Ética e reforma política

23/11/2007
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A “ética” neoliberal se reduz às virtudes privadas dos indivíduos. Ignora a visão de institucionalidade ética. Reforça, assim, a atitude paralisante do moralismo, que a reduz à ilusória perfeição individual. Ora, se a sociedade é estruturada, a ética é imprescindível para se configurar o mundo histórico. Portanto, exige uma teoria política normativa das instituições que regem a sociedade.

Não basta falar em ética na política. A crítica às instituições geradoras de injustiças e negadoras de direitos exige ética da política. Abrir espaços para a criação de novos direitos. As instituições devem garantir a justiça distributiva - a partilha dos bens a que todos têm direito -, e a justiça participativa, a presença de todos (democracia) no poder que decide os rumos da sociedade.

O grande desafio ético hoje é como criar instituições capazes de assegurar direitos universais. Isso supõe uma ruptura com a atual visão pós-moderna, neoliberal, de fragmentação do mundo e exacerbação egolátrica, individualista.

Ainda que o ser humano tenha defeito de fabricação e prazo de validade, o que o Gênesis chama de “pecado original”, há que se instaurar uma institucionalidade política capaz de assegurar direitos e impedir ameaças à liberdade e à natureza. Isso implica suscitar uma nova cultura inibidora dessas ameaças, assim como ocorre hoje em relação à escravidão, embora ainda praticada.

De onde tirar valores éticos universalmente aceitos? Como levar as pessoas a se perguntarem por critérios e valores? Hans Küng sugere que uma base ética mínima deve ser buscada nas grandes tradições religiosas. Seria o modo de passarmos de éticas regionais a uma ética planetária. Mas como aplicá-la ao terreno político? Mudar primeiro a sociedade ou as pessoas? O ovo ou a galinha?

Inútil dar um passo atrás e fixar-se na utopia do controle do Estado como precondição para transformar a sociedade. É preciso, antes, transformar a sociedade através de conquistas dos movimentos sociais, e de gestos e símbolos que acentuem as raízes antipopulares do modelo neoliberal. Combinar as contradições de práticas cotidianas (empobrecimento progressivo da classe média, desemprego, disseminação das drogas, degradação do meio ambiente, preconceitos e discriminações) com grandes estratégias políticas.

É concessão à lógica autoritária admitir que o Estado seja o único lugar onde reside o poder. Este se alarga pela sociedade civil, os movimentos populares, as ONGs, a esfera da arte e da cultura, que incutem novos modos de pensar, de sentir e de agir, e modificam valores e representações ideológicas, inclusive religiosas.

"Não queremos conquistar o mundo, mas torná-lo novo", proclamam os zapatistas. Hoje, a luta não é apenas de uma classe contra a outra, mas de toda a sociedade contra um modelo perverso que faz da acumulação privada da riqueza a única razão de viver. A luta é da humanização contra a desumanização, da solidariedade contra a alienação, da vida contra a morte.

A crise da esquerda não resulta apenas da queda do Muro de Berlim. É também teórica e prática. Teórica, de quem enfrenta o desafio de construir um socialismo sem stalinismo, dogmatismo, sacralização de líderes e de estruturas políticas. E prática, de quem sabe que não há saída sem retomar o trabalho de base, reinventar a estrutura sindical, reativar o movimento estudantil, incluir em sua pauta as questões indígenas, étnicas, sexuais e ecológicas.

Neste mundo desesperançado, apenas a imaginação e a criatividade são capazes de livrar a juventude da inércia, a classe média do desalento, os excluídos do sofrido conformismo. Isso requer uma ideologia que resgate a ética humanista do socialismo de inspiração cristã e abandone toda interpretação escolástica da realidade. Sobretudo toda atitude que, em nome do combate à velha ordem, faz a esquerda agir mimeticamente ao incensar vaidades, apegar-se a funções de poder, ceder à corrupção, reforçar a antropofagia de grupos e tendências que se satisfazem em morder uns aos outros.

O pólo de referência de todos que pretendem alcançar “um outro mundo possível”, em torno do qual precisam se unir, é somente um: os direitos dos pobres.

- Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Paulo Freire e Ricardo Kotscho, de “Essa escola chamada vida” (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/fr/node/124391
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