz de descer de seu trono para abraçar crianças, indígenas, miseráveis, enfermos e outros socialmente marginalizados. Sempre estive convencido de que telenovela não faz sucesso na Europa porque lá existem, ainda, suficientes casas reais para que o público prefira trocar a realidade pela fantasia. Nada pode dar mais ibope que as trapalhadas do príncipe Charles, a simpatia da casa real da Espanha, o fausto lúdico de príncipes e princesas de Mônaco, o esplendor da rainha Elizabeth II e a divinização da figura do papa, como se ele tivesse a obrigação de ser imune à doença, à velhice, ao peso dos anos e do cargo. Em conferência na Universidade de Roma, poucos dias antes da morte de João Paulo II, me perguntaram sobre o sincretismo da religiosidade brasileira. De que modo convivemos aqui com esse cristianismo que mescla tradições indígenas e africanas, onde devotos de Santa Bárbara e de São Jorge se confundem com os de Iansã e de Ogum? Respondi que o nosso sincretismo não difere do que impera no Vaticano. Ficaram perplexos. Expliquei: a religiosidade vaticana está impregnada de elementos judaicos e pagãos, herdados do Império Romano e da nobreza européia. Basta conferir seus símbolos e rituais. O grande desafio para o papa é como transparecer, no mundo de hoje, não como um monarca religioso, mas sim como discípulo de Jesus, que conviveu com os pobres, entrou em Jerusalém montado num burrico, morreu na cruz como prisioneiro político. Essa a diferença entre o reino de César e o de Deus. O Vaticano oscila entre dois pesos e duas medidas. De um lado, é a sede de um monarca confinado numa área de apenas 0,44 km2 e, no entanto, com 1 bilhão de súditos mundo afora. De outro, traz nos ombros a responsabilidade de tornar o Evangelho boa nova para todos. E Jesus ensina que fora dos pobres a Igreja não tem salvação. * Frei Betto é escritor, autor de ³Gosto de Uva² (Garamond), entre outros livros.
https://www.alainet.org/fr/node/111725
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