Quando os brasileiros realizam, 185 anos depois, a sua verdadeira independêcia

13/06/2007
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A
Os países desenvolvidos, representados pelas transnacionais automobilísticas, de alimento e petroleiras, impuseram uma nova demanda a ser saciada pelos países periféricos do capital, a produção do agrocombustível, principalmente o etanol proveniente da cana-de-açúcar. O Brasil tem atualmente 6,3 milhões de hectares plantados com esse cultivo e, em cinco anos, essa área deverá atingir 10,3 milhões de hectares.

Nessa conjuntura, os impactos negativos da monocultura canavieira sobre o meio-ambiente e os trabalhadores tendem a evoluir. Mas, por conseqüência da exploração dos grandes usineiros, muitos cortadores de cana viram no Movimento do Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) o único caminho para ter uma vida digna no campo.

Segundo o Ministério Público do Trabalho e o Ministério do Trabalho e do Emprego, cerca de 80% da cana produzida no país é colhida à mão, empregando cerca de um milhão de brasileiros. Em 2006, morreram 15 pessoas que trabalhavam na colheita de cana-de-açúcar na região de Ribeirão Preto (SP), segundo denúncia do Relatório Nacional de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais, lançado ao final de maio. Marinho Luz de Oliveira, 45, do pré-assentamento Mário Lago, de Ribeirão, poderia fazer parte desses números.

“Antes a gente vivia no trabalho forçado, tinha que sair de casa 4 horas da manhã para chegar às 9 da noite. Até no domingo a gente tinha que trabalhar para ter uma produção maior. O desgaste físico era triplicado”, relata Marinho, que reforça seu maior anseio: “nunca mais se desgastar nos campos dos outros”.

Natural do norte de Minas Gerais, ele começou a cortar cana com 12 anos de idade, depois de mudar-se para a cidade de Serrana, próxima a Ribeirão Preto, e parou somente aos 30, quando entrou para o MST. Marinho vive agora com a esposa e seus cinco filhos em um lote de três hectares. Sustenta a família por meio de uma pequena fábrica de ração para gado, da produção de leite e de ovos.

“No assentamento, meu estilo de vida mudou”, afirma o, hoje, ex-cortador de cana. Foi por meio dos trabalhos de base dos militantes que Marinho conheceu o movimento e se encantou com a organizacão e o regimento interno dos camponeses. “Foi muito bom ter vindo. Agora, a gente produz com liberdade para trabalhar e consegue sobreviver disso”, diz.

Conquistado o assentamento, Marinho quer buscar seus companheiros que permaneceram nos canaviais. “Eles estão acreditando agora. Antes me criticavam por estar no movimento, mas eu dizia a eles, \'vou continuar porque acredito”, relata.

Tradição de exploração

Pernambuco foi um dos primeiros territórios do país em que as plantações de cana-de-açúcar foram implantadas. Até hoje, os canaviais ocupam grandes extensões de terra na Zona da Mata. O agronegócio se aproveita da inserção cultural do cultivo na formação do povo local para reforçar a exploração dos cortadores de cana.

O agricultor Jones Manoel da Silva, de 21anos, dirigente da Brigada de Escada, do Assentamento Jiki (PE), trabalhou dos 16 aos 18 anos na usina União Indústria, no município de Primavera (PE), região da Zona da Mata. Ele conta que, em sua região, o trabalho nos canaviais é herdado de pai para filho. Lembra que seu avô passou 40 anos trabalhando nessa usina e que, hoje, está repleto de doenças causadas pelo esforço no corte da cana.

“Muitas vezes, cheguei a ter vontade de pegar o facão, jogá-lo fora e fazer carreira [fugir]. Trabalhei dois anos nos canaviais, mas parece que foram dez”, conta Jones. Quando retornava do canavial, ele tomava um banho, se alimentava e ficava pensando como seria seu próximo dia. Tinha vontade de se divertir, mas, nos dois anos em que trabalhou como cortador de cana, teve poucas oportunidades para o lazer. “Dava vontade, mas com toda a dor, eu todo quebrado”, lembra o jovem.

O trabalho de base, assim como para Marinho, na região de Ribeirão Preto, foi essencial. “Graças ao MST minha vida mudou muito porque começamos a ter outro nível de consciência”, destaca. Mas, até conhecer, de fato, o movimento, o ex-cortador de cana-de-açúcar confessou que preferia ficar distante dos sem-terra. Uma posição, egundo ele, muito influenciada pela mídia corporativa. “Antes, a gente via o MST como saqueadores, eu ficava meio cismado com aqueles gritos. Tive medo quando fui no primeiro curso do movimento”, conta.

Há oito anos a família de Jones aguarda a emissão de posse do lote onde sua família vive, no Assentamento Jiki, mas ele já planta macaxeira e verduras. Depois de assentado, o ex-cortador de cana pretende diversificar ainda mais o número de lavouras em seu lote.

