Mandamentos do consumismo

13/07/2006
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A publicidade cerca-nos de todos os lados - na TV, nas ruas, nas revistas e jornais - e força-nos a ser mais consumidores que cidadãos. Hoje, tudo se reduz a uma questão de marketing. Uma empresa de alimentos geneticamente modificados pode comprometer a saúde de milhões de pessoas. Não tem a menor importância se uma boa máquina publicitária for capaz de tornar a sua marca bem aceita entre os consumidores. Isso vale também para o refrigerante que descalcifica os ossos, corrói os dentes, engorda e cria dependência. Ao bebê-lo, um bando de jovens exultantes sugere que, no líquido borbulhante, encontra-se o elixir da suprema felicidade. A sociedade de consumo é religiosa às avessas. Quase não há clipe publicitário que deixe de valorizar um dos sete pecados capitais: soberba, inveja, ira, preguiça, avareza, gula e luxúria. 'Capital' significa 'cabeça'. Ensina meu confrade Tomás de Aquino (1225-1274) que são capitais os pecados que nos fazem perder a cabeça e dos quais derivam inúmeros males. A soberba faz-se presente na publicidade que exalta o ego, como o feliz proprietário de um carro de linhas arrojadas ou o portador de um cartão de crédito que funciona como a chave capaz de abrir todas as portas do desejo. A inveja faz crianças disputarem qual de suas famílias tem o melhor veículo. A ira caracteriza o nipônico quebrando o televisor por não ter adquirido algo de melhor qualidade. A preguiça está a um passo dessas sandálias que convidam a um passeio de lancha ou abrem as portas da fama com direito a uma confortável casa com piscina. A avareza reina em todas as poupanças e no estímulo aos prêmios de carnês. A gula, nos produtos alimentícios e nas lanchonetes que oferecem muito colesterol em sanduíches piramidais. A luxúria, na associação entre a mercadoria e as fantasias eróticas: a cerveja espumante identificada com mulheres que exibem seus corpos em reduzidos biquínis. Os cinco mandamentos da era do consumo são: 1º) Adorar o mercado sobre todas as coisas. Tudo se vende ou se troca: objetos, cargos públicos, influências, idéias etc. Em economias arcaicas, ainda presentes em regiões da América Latina, a partilha dos bens materiais e simbólicos assegurava a sobrevivência humana. Agora, ao valor de uso se sobrepõe o valor de troca. É preferível deixar apodrecer alimentos cujos preços exigidos pelos produtores deixam de oferecer a mesma margem de lucro. Segundo o mercado, tombam os seres humanos, mas seguram-se os preços. 2º) Não profanar a moeda, desestabilizando-a. Dizem que outrora povos indígenas sacrificavam vidas humanas para aplacar a ira dos deuses. Abominável? Nem tanto. O ritual prossegue; mudaram-se apenas os métodos. Em 1985, o Nacional, um dos maiores bancos brasileiros, começou a naufragar. Durante dez anos, graças a operações fraudulentas, o Nacional conseguiu sacar bilhões de dólares do Banco Central. Em outubro de 1995, o governo FHC criou, por decreto, o Proer - um programa de socorro a bancos em dificuldades. Na ocasião, um único banco foi favorecido: o Nacional, com o equivalente a US$ 6 bilhões. 3º) Não pecar contra a globalização. Graças às novas tecnologias de comunicação, o mundo se transformou numa pequena aldeia. De fato, o Planeta ficou pequeno frente às imensuráveis ambições das corporações transnacionais. Por que investir na proteção do meio ambiente se isso não aumenta o valor das ações na Bolsa? 4º) Cobiçar os bens estatais e públicos em defesa da privatização. Se não é o bem comum o valor prioritário, e sim o lucro, privatize-se tudo: saúde, educação, rodovias, praias, florestas etc. Privatizar é afunilar a pirâmide da desigualdade social. Os lucros são apropriados por uma minoria, e os prejuízos - o desemprego e a miséria - socializados. Menos serviços públicos, maior a parcela da população excluída do acesso aos serviços pagos. Antes do leilão da Usiminas, uma das maiores siderúrgicas brasileiras, a Nippon subscrevera 14% do capital da empresa. Quando houve aumento do capital da Usiminas, a Nippon não se interessou, o que reduziu sua participação acionária para 4,8%. Iniciado o processo de privatização, as ações da Usiminas valorizaram e a empresa japonesa obteve o privilégio de resgatar sua participação originária pagando US$ 39,79 por cada lote de 1.000 ações - quando, na Bolsa, a cotação já atingira US$ 523,90. A Nippon obteve lucro de 1.340%. O patrimônio da Usiminas valia US$ 12 bilhões. Foi vendida por US$ 1,65 bilhão. E ninguém foi parar na cadeia por este assalto ao patrimônio nacional. Do que se arrecadou com o leilão da Usiminas, 73,3% foram pagos com "moedas podres" e 26,4% em Certificados de Privatização. Papéis coloridos. Em dinheiro sonante entraram apenas R$ 4,69 mil, metade do preço de um carro "popular", sem ágio. 5º) Prestar culto aos sagrados objetos de consumo. Percorremos aceleradamente o trajeto que conduz da esbeltez física à ostentação pública de celulares, da casa de veraneio ao carro importado, fazendo de conta que nada temos a ver com a dívida social. Expostos à má qualidade dessa mídia eletrônica que nos oferta felicidade em frascos de perfume e refrigerante, alegria em maços de cigarro e enlatados, já não há espaço para a poesia nem tempo para curtir a infância. Perdemos a capacidade de sonhar sem ganhar em troca senão o vazio, a perplexidade, a perda de identidade. Em doses químicas, a felicidade nos parece mais viável que percorrer o desafiante caminho da educação da subjetividade. Mercantilizam-se relações conjugais e de parentesco e amizade. Nesse jogo, como nos filmes americanos, quem não for esperto e despudoradamente cruel, morre. Só há esperança para quem acredita que o dilúvio neoliberal não é capaz de inundar todos os sonhos e ousa navegar, ainda que soprem fraco os ventos, nas asas da solidariedade aos excluídos, da luta por justiça, do cultivo da ética, da defesa dos direitos humanos e da busca incansável de um mundo sem fronteiras também entre abastados e oprimidos. Mas isso é outra história, que exige muita fé e certa dose de coragem. A propósito: o contrário da soberba é a humildade; da inveja, o despojamento; da ira, a tolerância; da preguiça, o compromisso; da avareza, a partilha; da gula, a sobriedade; da luxúria, o amor. - Frei Betto é escritor, autor de “Comer como um frade ­ divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca” (José Olympio), entre outros livros.
https://www.alainet.org/fr/node/116036
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