Orfandade
09/04/2005
- Opinión
O mundo inteiro acompanhou a romaria interminável que desfilou lenta e paciente na basílica de São Pedro em Roma para passar diante do corpo de João Paulo II. Mais de duzentos chefes de estado chegaram do mundo inteiro para o enterro. Os cardeais que participarão do conclave viajaram dos quatro cantos do mundo. E em meio a todo este movimento, o povo desfilou para ver o Papa, uma última vez. Milhares passaram dezesseis horas na fila, o dia inteiro, sem comer nem beber, imantados por aquele corpo que na morte parecia continuar tendo o carisma de atrair multidões e comunicar mensagens que arrastam o mundo atrás de si. A morte do Papa teve um impacto raras vezes visto nos tempos que correm. A lenta e implacável doença que consumia o corpo antes atlético do polonês Karol Wojtyla e que o vergava e enrijecia seus músculos não fez com que os fiéis dele se afastassem. Pelo contrário, quanto mais envelhecia e adoecia, mais e mais carinho parecia despertar nas pessoas. Sua presença, mesmo limitada fisicamente, continuava atraindo, comovendo, enternecendo aqueles todos que, ao vê-lo no estágio terminal de sua vida, se aglomeraram ordeira e comovidamente na Praça de São Pedro esperando notícias, chorando e rezando. Raras vezes se viu na história recente do Cristianismo uma expressão tão concreta da frase do livro dos Atos dos Apóstolos ao descrever a primeira comunidade cristã: ³A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma.² Pareciam respirar cadenciados ao mesmo ritmo todos aqueles e aquelas que cantavam de alegria cada vez que o Papa aparecia na janela e os abençoava; e que no sábado, dia 2 de abril, choraram silenciosa e pacificamente ao receber a notícia de sua morte. Mas não apenas os cristãos sentiram o golpe da morte do Papa. Pessoas de outros credos, chefes religiosos de outras confissões juntaram-se serena e sinceramente à longa celebração de sua morte. E não só pessoas de fé foram movidas interiormente pelo silenciar da voz de Karol Wojtyla. Ateus e agnósticos se sentiram interpelados pelo desenlace da vida deste homem cheio de coragem, que tantas batalhas lutou e não fugiu diante da última e derradeira, expondo sua decadência física e sofrimento diante de todos. A orfandade que se abateu sobre a humanidade inteira, Oriente e Ocidente, nestes dias que se seguem à morte de João Paulo II conseguiu unir todas as diferenças, criando uma ao mesmo tempo dolorosa e bela comunhão. Entre os credos e as raças, entre os poderosos e os cidadãos comuns, entre as gerações e as hierarquias, entre os que crêem e os que não crêem. A referência paterna, a liderança indiscutível que a figura do Papa representava, enquanto defensor da paz, da justiça, do amor, valores tão escassos nos tempos em que vivemos, deixou um vazio profundo e abissal ao calar-se. E o mundo passeia, órfão, diante de seu corpo imóvel, prestando-lhe respeitosamente a última homenagem. Em momento tão solenemente único, acontecem fatos extraordinários na sua singeleza, semelhantes àqueles que a Bíblia chama teofânicos, ou seja, manifestativos da presença de Deus. É quando a ordem natural das coisas se inverte: o sol se obscurece, a terra se abre, os mortos saem de seus túmulos. É quando os velhos começam a ter sonhos e os jovens a ficar maduros. É quando a mulher busca o homem, e o homem geme em dores de parto. É quando o crente se encontra perdido e sem palavras, e tem que ser evangelizado pelo ateu. Assim me sinto eu, católica desde o berço, diante do pungente texto de Arnaldo Jabor sobre a morte do Papa. Assim me espanto, perplexa, ao ver o coração do mistério cristão intuído e expresso de forma densa e certeira por este que se declara ateu desde sempre. Seu entendimento da última aparição de João Paulo II na janela do Vaticano, tentando falar e contorcendo-se de dor expressa com rara beleza toda a profundidade e a extensão do mistério central do cristianismo: o de que Deus se despoja de sua grandeza e se faz carne vulnerável e mortal. O que muitos teólogos talvez não consigam expressar com seu complicado discurso, Jabor o diz com palavras nuas e verdadeiras. Diante da dor assumida e confessada por aquele que deplora sua solidão de ateu, enquanto contempla as multidões unidas e congregadas em torno do Papa, sinto também sua a orfandade que é nossa. E não resisto ao desejo de chamá-lo de irmão e dar-lhe as boas-vindas à comunhão que também lhe é oferecida. * Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio
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