A arte de legislar (e engordar) para não mudar
29/04/2006
- Opinión
Meu tio G. é imensamente gordo. Claro, isso o incomoda. É PhD em dietas. Conhece todas, já experimentou uma infinidade: a da lua, da sopa, do sangue, do corte de carboidratos, glúten e doces, e é viciado em medicamentos inibidores do apetite. Nada adianta. Nem a cirurgia de redução do estômago. Rebeldes, as células reagiram à pressão e, saudosas da antigas elasticidade, ganharam força e recuperaram a flacidez dos tecidos do abdômen. Só há uma coisa que meu tio se recusa a fazer: conter a gula. Pode ficar na sopa, mas ingere um caldeirão.
Lembrei dele ao fitar, pela janelinha do meu voto, essas recentes mudanças cosméticas em nosso sistema eleitoral. Maquiavel já nos havia prevenido, inútil esperar que alguém legisle em prejuízo próprio. A perenidade é inerente ao poder. Por isso, senadores e deputados federais, como meu tio, mexem aqui, mexem ali, tiram um pouco do açúcar ou da gordura, porém mantêm-se gulosos quanto ao próprio futuro político.
Todos sabemos que só o PT é capaz de mobilizar público suficiente para lotar um comício de rua. Por essas e outras é que, anos atrás, se proibiu a exibição de cenas externas em propaganda eleitoral. Os partidos da elite, como PSDB e PFL, embora tenham eleitores, carecem de militantes, tanto que, ao decidir seus candidatos a conversa fica entre meia dúzia de caciques.
Se o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aceitar que as imagens das CPIs se incluem entre “cenas externas”, a campanha deste ano não poderá exibi-las. Isso se o TSE contradizer-se e, ao contrário do que decidiu
quanto à emenda da verticalização, aprovada mas impossibilitada de vigorar nessas eleições, permitir que, neste ano, haja veto às gravações da CPI. Em princípio, qualquer modificação de legislação eleitoral só pode entrar em vigor um ano após a sua aprovação. Mas este não é o país dos casuísmos?
As regras aprovadas pelo Senado proíbem distribuição de brindes (camisetas, bonés, chaveiros) e presença de artistas nos comícios. E vender brindes para fazer caixa, é permitido? Mas se calam quanto ao caixa dois e à transparência dos recursos de campanha. Ou seja, cortam-se doces e glúten, desde que a mesa permaneça
farta…
Proibiu-se também que se divulguem pesquisas 15 dias antes das eleições. É meu tio suprimindo bebidas alcoólicas da dieta, mas encharcando-se de refrigerantes… Cala-se a voz do povo, expressão da cidadania, como se o silêncio do médico significasse sinal verde para o insaciável apetite.
O mais curioso é que se pretende punir apenas o candidato beneficiado por “recursos não-contabilizados.” O tesoureiro pode bancar o useiro e vezeiro nas maracutaias, e os doadores de recursos escusos também ficam livres de investigação e punição, o que a meu ver representa uma ofensa a todos nós que prestamos contas à Receita Federal e incluímos as finanças nos atos a serem regidos por princípios éticos. Meu tio pode comer de tudo, desde que não esteja contido na prescrição médica…
Nada disso haverá de baratear campanhas eleitorais. E tudo isso ajudará a fomentar a central de boatos incrementada pelos modernos avanços tecnológicos, como a internet. Cabos eleitorais de um e outro candidato
cuidarão de divulgar supostas pesquisas confundindo ainda mais os eleitores. Como meu tio ficou confuso depois que se propalou aos quatro ventos que calorias não engordam…
Diante dessa Babel na legislação eleitoral, só resta ao eleitor conferir a vida pregressa de seus candidatos e certificar-se se são ou não coerentes com o que defendem e suficientemente corajosos para não fazer na vida pública o que fazem na privada…
Pelo visto, o Congresso não quer fazer reforma política. Nada de cortar na carne. Até porque proteínas não engordam… mas os subterrâneos de campanha dispõem de bastante gordura para engravidar urnas e, qual Fênix, fazer renascer das cinzas candidatos e políticos que gostaríamos de ver pelas costas.
Que tal uma boa renovação do Congresso nas eleições de outubro? Depende apenas do nosso voto.
Frei Betto é escritor, autor de “Comer como um frade – divina receitas para quem sabe por que temos um céu na boca” (José Olympio), entre outros livros.
https://www.alainet.org/fr/node/115040
Del mismo autor
- Homenaje a Paulo Freire en el centenario de su nacimiento 14/09/2021
- Homenagem a Paulo Freire em seu centenário de nascimento 08/09/2021
- FSM: de espaço aberto a espaço de acção 04/08/2020
- WSF: from an open space to a space for action 04/08/2020
- FSM : d'un espace ouvert à un espace d'action 04/08/2020
- FSM: de espacio abierto a espacio de acción 04/08/2020
- Ética em tempos de pandemia 27/07/2020
- Carta a amigos y amigas del exterior 20/07/2020
- Carta aos amigos e amigas do exterior 20/07/2020
- Direito à alimentação saudável 09/07/2020