O que Deus vomita de sua boca
06/06/2005
- Opinión
Nos últimos dias, talvez poucas palavras tenham ocupado tanto o noticiário dos jornais e a mídia em geral, em nosso país, quanto “corrupção”. Postos a nu e denunciados por diferentes instâncias, multiplicam-se os casos em que se reconhecem a corrupção e os corruptos, destruindo com sua perversa ação o Brasil que sonhamos e que esperamos. O dicionário Aurélio define corrupção como ato ou efeito de corromper; decomposição, putrefação. Por sua vez, o verbo corromper tem o sentido de tornar podre; estragar, decompor. O adjetivo corruptor significa aquele que corrompe, e também que altera textos, falsifica, suborna. Coerentemente com essas definições, diríamos que a corrupção denota decadência ou perversão; golpeia na raiz de uma coisa, tirando-lhe o estatuto de viva. Aquela pessoa ou coisa apodrece, ou se deteriora na sua raiz mais profunda. Não tem mais as reações ou o comportamento que dela se esperava, segundo o seu estatuto de pessoa ou coisa. Passa a não ser quando, na verdade, já tinha passado pelo ser. Nas Escrituras judaico-cristãs, este fenômeno aparece desde o livro do Gênesis que, no capítulo 6, narra o desgosto de Deus com sua criação e com a terra por ele instaurada como morada do ser humano justamente por causa da corrupção em que esta caiu. E os textos vão suceder-se, tratando do tema em relação a Deus e ao outro. A corrupção primeira é afastar-se do verdadeiro Deus e adorar um ídolo fabricado por mãos humanas, que corrompe o desejo e a vocação do ser humano, distanciando-o daquilo para o que foi feito: o culto ao verdadeiro Deus e a prática de sua aliança de justiça e amor, para corromper-se, cultuando o que é oco, vazio, podre, fonte de deterioração e morte, e não de vida. A essa corrupção segue-se outra, que vai de par com a primeira: a da relação com o outro, com o próximo. A injustiça, que faz com a idolatria perverso binômio, será implacavelmente denunciada pelos profetas que deixarão claro diante do povo para onde estão deixando conduzir suas vidas: para longe da verdade, da luz, da transparência e do amor. Aparece claro, portanto, na fala dos profetas e dos homens de Deus que, apesar da corrupção do povo, Deus não se corrompe nem castiga o povo na medida de suas faltas e na proporção da destruição que seus atos engendram. E mesmo que o povo se afaste pela idolatria e pela injustiça, ainda que o coração do Senhor se encolerize, o amor acaba prevalecendo e o desejo de vida também. A corrupção, portanto, corrompe tudo e todos, menos a Deus. Jamais tem poder sobre Ele. O homem bíblico do Primeiro Testamento compreenderá, portanto, que só em Deus, o único incorruptível, pode depositar sua esperança de que a corrupção não destruirá sua vida, sua carne não apodrecerá entregue à decomposição e aos vermes, mas que está destinado a uma vida que não termina. boa nova trazida por Deus da ressurreição de Seu Filho Jesus do poder da morte e da corrupção. No Novo Testamento, a corrupção aparece quase sempre relativa à morte e ao processo de decomposição do cadáver. Ressalta, assim, a grande boa nova trazida por Deus que, através da ressurreição de Seu Filho Jesus, resgata-o do poder da morte e da corrupção. A fé cristã, desde o início afirmou que a morte não foi o fim de tudo para Jesus, pois Deus Pai não permitiu que ela o retivesse em seu poder. O poder de Deus foi mais forte que a corrupção humana, que matou Jesus, e do que o lento e devorador trabalho da corrupção cadavérica sobre seu corpo. Aquele corpo e aquela vida não se destinaram aos vermes e à decomposição. Foram ressuscitados, gloriosos, e agora estão sentados à direita de Deus, a tudo julgando e sendo o único e fundamental paradigma de uma vida humana incorrupta e verdadeira. A corrupção e o pecado, que tristemente presenciamos em nosso cotidiano de cidadãos, está presente desde que o mundo é mundo. Deus criou-nos em liberdade, deixando-nos escolher nosso caminho e traçar nosso destino. Como seres livres que somos, nem sempre conseguimos fazer o bem que queremos, mas muitas, inumeráveis vezes, praticamos o mal que não queremos. Corrompemo-nos e caímos na podridão e na destruição do não-ser em oposição ao ser que Deus deseja que sejamos e para o qual nos criou com todo o amor de seu coração de Pai. A corrupção nos reveste com o morno líquido do engano e da podridão. E aos mornos, dirá o Apocalipse, Deus vomita de sua boca. Que não construamos uma nação que mereça ser expelida da boca do Criador, fonte de toda vida. Este deve ser nosso constante alerta hoje, aqui e agora. - Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape
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