Radiografia do poder

10/02/2006
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Na próxima semana chega às livrarias meu novo livro, "A Mosca Azul" (Rocco). Trata-se de uma reflexão sobre o poder. Tema que intriga políticos e pensadores desde a Grécia antiga. A ele dedicaram páginas inolvidáveis Platão e Aristóteles, santo Agostinho e santo Tomás de Aquino, Maquiavel e Hobbes, Marx e Weber, Hannah Arendt e Robert Michels. Nas pegadas de Platão e Maquiavel, parti de uma experiência: os dois anos (2003-2004) em que trabalhei no Palácio do Planalto como assessor especial do presidente Lula e coordenador de mobilização social do Fome Zero. Biografias de eminentes políticos, como Napoleão e Churchill, são leitura preferida de quem ocupa funções no poder público. Quando estive na prisão, líamos com sofreguidão "Os subterrâneos da liberdade", de Jorge Amado, e "Memórias do cárcere", de Graciliano Ramos. Temos necessidade de nos instrumentar de noções e experiências que permitam melhor entendimento da situação em que vivemos. Contudo, não encontrei, no universo da psicologia, contribuições substanciais sobre a patologia do poder. Algo, sim, em Adler e Reich. Preferi, pois, recorrer a Shakespeare e Kafka. Quem me conhece sabe que sempre fui avesso ao poder. Em 41 anos de vida religiosa na Ordem Dominicana, jamais ocupei função de mando. Como dizem certos prelados incomodados com minhas idéias, "nem padre ele é". Sou irmão leigo, embora tenha cursado filosofia e teologia, indispensáveis ao sacerdócio. Porém, abri mão de me tornar padre. Não por mérito, e sim por falta de vocação. Não sou afeito à liturgia, à administração dos sacramentos, à atividade paroquial. Minha paróquia é o mundão de Deus e meu púlpito, a literatura. Nem padre sou... como Francisco de Assis, que a muito custo aceitou ser ordenado diácono. Ocupei, sim, funções de poder. Fui chefe de reportagem de um jornal paulistano, assistente de direção de uma companhia de teatro, diretor de uma revista latino-americana e, por fim, assessor da Presidência da República. Nada disso me envaideceu. Deixei todas essas funções antes que elas me deixassem. Mas impressiona-me ver pessoas inebriadas ao ocupar funções de poder. Inflam o ego, estufam o peito, olham os subalternos de cima para baixo. Despersonalizam-se a ponto de trocar a identidade pela função ocupada. Machado de Assis descreve primorosamente o tipo no conto "O espelho". Considero as ambições humanas suficientemente ridículas para levar a sério o teatro do poder. Raros os atores que fazem do poder serviço, deixam-se criticar por seus pares e subalternos, não se valem da função para obter vantagens pessoais. Por isso a maioria se apega ao cargo como à segunda pele, sem a qual se veriam desnudos, desprestigiados, tomados pela baixa auto-estima. O que explica a depressão que costuma se apossar dos que perdem poder. Raduan Nassar, que tudo entende dos secretos escaninhos da alma humana, e com quem troco, com freqüência, dois dedos de prosa, compara o poder à caça ao macaco. Para capturar o animal sem um arranhão, fura-se um coco e coloca-se dentro um torrão de açúcar. O macaco sobe na arvore e, literalmente, mete a mão na cumbuca. Tenta tirá-la, porém a mão fechada sobre o torrão o impede de passá-la de volta pelo buraco. Como não larga a presa, e prefere a cobiça à liberdade, acaba na rede dos caçadores. Em "A Mosca Azul" não me moveu outro propósito senão analisar o processo histórico que levou o PT ao poder, através do qual causou decepções e promoveu efetiva melhoria da qualidade de vida da população, em especial de parcela significativa dos que viviam na miséria. Recorrendo à análise comportamental, partilho com os leitores indagações e inquietações quanto à relação entre o individuo e as funções de mando. Aprendi no Teatro Oficina que o ator deve saber se distanciar do personagem. Só assim é capaz de ampliar suas potencialidades e, ao mesmo tempo, desempenhá-lo com o viés crítico recomendado por Brecht e Artaud. - Frei Betto é escritor, autor de "Treze contos diabólicos e um angélico" (Planeta), entre outros livros.
https://www.alainet.org/fr/node/114325
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