De costas para o futuro
25/08/2005
- Opinión
Sei que fica essa sensação de que nada avança, o país emperra, os
políticos urubuzam em torno da carne fétida, e no fundo da alma o
travo amargo da desesperança. Ah, como a desilusão atesta que o nosso
alimento cotidiano não é o pão, nem o carinho escasso que oxigena o
afeto. É a quimera, essa convicção arraigada de que o sonho é o
prenúncio da realidade.
São tantas as dores, e também os temores, e fico a perguntar onde
está o pouso em que descansaremos dessa longa jornada adentro da
história e, dessedentados, cessaremos a árdua procura ao vislumbrar
no horizonte as portas do Jardim do Éden. Pode-se ver, no amor
fracassado ou na causa abortada, o cristal fragmentado no chão,
reduzido a incontáveis brilhos prateados. No entanto, esse quase
imperceptível reflexo comprova a pertinência do Sol.
No amor abre-se a ferida de uma perda que arrasta junto o que havia
de melhor em nosso próprio íntimo. Ali não cabe a razão, a lógica
formal, o consolo da retórica justificativa. Porque o afeto extrapola
a geometria dos argumentos e transborda pelas estreitas margens da
racionalidade. Revolve a subjetividade com a sua fina e longa lâmina
invisível. Sobra o buraco negro descompensado, sugando mágoas,
impulsos vingativos e desejos mórbidos, como se no reverso do amor a
paixão se convertesse em possessão, demarcando os limites em que um
se torna senhor de domínio do outro.
O dom se faz apego nessa projeção doentia que impede investir na
felicidade do outro, suprema dádiva de quem ama sem mercadejar afetos.
É a cruz dos pais da criança portadora de deficiência ou do filho
drogado, esse dar incessante, esse desdobrar cotidianamente o coração,
na expectativa de que o outro retorne, primeiramente não a quem o ama,
mas a si mesmo. Então o fardo se torna leve e o peso suave. Como por
milagre brota esse sentimento ressurrecional de que vale a pena viver
para que outros tenham vida.
A trajetória de uma nação não difere muito desse tortuoso itinerário
pessoal. Maculada a utopia, conspurcada a esperança, é natural essa
sensação de que é inútil lutar, como se a pedra de Sísifo pesasse
permanentemente em nossas costas e a poeira do aclive cegasse os
nossos olhos.
Mas a memória vem em nosso socorro. Resgata tantas histórias e
vitórias, o que nos permite hoje enquadrar tortura e escravidão na
tétrica galeria dos crimes hediondos, e quiçá amanhã a pobreza e a
fome figurem ali como graves violações dos direitos humanos. Há
avanços, a ditadura envergonha-nos o passado, cidadania e democracia
fortalecem-se nessa delicada renda onde se entrelaçam movimentos
sociais, e a ética ensolara indignações.
Ainda que todos soframos dessa deletéria herança do pecado original,
e alguns de nós permitam que a fraqueza congênita se apresente
vulnerável ao vírus da corrupção, são as causas que justificam esse
nosso empenho em não ceder às tentações da indiferença, do ceticismo
inócuo, do gesto de Pilatos tentando desculpabilizar-se ao entregar o
justo às feras.
As causas são melhores que as pessoas, alertava Brecht, e se
legitimam por abarcarem multidões. Não é a promessa de campanha, nem
o programa político que importa. É o que profana a condição humana: a
miséria, o desamparo, a dor inconsútil, essa abissal desigualdade que
nos condena à antinomia entre Caim e Abel. E ainda que o terremoto
abale os alicerces da casa e destelhe ilusões, ainda que as águas do
rio de Heráclito inundem o chão em que pisamos, ainda que a ambição
superlativa mergulhe do trampolim nas águas turvas de acordos
espúrios e traições deletérias, ainda assim o exercício perene de
justiça se impõe, e por isso se impõe e é esse sentido de
perseverança militante que imprime à vida sabor de felicidade.
Não são os prazeres que justificam a existência, tão fugidios e,
levados ao extremo, nefastos à subjetividade. Nem é o poder que traz
em si a semente benigna de nossa humanidade. É o sentido histórico,
saber por que se vive, abraçar a morte como descanso do guerreiro e
não como deplorável acidente de percurso tão temido por quem não ousa
ser o que é, e passa a vida dando voltas em torno de si mesmo, com
receio de aproximar-se de seu centro e assumir sua verdadeira
identidade.
As crises assustam, atraem sombras e escurecem as noites, porém
jamais evitam o alvorecer, exceto para aqueles que se deixam
convencer de que é mais cômodo caminhar de costas para o futuro.
- Frei Betto é escritor, autor de “Treze contos diabólicos e um
angélico” (Planeta), entre outros livros.
https://www.alainet.org/fr/node/112827
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