Noite de Deus
27/10/2005
- Opinión
C. G. Jung, um dos mestres fundadores do discurso psicanalítico junto com S. Freud, refere-se em suas obras aos grandes sonhos que podem visitar as pessoas. Ai emergem arquétipos ancestrais, carregados de mensagens que podem mudar o estado de consciência e até o destino das pessoas.
A mim me ocorreu um destes grandes sonhos no dia 23 de outubro, no dia do referendo sobre o desarmamento, em plena crise de artrose que me deixou preso em casa. A noite, de repente, virou dia. Era a noite da paz perpétua.
Vale a pena contar esse sonho.
Sonhei que estava na China, reminiscência de uma viagem que fizera com um grupo de teólogos brasileiros e canadenses nos anos 80. Em sonho vi que de uma encosta desciam multidões de chineses. Na China tudo é multidão.
Nosso pequeno grupo foi tomado de medo. "Agora eles vêm para nos matar".
Mas na medida em que se aproximavam, escutavam-se vozes cada vez mais fortes: "agora é paz, agora é paz perpétua". Eu pensei: "é um truque deles para nos matarem a todos". Ao contrário, quando se aproximaram, nos cercaram, dançando, abraçando-nos efusivamente e enchendo-nos de presentes. Alguns se estendiam traquilos por sobre a relva e nos convidavam a fazer o mesmo para estarmos todos juntos e à vontade.
Começamos a ganhar confiança e também proclamávamos:"agora é paz, é paz perpétua". Entretanto, um sentimento de estranheza me invadiu. Não conseguia me acostumar à idéia da paz perpétua nem como devia me comportar. A realidade era grande demais, um misto de alegria e de temor. De repente pensei: "agora virão as bombas atômicas chinesas e nos liquidarão". Mas o temor logo se desfez quando alguém ligou à televisão e lá não se viam mais violências nem futilidades, apenas a mensagem em todos os canais:"agora é paz". De repente um chinês se ergueu e disse: "preciso pagar minhas contas".
Mas logo se lembrou: "agora com a paz perpétua ninguém precisa pagar mais nada a ninguém porque todos terão tudo o que precisam".
Subitamente, vi uma roda de pessoas segurando alguém que parecia desmaiado. Logo percebi que se tratava do Presidente dos EUA. Da encosta desciam, graves e solenes, os chefes chineses. Entraram numa sala junto com o Presidente norte-americano, agora refeito.
Pouco depois, abriram-se as portas e os chefes das duas nações proclamavam:"chegou o tempo da paz perpétua, da paz eterna". Nisso escutei o Presidente norte-americano retrucar: "Teremos paz, mas isso só vale por duas semanas". No sonho fiquei profundamente irritado e pensei:"O capitalismo desaparece com a paz. Ele precisa da guerra para existir". Mas a certeza da paz era tão forte que todos se harmonizavam e não terminavam de sorrir e de se abraçar. Era a primeira noite da era de Deus. Noite sereníssima e iluminada, realzação do sonho mais ancestral da humanidade.
Nisso acordei cheio da graça divina. Apenas as dores dos joelhos me recordavam a diferença entre o sonho e a realidade. Mas no sentimento, o sonho era incomensuravelmente mais real que a realidade. Foi então que me lembrei dos versos místicos de São João da Cruz:"Oh, noite mais amável que a alvorada. Oh, noite que juntaste o Amado com a amada, amada já no Amado transformada".
- Leonardo Boff é Teólogo
https://www.alainet.org/fr/node/113344
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