Arte e meditação

04/01/2013
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     Participei, em fins  do ano passado, de três encontros com grupos de oração em torno do tema arte e  meditação.  
     
     Toda obra  de arte é sacramento, sinal sensível do que não se vê e, no entanto, ela  expressa. Dela emanam sinais polissêmicos. Ela “fala” a cada observador. E  este estabelece com ela uma relação sujeito-sujeito, dialógica,  interativa.
     
     A  arte desperta-nos a intuição e a emoção. Nos re-liga com algo que, até então,  escapava à razão. Daí sua relação com a religião. Ela emite sinais que não são  controlados nem pelo artista nem pelo apreciador.  
     
     A arte,  como a meditação, nos induz ao mergulho no próprio eu, lá onde o ego se desfaz  qual botão de rosa a se abrir em flor, e nos aproxima da ideia de beleza e  harmonia. Enleva-nos, faz-nos apalpar o Mistério, balbuciar o  impronunciável.
     
     Ao  contemplar ou desfrutar da obra de arte – pintura, balé, música – ela se  metaboliza em nossa sensibilidade. Ao meditar, refluímos os cinco sentidos no  núcleo axial que nos remete ao verdadeiro eu e que, na verdade, é um outro que  funda nossa verdadeira  identidade.
     
     O  que é, hoje, obra de arte? Há uma dessacralização da arte. O início desse  processo talvez possa ser demarcado pela obra “A fonte”, de Marcel Duchamp,  criada em 1917, e representativa do dadaísmo. Trata-se de um urinol de  porcelana, idêntico a milhares encontrados em mictórios públicos. Exposto em  Paris, está avaliada em 3 milhões de  euros.
     
     Hoje  em dia o valor da obra de arte, sua aceitação pelo público, tem muito a ver  com a performance do artista. Vide os cantores pop. E é o mercado, apoiado na  mídia, que determina o que tem ou não valor.  
     
     Muitos  artistas morreram sem serem reconhecidos, como Van Gogh, que em vida jamais  vendeu uma tela. Presenteou seu médico com o quadro “Rapaz de quepe”, que o  doutor aproveitou para tapar um buraco no galinheiro de sua casa... Há pouco  esta tela foi vendida por US$ 15  milhões!
     
     Todo  artista se julga digno de valor e reconhecimento. Isso, entretanto, depende  dos críticos, da mídia, da reação do público. São raros aqueles que, mesmo sem  cair no gosto do mercado, permanecem fiéis a seu talento criativo.  
     
     O que pode  ser admirado hoje, pode ser desprezado amanhã. É o caso de um dos  autorretratos de Rembrant. A cada vez que deixava a Holanda, a tela era  assegurada em US$ 4 milhões. Uma comissão de peritos e críticos, que analisou  todos os quadros atribuídos ao genial pintor holandês, concluiu que um dos  autorretratos, embora assinado com o nome dele, não pode ser atribuído a ele.  A obra caiu no  ostracismo...
     
     O  nosso olho, a nossa sensibilidade para a obra de arte, são condicionados pela  opinião pública. Esta tende a ser elitista. Considera arte o que atrai o  público pagante; e folclore o que atrai pessoas desprovidas de recursos.  
     
     Não me  agrada a adjetivação “arte popular”. Nessa categoria costumam entrar as obras  de todos que não possuem suficiente erudição artística nem frequentam as rodas  que se fecham em galerias sofisticadas ou palcos refinados.  
     
     A  meditação, como a arte, exige cuidado, ascese, empenho, confiança na própria  capacidade criativa. Tanto a arte como a meditação nos conectam com o  Transcendente, nos fazem emergir da esfera da necessidade para a da  gratuidade, dilatam em nós potencialidades que nos fazem “renascer”.  
     
     Não é sem  razão que as religiões, sobretudo em suas liturgias, tanto recorrem à arte e  têm sido, ao longo dos séculos, escolas de artistas. Quantos cantores e  músicos estadunidenses não iniciaram sua arte em igrejas  evangélicas!
     
     Infelizmente  o mercado nos impõe, pela mídia espetaculosa, o mero entretenimento como se  fosse obra de arte. Nisso se parecem às liturgias que exacerbam nossa emoção  sem nada acrescentar à nossa razão e, muito menos, ao caráter ético de nossa  ação. Vide as showmissas.  
     
     A arte não  há de ser de esquerda ou de direita, moralista ou inescrupulosa. Há de ser  bela. Consta que eram nuas todas as esculturas e figuras pintadas por  Michelangelo no Vaticano. Até que um papa escrupuloso pediu a Daniele  Volterra, discípulo do genial artista, para cobrir com uma pincelada os órgãos  genitais... censura removida recentemente por peritos japoneses. Volterra  ganhou o apelido de “Il Braguetone”, O  Braguilha...
     
     Todo  artista é clone de Deus. Extrai de sete notas musicais, dos movimentos do  corpo, do desenho, do barro, do modo de narrar uma história, o que há de belo  no humano e na natureza. Recria ao criar. E sempre o faz partir de um estado  de concentração comparável à meditação.
 
 
Frei Betto é  escritor, autor de “A obra do Artista – uma visão holística da natureza” (José  Olympio), entre outros livros.  
 
http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
 
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