Conversando com o diabo

26/04/2005
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A
-‹ Você existe mesmo? ‹ Ora, não lembra o que disse o cardeal Ratzinger? "Para os fiéis cristãos, o Diabo é uma presença misteriosa, mas real, pessoal e não-simbólica". ‹ Talvez concorde com o último predicado. ‹ Por quê? ­ perguntou o Diabo. ‹ Porque símbolo, reza a etimologia da palavra grega, é o que une, agrega. O antônimo é diabolos, o que desagrega. Desculpe a minha falta de fé. ‹ Em mim ou no cardeal? ‹ Nos dois. Na ausência de uma boa dúvida cartesiana, fico com Spinoza: se você, contra a vontade de Deus, induz os seres humanos a praticar o mal, e ainda nos condena à danação eterna, que diabos de deus é esse que o deixa impune e ainda permite que sejamos punidos por você? Afinal, você é inimigo ou cúmplice de Deus? ‹ Não esqueça, fui criado por Deus. ‹ Não como demônio, mas como anjo - observei. ‹ Sim, agora sou um anjo decaído, pois fiz com que a primeira criatura, Adão, se voltasse contra o Criador. Adão tornou-se cativo de meu reino. Jesus teve que morrer na cruz para resgatá-lo. ‹ Não me venha com esse papo de Mel Gibson - reagi. ‹ Você bem sabe que Deus tinha o poder de arrancar Adão do reino do mal sem precisar mandar o seu Filho e deixar que sofresse tanto. Qual pai se compraz com o sofrimento do filho? Jesus veio nos ensinar o amor como prática de justiça. E foi vítima da injustiça estrutural que predominava em sua época, como ainda hoje. ‹ Deus tentou me enganar ­ queixou-se o Diabo. ‹ Manteve em segredo o nascimento de Jesus. Mas à medida em que o Filho crescia, fui percebendo quão perfeito ele era. Quis, portanto, tê-lo ao meu lado. ‹ Você tentou seduzi-lo três vezes e quebrou a cara. Prometeu-lhe os reinos deste mundo, mas ele preferiu o de Deus; mandou que transformasse pedras em pães, mas ele não acedeu à primazia dos sentidos; quis vê-lo voar como os anjos, atirando-se do pináculo do Templo, mas ele optou pelas vias ordinárias, e não pelos efeitos extraordinários. ‹ Admito que não consegui dobrá-lo aos meus caprichos. Mas desencadeei as forças do mal contra ele, até que morresse na cruz. ‹ Mas ele ressuscitou, venceu o mal ­ frisei. ‹ Sim, Deus me enganou. ‹ Como assim? ‹ O homem Jesus era a isca na qual Deus escondeu o anzol da divindade de Cristo. Ao perceber isso, era tarde demais. ‹ Por que Deus, em vez de sacrificar seu Filho na cruz, não matou você? ‹ Isso é um segredo entre mim e Deus. ‹ Não posso acreditar que Deus comparta qualquer coisa com você, como as almas de seus filhos e filhas, e nem mesmo a existência. Ou acha que vou acreditar que a falta de Adão tenha sido mais grave que o assassinato do Filho do Homem na cruz? ‹ Eu sou a contradição de Deus ­ vangloriou-se o Diabo. ‹ Você já leu Robinson Crusoé? Lembra da "catequese" que ele tentou impingir em Sexta-Feira? Este indagou: "Se você diz que Deus é tão forte, tão grande, ele não é mais forte e mais poderoso que o Diabo?" Crusoé confirmou. Então Sexta-Feira concluiu: "Por que Deus não mata o Diabo para ele não fazer mais maldade?" Embaraçado, Crusoé fingiu que não ouviu. ‹ O que você responderia? ­ indagou o Diabo. ‹ Diria que Deus não pode matar o que não criou. Você é uma criação das religiões arcaicas que dividiam o mundo entre as forças do bem e do mal, o que a Bíblia rejeita, embora alguns políticos atuais queiram justificar seus ímpetos bélicos e suas ambições imperialistas na base desse dualismo. ‹ Mas eu figuro na Bíblia! ­ exaltou-se ele. ‹ O que não significa que de fato exista, assim como Adão e Eva também estão citados lá e nunca existiram. Adão significa "terra" e Eva, "vida". A Bíblia, como um livro em linguagem popular, antropomorfiza conceitos abstratos. Ou você acha que Elias subiu ao céu num carro de fogo e que existe o dragão citado no Apocalipse? ‹ Então você não crê na minha existência? Como explica tanto mal no mundo? ‹ Você mente tanto e tão bem que até faz a gente tender a acreditar que existe. O mal é uma decorrência da liberdade humana. Eternizar o castigo é eternizar o mal. Somos chamados a responder livremente ao amor de Deus. E onde há amor, há liberdade, inclusive de se fechar a ele. ‹ E no inferno, você acredita? ‹ Fico com Dostoievski, "o inferno é a incapacidade de não poder mais amar". Borges frisa que "é uma irreligiosidade" crer no inferno. ‹ Mas eu sou real ­ insistiu o Diabo. ‹ Deus não tem concorrente ­ rebati. ‹ Nós inventamos você para nos eximir de nossas responsabilidades e culpas, por nem sempre corresponder ao que Deus espera de nós. * Frei Betto é escritor, autor de "Treze contos diabólicos e um angélico" (Editora Planeta)
https://www.alainet.org/fr/node/111833
S'abonner à America Latina en Movimiento - RSS