Folha de coca:

O desrespeito a uma cultura milenar

12/03/2008
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Bolivianos rechaçam recomendação da ONU para que se proíba o hábito de se mascar coca e defendem qualidades da planta

Acullicu
ou pijcheo. Duas palavras que a Comissão de Entorpecentes da Organização das Nações Unidas (ONU) definitivamente não conhece. Pelo menos não no seu sentido mais transcendente, cultural. Sagrado.

Ambas significam o ato de se mascar folha de coca. A primeira é em aymara, a segunda em quéchua, as duas principais línguas indígenas da Bolívia. Acullicar ou pijchar, no entanto, vão mais além que isso. São um costume de mais de três mil anos dos povos andinos, assim como também são milenares os usos da planta na região.

Nas reuniões de sindicatos ou movimentos, em encontros de amigos, em festas, no trabalho nas minas, em rituais religiosos, em tratamentos médicos.  Em muitas ocasiões do cotidiano boliviano, a coca ou o ato de mastigá-la está presente como elemento central. Freqüentemente, a bochecha avultada de alguma pessoa acusa o acullicu ou o pijcheo que, além de tudo, estão associados a inúmeros benefícios medicinais e nutritivos.

Pois a ONU, através do informe de 2007 da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (JIFE), entidade colaboradora de sua Comissão de Entorpecente, “exorta os governos da Bolívia e do Peru a adorarem medidas, sem demora, com vistas a abolir os usos da folha de coca contrários à Convenção de 1961, incluída a prática de marcá-la”.

Sustento

A Convenção de 1961 inclui a planta andina em uma lista de entorpecentes proibidos internacionalmente. De acordo com o documento, a mastigação de coca, assim como o consumo de chás ou qualquer outro derivado, tem um impacto no aumento da dependência às drogas na Bolívia que, segundo a entidade, vem aumentando no país.

Desse modo, pede que, além da proibição ao consumo de coca, o governo adote programas educativos que previnam “a expansão dessa prática nos estudantes e jovens em geral, nos condutores de veículos de transporte público e outros grupos vulneráveis da população da Bolívia”.

“Esse informe produz um dano grande a nós que cultuamos a coca e acullicamos. Não é a coquita que mata, que envenena. Ao contrário, ela nos dá força para o trabalho. Não podem cortar o acullicu e a coca. Esse é nosso pão, o sustento de nossas famílias. Nós temos todo o direito de nos mantermos, de sobrevivermos. A ONU não pode nos destruir com suas leis que impõem que a coca e o acullicu devem morrer”, revolta-se Pastor Mamani, dirigente da Federação de Chulumani, organização de plantadores de coca da região de Yungas, ao norte de La Paz. “Em seu estado natural, ela não é droga. É uma folha sagrada, milenar”, completa.

Para a nutricionista Maria Eugenio Tenorio, a ONU considera a folha de coca ruim porque “lhe disseram isso há muitos anos”. Segundo ela, existem produtos realmente danosos que não são levados em conta, como o tabaco e o óleo reciclado. “Ninguém sabe, fora dos EUA, que, antes de entrarem nas partidas, os jogadores de futebol americano mascam tabaco. Agora, muito mais prejudicial que o próprio tabaco é o óleo reciclado, cuja permissão de utilização foi dada em 1996 pela Organização Mundial da Saúde. Sabemos que ele causa câncer ao fígado e ao pâncreas”.

“Aberração”

Na opinião da socióloga Silvia Rivera, o informe da ONU é uma agressão à soberania boliviana e à cultura indígena. Além disso, baseia-se em um estudo sem rigor científico e vai de encontro aos interesses da medicina ocidental.

De acordo com ela, em 1950, a entidade enviou à Bolívia uma comissão para investigar a folha de coca. “O documento que se originou daí era uma aberração, baseado em especulações, em provas fragmentárias. Só estiveram aqui 18 dias e entrevistaram donos de fazendas, capatazes de minas, engenheiros, médicos. Nunca chegaram diretamente ao consumidor. Quem dirigia essa comissão era o presidente da American Pharmaceutical Association”, conta.

Segundo a socióloga, nessa época havia uma medicina com uma visão progressista, que considerava superstições qualquer medicina indígena. Desse modo, tal estudo segue vigente e com base nele a coca foi incluída como substância ilegal na Convenção de 1961. Ela lembra, ainda, que uma cláusula desta convenção permitia a produção, a compra e venda e o transporte da folha de coca apenas para saborizante sem alcalóides. “E a patente mundial da coca como saborizante é da Coca-Cola. Ou seja, se protege os interesses dessa corporação”.

Interesses

No entanto, para Rivera, outros interesses também são atendidos, como os da indústria farmacêutica e da medicina ocidental. “O negócio é mais importante que a saúde. O objetivo não é curar, mas criar dependência. É o vício à droga tolerado. Nesse contexto, a coca é uma ameaça”.

Acompanhando a indignação da população em geral, o governo da Bolívia rechaçou a recomendação da ONU, chamando a Jife de “ignorante e anacrônica”. No dia 10, em Viena, na Áustria, uma delegação do país deixou claro seu protesto na abertura da reunião da Comissão de Entorpecentes do organismo.

