Space Oddity: Uma extravagância ou uma necessidade?

27/01/2016
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Foto: filme “Interestelar” (2014). filme interestelar
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Aqui estou flutuando em volta da minha lata

Bem acima da lua

A Terra é azul e não há nada que eu possa fazer

(David Bowie, Space Oddity, tradução livre)

 

O título foi uma homenagem à música Space Oddity de David Bowie, onde Oddity pode ter várias traduções, como esquisitice, excentricidade, diferença, mas preferimos extravagância, pois parece uma palavra muito mais próxima ao contexto da música. Entretanto, este artigo tomará como ponto de partida outro campo da arte: o cinema.

 

Quem, em 2014, assistiu ao filme anglo-americano Interstelar, dirigido pelo excelente Christopher Nolan, talvez tenha achado que estava diante de uma simples obra de ficção científica baseada numa projeção artística de elementos produzidos pela ciência. Mas infelizmente, pelo menos em relação à primeira parte da obra cinematográfica, tudo é muito próximo de uma realidade para qual caminhamos, especialmente quando consideramos o crescente processo de mudanças do clima, desertificação de terras agricultáveis, e de extinção de espécies.

 

Na segunda parte, quando Nolan faz uma livre interpretação da “Teoria da Relatividade”, da “Teoria das Cordas”, de “buracos negros” e “buracos de minhoca”, ainda podemos questionar os limites entre realidade e arte. Mas em relação ao caos ambiental que se avizinha, traçado na parte inicial do filme, há muito de realidade e pouco de ficção, o que demonstra a gravidade do tema.

 

No roteiro dos irmãos Nolan, a desertificação do solo, as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade, e inúmeras pragas acabaram com as colheitas e fizeram a humanidade regredir para uma sociedade agrária em baixa escala, pois o número de sementes viáveis está cada vez menor. Tempestades de areia são uma constante, e a viabilidade da vida na Terra deixou de existir, motivo pelo qual o personagem principal é levado ao espaço para encontrar um novo planeta onde seja possível a “colonização humana”.

 

No filme teremos tecnologias avançadas, energias renováveis (como eólica e fotovoltaica), mas de vida, de procriação de espécies vegetais e animais, nada! O mundo passará a conviver com poucas culturas agrícolas, muitas das quais geneticamente modificada, com quase nenhuma capacidade de reproduzir. Não existirão mais borboletas, abelhas, pássaros, nada. A viver dos humanos que habitam o planeta passará a ser um contínuo trabalho agrário à espera do fim da espécie e da “morte do Planeta”.

 

E aqui começa a nossa saga. Não há nada de absurdo na primeira parte do filme Interestelar, ao contrário, já convivemos diariamente com o processo de extinção da vida em nosso planeta. Posso citar um exemplo bem próximo que assusta todos os apicultores gaúchos do sul do Rio Grande do Sul. A última leva reprodutiva de abelhas da estação praticamente não produziu zangões. A primeira justificativa levantada foi o clima, que tem forte influência na definição do sexo desta espécie. Mas existem outros fatores que caminharam junto, como o uso intensivo de agrotóxicos na produção de monoculturas como arroz, soja e eucaliptos, e a crescente clonagem de indivíduos estéreis, perfeitos para o uso industrial, mas inimigos diretos de todas os insetos e aves que contribuem para a disseminação da vida. Como espalhar o pólen de plantas que não tem pólen?

 

Todavia, este não é um fenômeno isolado no Rio Grande do Sul e no Brasil. É uma constante em diversos cantos do planeta. A grande maioria dos insetos reprodutores (abelhas, borboletas, dentre outros), já ingressaram no triste caminho da extinção. No momento a única exceção são as abelhas africanizadas, mais resistentes que, no entanto, não conseguem mais reproduzir zangões em quantidade suficiente para manter o equilíbrio ecológico.

 

O mesmo caminho é trilhado pelos anfíbios, quase todos ameaçados pela desertificação, pelo desaparecimento ou poluição de zonas úmidas, e pelo aquecimento sem precedentes da temperatura. E por mais que a Terra já tenha passado por vários ciclos de mudanças do clima, nunca a influência antrópica foi tão presente. Somos responsáveis pela extinção de mais de 90% (noventa por cento) das espécies conhecidas que deixaram de existir. Os outros menos 10%, ou foram vitimados por um cometa (dinossauros), ou pelo fim da era do gelo. A ação humana tem, sim, um papel fundamental na crise ecológica global e para as mudanças do clima.

