Melhorar a vida nos países pobres é melhorá-la em todas as nações
- Opinión
[O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu que os governos nacionais assumam sua responsabilidade no combate à fome, e uma estratégia integrada entre proteção social e apoio à agricultura nesta sexta-feira (5). O ex-presidente falou no encerramento do Fórum de Ministros da Agricultura na Expo Milão 2015, que reuniu autoridades, ONGs e especialistas em agricultura e alimentação. A Expo 2015, a Feira Mundial, tem neste a alimentação como o seu tema principal.
O Fórum de Ministros da Agricultura divulgou a “Carta de Milão” que defende o acesso à água, alimentos saudáveis e energia para todos no planeta. Para o ex-presidente, a Carta irá contribuir para construir uma consciência global sobre a segurança alimentar. Leia abaixo a íntegra do discurso escrito do ex-presidente:
Fórum Internacional de Ministros da Agricultura – Expo Milão
Milão, 05 de junho de 201
É uma honra, para mim, participar da sessão de encerramento do Fórum Internacional de Ministros da Agricultura. Meus agradecimentos aos organizadores pelo convite.
Saúdo especialmente nosso anfitrião, o Ministro da Agricultura da Itália, Sr. Maurizio Martina, que tanto se empenhou pelo sucesso deste evento, e na pessoa de quem cumprimento todos os ministros e demais convidados.
A Exposição Mundial de Milão foi especialmente feliz ao chamar a atenção do mundo para o problema da fome. Esta é uma oportunidade única para disseminar a mensagem de que é possível, sim, superar o desafio da fome e da pobreza, como alguns países já estão fazendo.
A condição fundamental para isso é abordar a fome e a pobreza como questões de Estado, por meio de políticas públicas abrangentes, com fontes de financiamento previstas nos orçamentos nacionais.
O combate à fome e à pobreza é indissociável da promoção do desenvolvimento econômico inclusivo, capaz de gerar empregos e oportunidades, e de programas eficazes de distribuição de renda.
A Carta de Milão, que acabamos de firmar, contribuirá para construir uma consciência global em torno segurança alimentar, com qualidade para a vida saudável, e da sustentabilidade ambiental, social e econômica na produção de alimentos.
Faço votos de que esse documento tenha ampla difusão nas escolas, nos locais de trabalho, nos meios de comunicação e redes sociais ao redor do mundo.
Meus amigos, minhas amigas
Tenho consciência de que o convite para falar neste evento é um reconhecimento generoso da trajetória do meu País na superação da fome e da miséria. Este êxito pertence a todo o povo brasileiro.
Era simplesmente inexplicável que, num país tão rico em recursos naturais e humanos, 50 milhões de pessoas, quase um terço da população, vivessem abaixo da linha de pobreza, sujeitas à fome em pleno Século XXI.
Acabar com a fome tornou-se o principal objetivo do país depois que fui eleito presidente da República, em outubro de 2002. No discurso de posse, afirmei que teria cumprido a missão de minha vida se, ao final do governo, cada brasileiro pudesse tomar o café da manhã, almoçar e jantar todos os dias.
Investimos nesse objetivo o conhecimento acumulado em anos de debates, estudos científicos e experiências concretas da sociedade brasileira. Daí resultou o programa Fome Zero, criado sob a coordenação do professor José Graziano, hoje merecidamente Diretor Geral da FAO, por seu incansável ativismo nessa área.
O programa Fome Zero abrange um conjunto de políticas públicas articuladas entre si, das quais a mais conhecida é o Bolsa Família, considerado um dos melhores programas de distribuição condicionada de renda.
O Bolsa Família, como sabem, paga uma renda mensal às famílias mais pobres, mediante três condições: manter as crianças na escola, garantir que tomem todas as vacinas e, no caso das mulheres gestantes, que façam os exames de saúde.
A inscrição se faz por meio de um cadastro nacional, fiscalizado pelo Ministério Público e atualizado permanentemente. O pagamento é feito por meio de cartão magnético de um banco público, sem intermediários e sem burocracia. O cartão é emitido em nome da mãe, aumentando a garantia de que o dinheiro será usado com responsabilidade.
Com um orçamento de R$ 28 bilhões (cerca de 10 bilhões de dólares), que corresponde a 0,5% do PIB brasileiro, o programa atendeu em 2015 a 14 milhões de famílias, mais de 50 milhões de pessoas.
Esse dinheiro movimenta o comércio local, aumenta a demanda por produtos básicos e ajuda a criar novos empregos, formando um círculo virtuoso. E a população mais pobre, ao invés de ser tratada como problema, torna-se parte essencial das soluções para o desenvolvimento.
