O resgate da memória é sempre uma condição sine qua non para se projetar o futuro

08/06/2008
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O encontro recente da FAO - Organismo das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura - reuniu a maioria dos governos e presidentes de varias nações para debater sobre a fome e a pobreza no mundo. Ao dizer em suas premissas que o encontro de Roma oferecia uma ocasião histórica de retomar a luta contra a fome e a pobreza, se poderia supor que o governo brasileiro iria aproveitar desta Cimeira para relembrar o centenário de um brasileiro nordestino, conterrâneo do Presidente Lula da Silva. Nascido no Estado de Pernambuco, o médico, geógrafo e sociólogo Josué de Castro (1908-1973) foi o pioneiro no combate à fome no mundo. Ele foi o representante do Brasil na conferencia da FAO em Genebra em 1947, tornando-se presidente deste organismo internacional no período de 1952 a 1956. Autor de dois livros conhecidos mundialmente, traduzidos em 24 línguas, o primeiro intitulado a Geografia da Fome e outro Geopolítica da Fome.

O conterrâneo de Lula, Josué de Castro, viveu seu exílio em Paris, ficando conhecido por sua incansável luta contra a fome e a miséria. Dizia que não adiantava somente produzir os alimentos, era necessário também que esses alimentos pudessem ser comprados e consumidos por grupos humanos necessitados. Josué de Castro aproveitou do otimismo reinante do pós-guerra para chamar atenção das grandes potências de que já era tempo de sair da economia colonial para a economia baseada na reciprocidade da cooperação, levando em conta os interesses comuns. Ele salientava que essa reciprocidade não ia provocar a falência das metrópoles colonizadoras, bastava vontade política para libertar o homem da miséria. Entretanto, até hoje os paises ricos não aplicam a reciprocidade na cooperação, principalmente na área da agricultura. Os países pobres não têm condições de competir com uma agricultura altamente protecionista e subvencionada. Em 2007, cerca de 320 bilhões de dólares por ano foram concedidos aos agricultores dos paises ricos. Enquanto isto, os preços dos alimentos básicos subiram entre 20 a 70% em 2007 e se continuar este ritmo, assistiremos a um verdadeiro “tsunami” silencioso da fome como alguns evocaram durante na Cimeira da FAO em Roma.

O humanista Josué de Castro, desde a década de 50, detinha uma visão sistêmica do desenvolvimento. Segundo ele, a questão da Fome não seria resolvida somente com o aumento de produtividade agrícola e distribuição de alimentos; era necessário pensar também nos que trabalhavam a terra nos paises pobres. Dizia sim à produtividade, mas com uma melhor repartição do fruto do progresso. Dizia sim à produtividade, mas chamava atenção para degradação dos solos. Não escondia sua admiração pelo sábio inglês Albert Howard (1873-1947), um dos fundadores da agricultura biológica, que desde 1943 contesta o uso de fertilizantes químicos para uma boa conservação do solo. Dai que a leitura ou releitura, hoje, da Geopolítica da Fome pelos organizadores do encontro da FAO seria uma bela homenagem ao grande humanista que dirigiu os destinos da instituição nos anos 50. O resgate da memória é sempre uma condição sine qua non para se projetar o futuro.

Que balanço temos hoje do papel da FAO e de outras Instituições que integram o sistema das Nações Unidas no combate a fome e a pobreza? Tivemos no século XX, e atualmente, uma proliferação de encontros internacionais, fóruns, cimeiras etc. Muitos discursos, relatórios e inúmeras convenções internacionais. As conferências internacionais da ONU passaram a ser excelentes tribunas para os atores globais demonstrarem aos canais de televisões internacionais, que eles estão comovidos com a Fome que continua a se alastrar, perplexos com a degradação sócio-ambiental do planeta!

Segundo os protagonistas do poder político em escala mundial, chegou a hora de fazer proposições inovadoras, concretas e realistas e definir novos paradigmas de desenvolvimento! Bla-bla-bla e pouca vontade política para agir de forma conseqüente. Até quando os países mais pobres do planeta esperarão que a contribuição pública ao desenvolvimento cumpra a meta prevista de 0.7% do PNB dos paises ricos? Nos últimos dez anos a ajuda pública ao desenvolvimento caiu em 30%. Segundo a OCDE, a ajuda pública ao desenvolvimento em 2007 recuou de 8.4% com relação a 2006, representando apenas 0.28% do produto bruto nacional. A proteção ambiental compromete hoje menos de 1% do orçamento total da ONU!

Os países ricos impuseram, ao longo do século passado, estratégias de desenvolvimento que pilharam e degradaram o meio ambiente e destruíram relações sociais sem levar em conta a especificidade cultural e dinâmica locais. As desigualdades sociais, o aumento da pobreza, as diferenças de renda entre os países, a degradação dos ecossistemas rurais e urbanos são indicadores do fracasso das políticas de desenvolvimento e do modelo atual da governança global. Esse modelo difunde imagem de uma sociedade reunificada em torno de valores comuns da ideologia neoliberal, onde prima a competitividade, o livre comércio, o individualismo, produzindo um modo de ser e de pensar consensual em torno do capitalismo. Hoje esse modelo tornou-se prisioneiro de suas próprias contradições, os governos soberanos das grandes potências delegaram os poderes a uma governança mundial que governa sem governo, que constrói legitimidade sem democracia representativa e resolve os conflitos internacionais sem necessidade de dispor de maioria. E ainda deixa de fora dos processos de decisões os governos dos chamados paises do Sul. Basta ver as inúmeras tentativas feitas para mudar as regras de funcionamento da OMC. A realidade só emerge como consciência, como problema, quando apresenta uma reação para a qual não achamos resposta.

O crescimento econômico há séculos vem se movendo entre dois infinitos: o infinito dos recursos naturais da Terra e o infinito do desenvolvimento econômico. Chega a seus limites a afirmação de que poderíamos crescer indefinidamente, produzir o máximo possível, explorar sem barreiras os recursos dos solos, ter acesso cada vez mais à tecnologia, ter e ter mais. A questão do desenvolvimento como sinônimo de progresso econômico, de conforto material, de consumo perdulário desencadeou, ao longo dos tempos, um processo de degradação socio-ambiental em larga escala, comprometendo a vida de muitas espécies, inclusive a espécie humana. E esta é a mais ameaçada, sobretudo quando ela é pobre.

Para os dirigentes da FAO e chefes dos governos presentes no encontro de Roma bastava buscar resposta concreta para esta questão: como salvar a vida do ser humano pobre, explorado, preservando o equilíbrio da natureza? Estamos diante de uma crise de civilização que exige uma reformulação do nosso modo de viver e de pensar. Trata-se de alcançar não apenas um melhor nível de vida, mas também uma melhor qualidade de vida em todos os sentidos. Este é o momento para se redefinir valores, comportamentos e idéias à luz de uma nova ética que defenda o equilíbrio entre natureza e intervenção humana - um desenvolvimento harmônico e não predatório que assegure condições dignas de existência às gerações futuras.

- Marilza de Melo Foucher é Dra.em Economia, especializada em Desenvolvimento Territorial Integrado e Sustentável.
https://www.alainet.org/fr/node/128046
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