Era uma vez, um imperador chinês
22/07/2006
- Opinión
A velocidade e a ousadia da expansão mundial da China seguem surpreendendo os analistas e os governantes de todo mundo, como no caso recente do “desembarque chinês” na África, noticiado pela imprensa internacional. Em meados de 2005, o presidente chinês, Hi Jintao, anunciou uma nova política de estreitamento de relações com o continente africano. Apenas um ano depois, o balanço é impressionante: o comércio entre a China e a África triplicou em 2005, e hoje a China já é o terceiro maior parceiro comercial da África. Mas além disto, já existem no continente africano, 800 companhias, com 900 projetos de investimento e 80.000 trabalhadores chineses. Um verdadeiro “ataque econômico”, liderado por empresas estatais que seguem uma estratégia de governo, com “incentivos financeiros e empréstimos baratos, para investir no continente africano” (Financial Times, 20/6/2006). Faz seis séculos atrás, no início do século XV, a China já havia chegado à costa oriental da África, no curso de um outro movimento expansivo, igualmente veloz e massivo. Mas houve um momento em que a China decidiu interromper aquela sua primeira expansão e recuou para dentro de si mesma isolando-se do mundo, por muitos séculos. Uma mudança de rumo que permanece até hoje como uma incógnita da história mundial.
Este primeiro “desembarque africano” dos chineses aconteceu em 1417, durante o reinado de Yung-Lo (1403-1424), o terceiro imperador da Dinastia Ming, que foi criada em 1368, e que durou até 1662, sendo considerada, em geral, como uma “época de ouro” da história chinesa. Mas na verdade, a história da Dinastia Ming não foi tão homogênea, nem tão brilhante, teve altos e baixos, e grandes períodos de estagnação e retrocesso. De qualquer maneira, não há duvida que foi no reinado de Yung-Lo, entre 1403 e 1424, que a Dinastia Ming alcançou seu maior brilho, projetando o poder e a influencia da China através do mundo. Yung-Lo centralizou fortemente o poder imperial chinês, junto sua capacidade fiscal e militar, e criou um sistema de governo ministerial com uma burocracia profissional e universalista. Mas o que é mais importante, foi um governante com uma visão estratégica e expansionista, que começou e terminou as obras de reabertura do Grande Canal – que havia sido construído em 1289 - comunicando o Mar da China e a antiga capital Nanquim, com a região mais pobre ao norte do império, onde decidiu construir uma nova capital, que foi Pequim. Num gigantesco projeto – talvez, o maior de toda a Dinastia Ming - que mobilizou durante muitos anos, um verdadeiro exército de trabalhadores, artesãos, soldados e arquitetos. Além disto, o imperador Yung-Lo se propôs estender a hegemonia chinesa - política, econômica e cultural – em todas as direções, e através de todas as fronteiras territoriais da China, mas também, na direção dos Mares do Sul, do Oceano Indico, do Golfo Pérsico e da Costa Africana. Yun-Lo encomendou este último projeto de expansão marítima ao Almirante Cheng Ho, que liderou seis grandes expedições navais, entre 1404 e 1421, alcançando sucessivamente, Java, Sumatra, Índia, Arábia e finalmente, a África, onde desembarcou em 1417, cerca de 30.000 homens levados por cerca de 300 navios, numa missão diplomática sem nenhum objetivo bélico ou de conquista territorial. Sete anos depois, exatamente em 1424, o Imperador Yung-Lo ordenou uma sétima expedição ao seu almirante Cheng Ho, com o objetivo de instalar “comissariados” chineses, nos vários territórios que já haviam sido contatados. Mas Yung-Lo morreu naquele mesmo ano de 1424, e a nova expedição foi imediatamente cancelada. E foi logo depois do seu reinado que o Império Ming perdeu seu fôlego expansivo e fechou-se sobre si mesmo, seguindo uma política externa passiva e convencional, de quase total isolamento internacional.
Nesta história, existe um filão menos conhecido, mas muito interessante. O fato é que as políticas “desenvolvimentistas” e expansionistas do Imperador Yung-Lo enfrentaram durante todo o tempo do seu governo, uma resistência surda de uma parte do mandarinato, das elites e do seu próprio ministério. A oposição mais dura foi sempre a do Ministro da Fazenda, Hsia Yüan-Chi, preocupado com o excesso de gastos do império, e com o que hoje se chamaria de seu “equilíbrio fiscal”. Hsia Yüan-Chi se opôs à construção de Pequim; se opôs às obras de remodelação do Grande Canal; se opôs às expedições militares do imperador na Mongólia; e se opôs também às expedições marítimas do almirante Cheng Ho. Por fim, em 1421, Yung-Lo demitiu e prendeu o seu próprio ministro da fazenda, para poder seguir em frente com sua estratégica de governo.
Pois bem, o que aconteceu em 1424, foi que logo depois da morte do imperador Yung-Lo, e no dia seguinte da posse do seu filho como novo imperador, Chu Kao-Chih, o próprio filho libertou o antigo ministro da fazenda do seu pai, Hsia Yuan-Chi. E no mesmo dia, seguindo o conselho do “renomeado” ministro da fazenda do novo reino, o novo imperador mandou cancelar a sétima expedição marítima do almirante Cheng Ho, em nome da contenção dos gastos imperiais, proibindo qualquer nova expedição para fora da China. Depois, a própria esquadra chinesa foi incendiada, para eliminar a lembrança do passado. Este episódio parece bizarro, mas foi exatamente assim que terminou a expansão territorial e marítima, diplomática e militar, que levou a China ao zênite do seu poder mundial, na primeira metade do século XV. Naquele momento, “para levar a frente a estratégia expansionista de Yung-Lo, teria sido necessária uma sucessão de líderes com a sua mesma visão vigorosa e estratégica, a visão de um construtor de impérios que não teve seguidores.” ( The Cambridge History of China, 1988, vol 7, pp:275). Se isto tivesse acontecido, a própria expansão continuada da China teria gerado os recursos necessários à compensação das suas dívidas, e ao equilíbrio dos seus orçamentos. Mas não foi isto o que aconteceu, e tomou muito tempo para que os chineses aprendessem a lição do expansionismo europeu. Hoje, entretanto, 600 anos depois do Reino de Yung-Lo, a China está se transformando na primeira sociedade não branca e não européia que será uma superpotência global. E não há no ar nenhum sinal de recuo.
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