O fortalecimento da agricultura e a melhoria das condições de vida no campo são fundamentais no combate à fome. No Brasil, em 12 anos, ampliamos o crédito rural de R$ 22 bilhões para R$ 180 bilhões, cerca de 60 bilhões de dólares, o que nos levou a praticamente dobrar a produção de grãos.
Nessa estratégia, reservamos um papel especial aos pequenos e médios agricultores. Há 4 milhões de pequenas e médias propriedades rurais no Brasil, responsáveis por cerca de 70% dos alimentos que vão para a mesa das famílias.
Em nosso governo, desapropriamos 51 milhões de hectares, o que representa mais da metade de toda a reforma agrária feita no Brasil em 500 anos de história.
O crédito para os assentados da reforma agrária, para os pequenos e os médios produtores, com juros mais baixos, passou de R$ 2,8 bilhões para R$ 28 bilhões em 12 anos. Além de crédito, eles têm acesso a seguro contra a quebra de safra e garantia de preço mínimo.
Aprovamos uma lei que faz os governos locais comprarem 30% da alimentação escolar dos pequenos produtores de sua região. Além de garantir mercado para os agricultores, isso melhora a qualidade da alimentação escolar.
Abrimos mais de 1 milhão de cisternas nas regiões de semiárido do País, melhorando o acesso à água para suas populações.
E criamos um programa, chamado Luz Para Todos, que levou energia elétrica a 3 milhões de famílias rurais. Esse programa foi financiado com uma pequena parte das contas de consumo de energia elétrica, mas transformou a vida de milhões de pessoas.
Para levar esse projeto adiante, foram necessários 7,3 milhões de postes, 1 milhão de transformadores e 1,4 milhão de cabos de energia – o suficiente para dar a volta ao mundo 35 vezes. E foram gerados 466 mil empregos, a maioria entre moradores locais.
A chegada da energia elétrica permitiu que os agricultores comprassem bombas d’água e pequenas máquinas para agregar valor a seus produtos. Mais de 70% dessas famílias compraram a primeira geladeira; 80% compraram o primeiro televisor, e assim por diante, aumentando as vendas – e os empregos – na indústria.
Em 2008, uma das medidas que adotamos para reagir à crise mundial foi incentivar a compra de pequenos tratores, caminhões e implementos agrícolas, com redução de impostos e com crédito especial. Foram vendidos 58 mil tratores e 36 mil pequenos caminhões.
As políticas de segurança alimentar, de distribuição de renda e apoio à agricultura, combinadas com a valorização do salários e a ampliação do crédito, resultaram num expressivo avanço social: 36 milhões de pessoas saíram da extrema pobreza, mais de 40 milhões alcançaram um patamar de renda e consumo de classe média, 22 milhões de novos empregos foram criados em 12 anos.
A grande notícia que tivemos, em 2014, foi a declaração, pela FAO, de que o Brasil não está mais no Mapa da Fome. Ter alcançado essa conquista, no espaço de apenas uma década, é motivo de orgulho para toda uma geração de brasileiros.
Meus amigos, minhas amigas
A experiência brasileira em segurança alimentar confirmou que o desenvolvimento do campo ajuda a produção e a geração de empregos nas cidades.
Demonstrou também que o agronegócio pode conviver com a pequena e média propriedade; que é possível aumentar as exportações e ao mesmo tempo oferecer à população alimento farto, de qualidade, a preços acessíveis. Felizmente, no Brasil, há espaço para as mais variadas formas de produção.
Mais importante do que dobrar a nossa produção agrícola – de 100 milhões de toneladas para 200 milhões de toneladas por ano – foi tê-lo feito graças ao aumento da produtividade.
Nos últimos 25 anos, a produção de grãos no Brasil cresceu 234%, mas o aumento da área plantada, nesse período, foi de 50%.
Temos 57 milhões de hectares cultivados com grãos. O Brasil exporta 39% de toda a soja consumida no mundo. O País é o maior produtor e exportador de suco de laranja, com 77% do mercado mundial, de açúcar, com 45% do mercado, e de café, com 28%.
O Brasil tornou-se o maior exportador de carne bovina, com21% do mercado, e de frango, com 34%.
O agronegócio responde hoje por 23% do PIB brasileiro e por 30% dos empregos formais criados no País.
É muito importante lembrar que o avanço da produção agrícola no Brasil obedece a um rigoroso zoneamento agroecológico, que conseguimos implantar com sucesso em todo o território nacional.
Os agricultores brasileiros – de todos os portes – compreendem a importância da preservação do solo, do manejo racional da terra e da água e da seleção criteriosa de culturas para garantir a sustentabilidade da agricultura.
