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06/02/2006
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Viviam juntos há anos, tragados pela rotina, essa mesmice atordoante, reprise cotidiana de um calendário imutável de quem jamais se imagina dominando o tempo: o banho matinal às pressas, o café engolido, o jornal lido pelas manchetes, o trabalho, o almoço corrido, o trabalho, o lanche da tarde e a noite centrada na TV soberana. Havia sempre uma voz exterior a decretar o silêncio do casal. Pela manhã, o rádio, as notícias do outro lado do mundo, o horóscopo do jornal, os índices do mercado financeiro. E telefonemas familiares. Havia pouco tempo para palavras entre eles: não esquecer de comprar azeite, a conta do telefone, cumprimentar o irmão pelo aniversário, a revisão do carro, o cuidado dos filhos. Tudo muito telegráfico enquanto se penteava o cabelo e vestia a roupa. Bastavam-lhes um vocabulário trivial, exíguo, onomatopéico. Foi numa dessas noites de solidão partilhada que, súbito, vencido o estado de hipnose, ela desligou o televisor, justamente quando a novela atingia aquele momento de ápice que convida os telespectadores a retornarem dia seguinte. Ele estranhou. Antes de se manifestar, cultivou perplexo seu monólogo interior. O que deu nela? Por que esse gesto impetuoso? Algo na novela a incomodou? Toda quebra de rotina é um atentado a mecanismos atávicos. Amantes são intempestivos, implodem previsões, irrompem insólitos como vulcões que se recusam a adormecer. Depois o casamento os faz parentes um do outro. As lavas esfriam, a boca incandescente apaga-se, o que era vulcão se transforma numa bucólica montanha apaziguada por brisas suaves, às vezes atingida por pequenos abalos sísmicos. As coisas retomam a sua cronologia, o seu ritmo, e depois de tantos anos de convivência não é nada fácil admitir que há no outro um estranho, um lado oculto, submerso, que de repente emerge e desestabiliza. Melhor que a fera seja mantida à distância, enjaulada nas racionalizações que matam a jovialidade e domesticada pelo temor de reinventar a si mesmo, camuflada sob o manto da suposta maturidade. Ele conseguiu manifestar seu desconforto. Enfadara-se ela com o enredo da novela? Andava indisposta? Tinha sono? Não é isso, não é nada disso, ela falou. Quero apenas conversar com você. Há quanto tempo somos o duplo de nós mesmos? Há quanto tempo exibimos pela casa fantasmas que encobrem a nossa verdadeira identidade? Já não suporto esse silêncio. Quero falar de mim, saber de você, refletir, pensar junto, trazer à tona nossas interrogações diante da vida. Curvada sobre ele, ela o segurou carinhosamente pelos ombros e o fitou nos olhos. Como vai você? O que tem pensado, sonhado, desejado? Apertou-lhe o peito com a mão espalmada: O que sente aqui? Ainda me ama como antes? É feliz? Ele desconversou. Não estava preparado para inquirições àquela hora da noite. E, ao longo dos anos, aprendera a engolir inquietações, perguntas, desconfianças, disposto a pagar o preço do risco por uma tranqüilidade insofismável. Agora, diante dessa turbulência inesperada em pleno vôo, não sabia o que dizer e temia ser traído pelas palavras. Recorreu ao parco vocabulário de uma convivência corriqueira, enfeixou na voz um grupo de sentenças banais e respondeu que a amava muito, sentia-se bem, feliz porque as coisas haviam melhorado no trabalho. Que tal se abrirmos um vinho?, propôs. Ela consentiu, dispôs-se a buscá-lo. Ao voltar da cozinha com a garrafa, as taças e os canapés, encontrou-o atento ao noticiário de esportes na TV. Serviram-se e ela se recolheu ao mutismo, acrescentou apenas algumas frases a respeito de si mesma. Beberam como se tomassem fel. Pouco depois, pretextando cansaço, ela precipitou-se rumo ao quarto de dormir. Ele ficou só. Sentiu medo de seu duplo, de seus fantasmas interiores, de tantas perguntas amordaçadas no fundo de seu peito. Tirou o som da TV e chorou como há muito tempo não o fazia. Sentia muita vergonha de si mesmo. - Frei Betto é escritor e autor, entre outros livros, de "Típicos Tipos - perfis literários" (A Girafa), Prêmio Jabuti 2005.
https://www.alainet.org/fr/node/114284
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