Em seu discurso, o vice-chanceler boliviano, Hugo Fernández criticou a “desconsideração e falta de respeito” da Jife com relação a uma tradição de mais de três mil anos. Na ocasião, Fernández anunciou uma solicitação formal de retirada da folha de coca da lista de entorpecentes da ONU.

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UMA PLANTA COMPLETA

“Coca não é cocaína”. O argumento de pesquisadores bolivianos e cidadãos comuns é contundente. Eles deixam claro que a cocaína é produzida através de um alcalóide da planta, e que, para isso, ele deve passar por um processo químico.

Mas, mais que tudo, defendem as diversas propriedades medicinais e nutritivas da “folha sagrada”. Segundo a nutricionista Maria Eugenio Tenorio, a planta andina atua nos sistemas respiratório, digestivo, circulatório e nervoso central. “É boa para dor de estômago, dor muscular. Eu, por exemplo, emagreci 14 quilos. Eliminei o problema grave de gota que tinha. Sinto-me muito bem, fisicamente e espiritualmente. Vejo a vida com outros olhos”, conta.

Ela explica também que a folha de coca contém uma grande quantidade de cálcio, maior, por exemplo, que a do leite. Tal nutriente ajuda a fortalecer os ossos e a combater a osteoporoses. “Por isso que os fósseis de nossos antepassados, quando desenterrados, possuem arcadas dentais completas”, exemplifica.

Benefícios

A folha de coca, de acordo com alguns estudos, elimina gorduras, o colesterol e os triglicérides, combate diarréias e hemorróidas, previne o câncer do cólon e do reto e é um bom suplemento para diabéticos, entre outros benefícios. A planta, além disso, aumenta o rendimento físico em trabalhos longos, pois faz baixar a produção de adrenalina e, conseqüentemente, o consumo de oxigênio. Daí o seu uso abundante nas minas.

Um estudo de 1973 realizado por investigadores da Universidade de Harvard, dos EUA, concluiu que a coca possui uma completa gama de vitaminas e minerais. Ela contém, por exemplo, três vezes mais fibra que os legumes, 14 vezes mais que as frutas e 15 vezes mais que os vegetais, além de uma grande quantidade de vitamina A.

Farinha

“Os lugares de grande altitude da Bolívia possuem comidas com poucas fibras, muitos carboidratos e bastante gordura. E a falta de fibra produz muitos problemas de estômago. Minha proposta é a industrialização da farinha de coca para adicionar à farinha de trigo ou qualquer outra”, explica Maria Eugenio.

É isso o que faz Silvia Quisbert, de uma padaria ecológica de La Paz. “Nós trabalhamos com a farinha de coca orgânica. Colocamos 90% de farinha de trigo, ou de milho, e 10% de farinha de coca”, explica. O resultado são as tortas, bolos, bolachas, empanadas e até chocolates que ela produz, todos com uma coloração verde.

Para a micro-empresária, a recomendação da ONU se deve à má informação por parte dos responsáveis pelo informe. “Nossa folha sagrada não surgiu esse ano. É nossa alimentação”.

O tratamento anti-drogas com base na coca

Jorge Urtado, médico boliviano fundador do Museu da Coca de La Paz, contraria radicalmente a afirmação da ONU de que o acullicu leva ao vício em relação às drogas. Ele utiliza justamente a mastigação da folha de coca para recuperar dependentes de cocaína. De acordo com ele, antes de usar tal método, 25% dos viciados deixavam de consumir a droga. Com o acullicu, a proporção subiu para 50%.

Três milênios de tradição

O uso da folha de coca pelos povos indígenas dos Andes remonta a mais de três mil anos. A descoberta de estátuas representando humanos com uma protuberância em uma das bochechas demonstra que o hábito de se mascar coca é milenar.

De acordo com a socióloga Silvia Rivera, a coca, para os andinos, era um bem de grande valor, e que possuí-la era sinal de prestígio. Na época do Império Inca, havia, inclusive, plantações estatais. “Seu uso tinha a ver com as relações de poder”.

Já na era colonial, os espanhóis costumavam fornecer folha de coca para os índios que trabalhavam nas minas. “Os grandes produtores de coca eram espanhóis. A partir do século XVII, na região de Yungas [ao norte de La Paz], eles começaram a possuir grandes fazendas que utilizavam mão-de-obra escrava negra. Nesse período, há um aumento no consumo devido à intensificação do trabalho minerador. Havia uma enorme rede de comerciantes indígenas que vinculavam o produtor com o consumidor. Foi a primeira mercadoria indígena moderna”, conta.

Religião

A Bolívia é o terceiro maior produtor mundial de coca, depois da Colômbia e do Peru. O governo boliviano estima que, mensalmente, cerca de 1,1 mil toneladas de coca são consumidas no país. Silvia Rivera calcula que existam três milhões de acullicadores.

Além do uso medicinal e nutricional, a folha de coca está fortemente vinculada à religião andina, sendo parte central dos rituais. “A religião indígena está baseada no culto aos ancestrais, que estão encarnados em acidentes geográficos, como morros, rios, lagos. E em todas as cerimônias se utiliza a folha de coca”, explica.

Além disso, a planta possui uma significativa importância na socialização dos povos andinos. “Todo evento social começa sempre com a coca. Toda discussão em um sindicato, em uma organização indígena, todas as festividades, todos os conflitos etc”.


- Igor Ojeda é correspondente do Brasil de Fato em La Paz.


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