Nada a perder

Sérgio José da Silva, de 30 anos, também é da região da Zona da Mata, do município de Escada (PE). Seu pai o levou para o corte da cana anos 9 anos. “Eu não conseguia fazer muita coisa”, confessa o rapaz. Cortou cana até os 23 e sentiu na pele a violação dos direitos trabalhistas. Por todo esse período, ele trabalhou sem carteira assinada, também na usina União Indústria.

Sérgio cortava cana de setembro a fevereiro. Já em abril, iniciava o plantio, no período da entre-safra. Com muito sacrifício, completou o estudo fundamental. “Eu não sabia o que era lazer, diversão com os amigos. Todo meu tempo era destinado ao trabalho, principalmente na época da safra. Quanto mais cedo saía de casa, mais cana cortava. Era importante chegar cedo porque, se eu marcasse meu eito [que vale de duas a três contas de cana, o que dá 3 mil m² para três ou quatro pessoas cortarem], ninguém poderia entrar nele e, conseqüentemente, ganhava mais”, conta.

Em 1992, no município de Amaragi, a 96 quilômetros do Recife, os pais de Sérgio souberam de uma área que estava sendo ocupada pelos sem-terra, que os convidaram para o acampamento. “No início, nós tínhamos medo pela violência, da perseguição dos jagunços dos usineiros aos trabalhadores. Mas não tínhamos nada a perder. Em 1993, acampamos e a desapropriação dessas terras saiu em 1996. Mas éramos 130 famílias acampadas e somente 21 foram assentadas”, recorda o ex-cortador de cana.

“Fomos para outra área, também no município de Amaragi, onde ficaram 117 famílias. Um ano depois, essa área foi desapropriada. Minha família foi assentada, meu irmão também teve uma parcela. Em 1997, fui fazer um curso de Técnicas de Administração em Cooperativa, em Veranópolis (RS), e foi aí que eu parei de cortar cana em definitivo” afirma.

Sergio diz que, depois de assentada, sua família começou a plantar banana-comprida e banana-prata, “vende muito bem”. Além da banana, garantiram a produção de batata-doce, inhame e feijão. Ele reclama que os governos ampliam o crédito para os grandes latifundiários, mas dificulta a vida dos pequenos produtores. No lote de sua família, ainda se planta um pouco de cana, mas dentro da diversidade de culturas. Sérgio é um pré-assentado no Assentamento de Jiki; seus pais permanecem em Amaragi.

Fim da Faca Cega


Em geral, fora todos os malefícios causados à saúde dos trabalhadores, como desnutrição, estresse por calor e alojamentos precários, os ex-cortadores, hoje assentados ou pré-assentados, apresentam histórias semelhantes. Saem muito cedo de casa e retornam tarde demais. No entanto, o problema da manutenção do analfabetismo imposto pelos patrões é algo pouco discutido, mas não menos importante.

Francisco Gomes Teixeira conta que, só descansava, quando os patrões não precisavam dele, “o que geralmente era no domingo”. “Por isso e também por ter sido trabalhador nos canaviais, nem estudo consegui ter”, confessa. Como seus dois colegas, ele reforça a idéia da tradição canavieira em Pernambuco. “Meu pai já trabalhava no canavial. Comecei a trabalhar com oito anos de idade”, conta. Ele é natural de Escada e faz parte do Assentamento Jiki, desde 1988.

O ex-cortador de cana lembra que quando vivia em pról do canavial, era somente explorado. “Cheguei a não ganhar o ordenado de uma semana completa e passei até fome. Muitos morrem na faca cega debaixo do pé, sem nunca ter produzido no seu pedacinho de terra”, denuncia. Agora, Francisco acredita se sentir no céu. “Tenho meu pedacinho de terra para trabalhar, planto o que quero; é macaxeira, mandioca, batata, milho, melancia, jerimum. Hoje, eu, minha esposa e meus cinco filhos trabalhamos dentro de nossa parcela terra e nunca mais passamos fome”, relata. Seu lote é de 10 hectares.

Liberdade

De acordo com o ex-cortador de cana, todos os trabalhadores do setor almejam a liberdade, porém, temem a agressão. “Eles se assombram com o patrão, devido às ameaças e ficam debaixo do pé dele até a morte”, critica.

Dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) revelam que a luta por esse “pedacinho” de terra será ainda mais difícil pois a área plantada da safra 2006-2007 cresceu 7,4% em relação à anterior.

Segundo o agrônomo Horácio Martins, membro da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e consultor da Via Campesina Brasil, o país vai ganhar, em média, uma usina de álcool e açúcar por mês até 2013. Atualmente, existem são 336 unidades. Na safra 2012-2013, esse número deve chegar a 409. Ele aponta que essa avalanche potencializa o assalariamento rural temporário massivo e em condições precárias, amplia a exploração dos trabalhadores e cria sistemas de controle político e trabalhista para perseguir a filiação e a luta sindical.

Contra isso, o hoje assentado, Francisco, aponta uma estratégia que deu certo para ele: “O segredo é não ter medo de se organizar”.
https://www.alainet.org/fr/node/121682
S'abonner à America Latina en Movimiento - RSS