Carnaval espiritual

07/03/2011
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 Neste Carnaval anseio por  folias interiores, de maravilhas indescritíveis, de sinuosos alaridos, de  magnificências a dispensar ruídos e palavras. Quero toda a avenida regida por  inequívoco silêncio, o baile imponderável em gestos rituais, a euforia  estampada em cada sorriso.

 Rasgarei a fantasia de minhas  pretensões e, despido de hipocrisias, deixarei meu eu mais solidário desfilar  alegre pelas recônditas passarelas de minha alma.

 Fecharei os  ouvidos à estridência dos apitos e, mente alerta, escutarei o ressoar melódico  do mais íntimo de mim mesmo. Deixarei cair as máscaras do ego e, nas alamedas  da transparência, farei desfilar, soberba, a penúria de minha condição  humana.

 Aplaudirei os sambistas com fogo nos pés e as mulatas  eletrizadas pelo ritmo da batucada. Mas não me deixarei arrastar pelo bloco da  concupiscência. Inebriado pelo ritmo agônico da cuíca, serei o mais  iconoclasta dos discípulos de Momo, recolhido ao vazio de minha própria  imaginação.

 Neste Carnaval serei figurante na escola da  irreverência e desfilarei pelas ruas meu incontido solipsismo, até cessar a  bateria que faz dançar os fantasmas que me povoam. Envolto na desfantasia do  real, atirarei confetes aos foliões e perseguirei os voos das serpentinas para  que impregnem de colorido as diatribes de meu ceticismo.

 No  estertor da madrugada, farei ébrias confidências à Colombina e, Arlequim  apaixonado, ofertarei as pétalas que me recobrem o coração. Não porei olhos no  desfile da insensatez, nem abrirei alas à luxúria do moralismo. Quando a  porta-bandeira desfraldar encantos, ficarei ajoelhado na ala das baianas para  reverenciar o Almirante Negro.

 Ao eco dos tamborins, esperarei  baixar a sofreguidão que me assalta, buscarei a euforia do espírito no avesso  de todas as minhas crenças, exibirei em carros alegóricos as íngremes ladeiras  da montanha dos sete patamares.

 Darei vivas à vida severina,  riscarei Pasárgada de meu mapa e, ainda que não me chame Raimundo, farei da  rima solução de tantos impasses nesse devasso mundo. Expulsarei de meu  camarote todos os incrédulos do Pai Nosso cegos aos direitos do pão  deles.

 Revestido de inconclusas alegorias, sairei no cordão das  premonições equivocadas e, vestido de Pierrô, aguardarei sentado na esquina  que a noite se dissolva em epifânica aurora.

 Ao passar o corso  da incompletude, abrirei as gaiolas da compaixão para ver o céu coberto pela  revoada de anjos. Trocarei as marchinhas por aleluias e encharcarei de perfume  os monges voláteis incrustados em minhas imprudências.

 Olhos  fixos no esplendor das batucadas siderais, contemplarei o desfile fulgurante  dos astros na Via Láctea. Verei o sol, mestre-sala, inflamar-se rubro à dança  elíptica da cabrocha Terra. Se Deus der as caras, festejarei a beatífica  apoteose.  

 No cortejo dos Filhos de Gandhy, evocarei os  orixás de todas as crenças para que a paz se irradie sobeja. Do alto do trio  elétrico, puxarei o canto devocional de quem faz da vida a arte de semear  estrelas.

 Entoado o alusivo, darei o grito da paz, pronto a fazer  da comissão de frente o prenúncio do inefável. No reverso do verso, cunharei  promissoras notícias e, no quesito harmonia, farei a víbora e o cordeiro  beberem da mesma fonte.

 Meu enredo terá a simplicidade de um  haicai, a imponência de um poema épico, a beleza das histórias recontadas às  crianças. De adereços, o mínimo: a felicidade de quem pisa os astros  distraído.

 Farei da nudez a mais pura revelação de todas as  virtudes; assim, ninguém terá vergonha de mostrar o que Deus não teve de  criar, e a culpa será redimida pelo amor infindo. A rainha da bateria virá tão  bela quanto uma vitória-régia pousada numa lagoa despudoramente límpida. Sua  beleza interior suscitará assombro.

 A evolução da escola  culminará em revolução: a fantasia se fará realidade assim como o sertão há de  vir amar e o mar de ser tão pellegrinamente pão do  espírito.

 Neste Carnaval não haverei de me embriagar de etílicos  prazeres nem me deixarei arrastar pelos clóvis a disseminar o medo entre  alegrias. Irei aos bailes rituais e me submeterei às libações subjetivas,  ofertarei ao Mistério cálices de clarividências e iluminuras gravadas em  hóstias.

 Enclausurado na comunhão trinitária, ingressarei na  festa que se faz de fé e na qual toda esperança extravasa no amor que não  conhece dor. Então a palavra se fará verbo, o verbo, carne, e a carne será  transubstanciada em festival perene – Carnaval.

- Frei  Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Barros, de “O amor fecunda o  Universo – ecologia e espiritualidade” (Agir), entre outros livros –  www.freibetto.org

Copyright 2010 – FREI BETTO - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br
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