Dois amigos
- Opinión
A comemoração (= fazer memória) da Paixão de Jesus me remete a dois amigos recentemente transvivenciados e a quem me ligavam laços de fraternura: Victor Siaulys e Márcio Moreira Alves.
Vítima de leucemia, Victor me chamou ao hospital no domingo, 15 de março. Mulher, filhos e alguns amigos rodeavam-lhe o leito. Após anos de incansável luta contra a doença, o homem que fabricava remédios – era sócio do laboratório Achê – sabia que a ciência chegara a seu limite. Seu organismo definhava, a dor o consumia, embora o espírito estivesse impregnado da fé que, sobretudo nos últimos anos, lhe dilatava o coração.
Disse-me desejar atravessar a linha da vida. Perguntou-me se tal anseio é pecado. Respondi-lhe que não; é direito. A ciência esgotara seus atuais recursos. Agora, nem se devia apressar-lhe a transvivenciação, nem adotar procedimentos que trazem lucro aos hospitais sem esperança ao paciente. Melhor permitir que a natureza cumprisse, no seu ritmo, os desígnios de Deus.
Victor queria saber se Deus haveria de recebê-lo bem. Lembrei-lhe que Deus é Amor e ele, Victor, a amorosidade personificada, como atestam todos que tiveram o privilégio de conhecê-lo. Seu testemunho de vida, ele o registrou em sua autobiografia, "Mercenário ou missionário?” (São Paulo, ed. Laramara, 2008), redigida durante os meses de enfermidade.
Entre as muitas obras da família Siaulys se destaca a Laramara, a mais respeitada instituição do Brasil destinada à qualificação profissional de cegos de baixa renda.
Frisei que, à porta do Céu, ele seria bem acolhido por são Pedro que, como ele, veio de uma família de peixeiros. Victor sorriu. Orgulhava-se de ser filho de imigrante lituano que, graças à banca de peixes nas feiras-livres de São Paulo, sustentou a família e o estudo dos filhos.
Oramos juntos, dei-lhe a bênção e, em seguida, ele fechou os olhos e dormiu. Quatro dias depois, faleceu. Deixou escrito o próprio epitáfio, um poema de louvor à existência. E predeterminou que cada pessoa presente ao velório saísse dali levando em mãos um símbolo da vida: num pequeno jarro, a muda de ipê amarelo. Doravante, todos os ipês amarelos são, para mim, sacramentos da presença amorosa de Victor Siaulys.
No sábado, 4 de abril, foi a vez da partida de Marcito, como os amigos tratavam Márcio Moreira Alves. Jornalista e político, foi o primeiro a desnudar, em livro, a ditadura militar, ao relatar seu caráter desumano no livro “Torturas e torturados” (Rio, Idade Nova, 1966). Foi também o primeiro a perceber que uma nova Igreja Católica brotava de comunidades populares reunidas para celebrar a fé em Jesus libertador.
Eleito deputado federal pelo Rio, em 1966, pronunciou o mais famoso discurso contra o regime militar, ao instigar a população a ausentar-se das comemorações do 7 de setembro de 1968. O tom indignado e profético de seu pronunciamento serviu de pretexto à decretação do Ato Institucional no 5, a 13 de dezembro do mesmo ano. O Brasil mergulhou nas trevas e Marcito deixou o país clandestinamente.
Ao retornar do exílio em 1979, reassumiu o jornalismo e foi atrás do “Brasil profundo”, como ele qualificava aquelas situações que, para o bem ou para o mal, traduzem a verdadeira face da realidade brasileira.
Afetado por um acidente vascular, recolheu-se à vida familiar. Visitei-o com frequência em casa e no hospital. Gostava de receber a bênção da saúde. Em seu velório, li trechos da carta que me escreveu de Vitória, em junho de 1966, ao terminar sua pesquisa para a redação da obra “O Cristo do povo” (Rio, Sabiá, 1968). O contato com bispos, padres, religiosas e, sobretudo, leigos, a gente pobre que iniciava, Brasil afora, as Comunidades Eclesiais de Base, suscitou em Marcito o reavivamento da fé cristã:
“Betto irmão: Estou sozinho em meu quarto de hotel, à espera do avião, com todo o esquema de um livro montado na cabeça e consciente de que não mais poderei atrasar o momento de começar a transformá-lo em linhas, páginas e capítulos. (...) Não só encaminhei-me para a Fé, titubeante a princípio, incerto ainda em muitos pontos, sobretudo de ignorância, mas hoje já sólido e acho que tocado pela Graça, meti-me em todo o mecanismo da Igreja no Brasil, vasculhando-lhe os porões, descobrindo primeiro suas fraquezas mas também sua glória e missão. É isto que me atemoriza. Sei que cada um de nós tem de dar seu testemunho. Mas estou mal preparado para o meu. Entrei nas investigações com espírito político e chego ao fim com espírito cristão. É muito mais difícil e jogo com instrumentos pouco familiares, que não domino direito.
“(...) E mais, de ver-me de posse de uma massa de informações que me coloca, cristão novo e incerto, com a responsabilidade de julgar os outros e a minha Igreja. Eu sabia que o compromisso que assumia de viver cristãmente ia ser duro, sobretudo para minha vida pessoal, hedonista e, talvez, para minha vida pública, ambiciosa. Mas até aí o risco era meu, pessoal e, possivelmente, de minha mulher, sem cujo apoio não poderia caminhar muito.
“Só a ti é que escrevo tudo isto. Precisava desabafar um pouco. (...) Um abraço do Márcio.”
- Frei Betto é escritor, autor de “A mosca azul – reflexão sobre o poder” (Rocco), entre outros livros.
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