Quero lembrar também que nesses últimos anos o Brasil vem melhorando substancialmente os indicadores de preservação da floresta amazônica. A área de desmatamento caiu de 27 mil hectares em 2004 para menos de 5 mil hectares em 2014. E a recente aprovação da lei do Cadastro Ambiental Rural vai desencadear o maior processo de recuperação florestal do mundo.
Lembro, por fim, que o Brasil é o país que mais tem contribuído para a redução das emissões de carbono no mundo, entre outros motivos pela adoção massiva de práticas agrícolas corretas.
Muito desse progresso se deve ao desenvolvimento de tecnologia de agricultura tropical pela nossa empresa pública de pesquisa, a Embrapa, trabalho que é complementado pelas universidades.
O conhecimento de nossos doutores, técnicos e produtores vem abrindo caminho para novas variedades, novas técnicas e, sobretudo, melhores práticas agrícolas sustentáveis.
O Brasil tem oferecido cooperação tecnológica em agricultura tropical a diversos países, especialmente na África, que tem condições climáticas, geológicas e de solo muito semelhantes às do cerrado brasileiro.
Consideramos nossa obrigação compartilhar esse conhecimento com países empenhados em alimentar sua população e promover o desenvolvimento.
Meus amigos, minhas amigas
Felizmente, temos excelentes exemplos de politicas bem sucedidas de combate à fome e à pobreza em diversos países. Isso fortalece a nossa confiança na superação do grande desafio.
São muito estimulantes também os dados da FAO, indicando que caiu de 1 bilhão para 800 milhões o número de habitantes do mundo vivendo em insegurança alimentar, à mercê da fome e das doenças.
Além de continuar trabalhando para resgatar da fome estes 800 milhões de seres humanos, o mundo precisa se preparar para produzir mais alimentos e de melhor qualidade.
A FAO projeta que em 2050 a população mundial terá passado dos atuais 7 bilhões para 9,2 bilhões de habitantes.
Essa perspectiva nos obriga a aumentar a produção e incentivar o aumento da produtividade da agricultura, de forma sustentável do ponto de vista ambiental, econômico e social.
Obriga-nos a tomar medidas para reduzir o desperdício, seja na colheita, no transporte, no preparo ou no consumo de alimentos.
O mundo desenvolvido pode contribuir muito, e imediatamente, para enfrentarmos o desafio da alimentação, de duas maneiras.
Uma delas é adotar políticas de financiamento para o desenvolvimento da agricultura dos países mais pobres, especialmente dos países africanos. E isso inclui a transferência de tecnologias de produção.
A outra contribuição importante é adotar práticas comerciais mais justas, tornando os mercados consumidores mais acessíveis aos produtores do mundo em desenvolvimento.
Essas duas iniciativas combinadas podem realizar o potencial agrícola do continente africano.
A África tem imensas áreas de terra agricultável, tem fontes abundantes de água e alto potencial para geração de energia. Tem, principalmente, uma grande população que precisa e quer trabalhar com dignidade.
Eu tenho a convicção de que a África, recebendo os estímulos justos e necessários, pode deixar de ser um continente ainda marcado pela fome para se tornar um dos celeiros do mundo. Deixar de ser um problema, para se tornar uma grande solução.
Incentivar a produção agrícola e os projetos de desenvolvimento desses países – e também em outras regiões do planeta – é a forma mais eficaz de combater a fome. Isso vale para hoje e para o futuro.
Apoiar esses países, garantir acesso a mercados, torná-los parceiros no âmbito da segurança alimentar, é a resposta ao desafio de alimentar 9,2 bilhões de seres humanos no ano 2050.
Estou convencido de que este é também o caminho para construirmos um mundo mais seguro para todos, um mundo de paz.
É muito significativo que os problemas de alimentação no mundo de hoje sejam a fome, em algumas sociedades, e a obesidade, em outras.
Isso mostra o quanto temos a avançar na construção de um mundo menos desigual, mais justo, mais equilibrado.
Por isso acredito que a pauta da fome e de sua erradicação deve estar presente nas reuniões dos organismos multilaterais e nas instituições que debatem as crises econômicas.
Acredito que melhorar a vida das pessoas pobres e dos países pobres certamente melhorará a vida em todas as nações.
A cada ano crescem os contingentes de refugiados e de deslocados internos. São pessoas que deixam sua terra, empurradas por violência e conflitos regionais.
Acredito que é muito melhor apoiar o desenvolvimento dos países pobres do que fechar as portas dos países ricos à migração.
Quero concluir reiterando o agradecimento a todos por esta oportunidade.
A melhor e mais sincera homenagem que posso render aos organizadores da Exposição Mundial e a todos os que aqui vieram é levar a mensagem da Carta de Milão ao meu País.
E levarei esta mensagem a todos os lugares onde for.
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