 

Há aqueles que contestam o aquecimento global e sustentam que as mudanças climáticas estão associadas aos ciclos geológicos do planeta, e que estes processos, inclusive as grandes extinções, são comuns. Alguns chegam a citar o exemplo da “explosão do vulcão Krakatoa”, no final do século XIX, cuja nuvem de poeira lançada na atmosfera provocou um ciclo de resfriamento global da temperatura. Há um pouco de verdade nisso, mas o erro principal é desconsiderar a velocidade e a intensidade das mudanças do clima.

 

Seriam necessários muitos Krakatoas para reduzir o acréscimo de temperatura provocado pela indústria capitalista apenas no século XX. Mas não foi apenas o uso de combustíveis fósseis o único responsável. A indústria agropecuária, com o uso intensivo de agrotóxicos, além da pecuária extensiva, tem pesada parcela de culpa nesse processo. Acrescenta-se, ainda, que nunca podemos desconsiderar a destruição dos ecossistemas nativos para o avanço do gado, da soja e do milho transgênico, o rudimentar método de queimadas e outras técnicas pouco recomendáveis de produção agrícola.

 

Aliás, é curioso que uma indústria como a do setor agropecuário utilize tanta tecnologia para tornar as plantas resistentes a bactérias e insetos e, ao mesmo tempo, fomente a utilização da medieval estratégia das queimadas. Parece que o único mediador aceito ainda é o dinheiro, voltado para a máxima acumulação de capital.

 

Assim também segue a degradação das cidades. Cobram-se planos e instrumentos de planejamento urbano e ambiental da administração, mas um volume significativo de empresas ainda se nega a investir em questões básicas como infraestrutura urbana, especialmente saneamento, nos seus projetos de urbanização

 

Sai muito mais barato externalizar os impactos ambientais para a sociedade, e depois cobrá-lo das vítimas, consumidores de baixa renda, por meio de tarifas de expansão de redes, do que cobrar do grande capital. Este encontra isenção até na incorporação do lucro, enquanto o trabalho e o consumo básico são tributados.

 

Logo, se a humanidade é a grande responsável pelas crises ambiental e climática, esta responsabilidade é muito maior para apenas 1% da população planetária, que detém 99% da renda. É o grande capital industrial, urbano ou rural, que massacra populações, destrói com técnicas de produção das comunidades tradicionais, e impõe um modelo de desenvolvimento predatório.

 

Os outros 99% da população, que detém apenas 1% da renda financeira global, também possuem a sua parcela de culpa, especialmente quando se omitem de tomar posição. Desta forma, e isto é evidente, tanto as crises ecológica e climática globais são sim parte de um processo político, que exige tomada de decisão e mudanças de paradigmas.

 

Frases como “faça a coisa certo, e faça a sua parte” hoje perderam sentido. Hoje “cada ser humano precisa fazer muito mais do que a sua parte”, e precisamos, urgentemente, de uma tomada de posição definitiva contra a concentração de renda e capital. E essa não é uma tomada de decisão apenas dos governos, mas de toda a sociedade. Quem se omite do combate à concentração de renda tem o mesmo grau de responsabilidade para os problemas do planeta do que o “ser humano mal-educado” que atira o lixo pela janela do carro. Ambos contribuem para a destruição do planeta, mesmo que em escalas de responsabilidade diferente.

 

Estamos diante de um momento definitivo, onde a tomada de posição sobre a crise ecológica e a crise climática é fundamental. Reproduzir práticas destrutivas e ficar em silêncio é um mal caminho. Esperar que outros decidam por nós é um caminho muito pior pois, no futuro, talvez tenhamos que decidir “entre a produção de quiabos ou de milho”, “continuar a conviver com a desertificação de terras agricultáveis”, além de outros problemas cada vez mais graves.

 

Não acredito que a colonização do espaço seja o caminho mais viável, especialmente se for para reproduzir o nosso atual modelo de vida e desenvolvimento. É urgente uma tomada de posição coletiva para a transformação da sociedade. Caso contrário, a única coisa que poderá nos restar é fazer como o astronauta de Bowie, e ficar trancado numa “lata espacial observando o azul da Terra” enquanto a vida definha num mundo cada vez mais injusto e desigual.

 

- Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em ciências sociais.

https://www.alainet.org/fr/node/175040
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