A falácia do procurador

29/06/2017
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A “falácia do procurador” (prosecutor`s fallacy) é uma expressão criada por dois pesquisadores da Universidade da Califórnia, William C. Thompson e Edward Schumann, que, em 1987, publicaram um artigo intitulado “Interpretation of Statistical Evidence in Criminal Trials: The Prosecutor's Fallacy and the Defense Attorney's Fallacy” (Interpretação das Evidências Estatísticas em Julgamentos Criminais: a Falácia do Procurador e a Falácia do Advogado de Defesa).

 

Nesse artigo, que se tornou muito conhecido, os autores mostram como procuradores e advogados têm muita dificuldade em interpretar corretamente as probabilidades de um acusado ser culpado ou não, a partir de normas “bayesianas” que relacionam uma probabilidade posterior ou condicional (a posteriori) com uma determinada probabilidade anterior (a priori). Na grande maioria dos casos, as pessoas sujeitas aos experimentos desses pesquisadores adotaram raciocínios falaciosos com grande convicção.

 

Esse parece ser o caso também dos procuradores da chamada “República de Curitiba”.

 

Com efeito, em suas “Alegações Finais” no caso contra Lula, referente ao famigerado “triplex” do Guarujá, tais procuradores recorrem à lógica probabilística do bayesionismo, bem como ao explanacionismo de Peirce, para tentar justificar certa “elasticidade” e “criatividade” na apresentação das provas de culpabilidade.

 

No entanto, uma análise mais detida dos argumentos demonstra um entendimento pobre e distorcido desses instrumentos metodológicos. Na realidade, como no experimento de Thompson e Schumann, a argumentação dos procuradores é claramente falaciosa.

 

Comecemos por Bayes, que nos legou um método (seu teorema) para calcular a relação entre a probabilidade a priori de uma hipótese ser verdadeira ou falsa com a sua probabilidade a posteriori, após uma determinada evidência ter sido apresentada. Muitas vezes, essa relação é contraintuitiva, o que leva a erros e falácias.

 

Há um exemplo clássico, dado pela seguinte indagação: qual é a probabilidade de que uma mulher, após ter um diagnóstico positivo de câncer numa mamografia, ter realmente câncer, supondo uma prevalência estatística de 1%?

 

 

Câncer (1%)

  Sem Câncer (99%)

Teste Positivo

Positivo Verdadeiro (80% dos casos)

 

1% X 80%= 0,008

Falso Positivo

 

(9,6% dos casos)

 

99% x 9,6%= 0,09504

Teste Negativo

Falso Negativo

 

(20% dos casos)

 

1% x 20%= 0,002

Negativo Verdadeiro

 

(90,4% dos casos)

 

99% x 90.4%= 0,89496

 

Aplicando as regras do Teorema de Bayes temos que a probabilidade do evento (ter realmente câncer após um teste positivo) é igual à probabilidade de obter um teste positivo verdadeiro (0,008) dividida pela soma de todos os resultados positivos, verdadeiros e falsos, (0,008 + 0, 09504= 0,10504).

 

Essa operação (0,008/0,10504) é igual a 0, 0776, ou seja, aproximadamente 7,8%. Assim, a resposta a nossa pergunta (qual é a probabilidade de que uma mulher, após ter um diagnóstico positivo de câncer numa mamografia, ter realmente câncer, supondo uma prevalência estatística de 1%?) é: apenas 7,8%, assumidas as probabilidades da tabela.

 

Isso parece absurdo, à primeira vista. A maioria das pessoas “chutaria” que a probabilidade é a mesma do intervalo de confiança do teste.

 

Mas porque essa probabilidade é tão baixa? Em primeiro lugar porque há muitos testes falsos positivos entre as mulheres que não tem câncer (a imensa maioria-99%) e, em segundo lugar, porque os testes verdadeiramente positivos entre a mulheres que realmente têm câncer são em número muito baixo, pois a prevalência estatística delas entre a população em geral é também muito baixa (apenas 1%).

 

O que isso nos ensina? Ensina-nos que as probabilidades a posteriori (as probabilidades após a apresentação de evidências) ou derivadas são fortemente condicionadas pelas probabilidades a priori (as probabilidades assumidas como corretas antes da apresentação de evidências).

 

Agora bem, substituamos a pergunta anterior pela seguinte pergunta: qual é a probabilidade de Lula ser considerado inocente ou culpado, após a apresentação de evidências num determinado processo?

 

Obviamente, essas probabilidades derivadas dependerão fortemente das probabilidades das hipóteses assumidas a priori.  Se os procuradores partirem do pressuposto ou da convicção de que Lula tem uma probabilidade extremamente baixa de ser inocente (digamos 1%, como no caso anterior), quaisquer evidências a seu favor que sejam apresentadas, mesmo muito robustas, não aumentarão, de forma significativa, a baixa probabilidade pressuposta inicialmente. Por outro lado, evidências favoráveis ou supostamente favoráveis à sua culpabilidade adquirirão dimensões gigantescas, face à altíssima probabilidade pressuposta na hipótese a priori (99%), mesmo que sejam insignificantes ou extremamente frágeis.

 

Talvez seja por isso que, no caso das alegações finais desses procuradores, o pagamento de um pedágio se torne uma prova “robusta” de que o triplex seria de propriedade de Lula, o que é francamente ridículo. Talvez seja por isso também que a prova cabal, verdadeiramente robusta, de que o apartamento nunca pertenceu a Lula tenha sido simplesmente descartada na peça “criativa” e “convicta” dos procuradores.

 

Referimo-nos, é claro, à documentação que prova que o triplex sempre foi de propriedade da OAS, estando hipotecado à Caixa. Quaisquer transferências de titularidade teriam, necessariamente, de ser acompanhadas por depósitos na conta da Caixa relativa a tal hipoteca, o que, comprovadamente, nunca ocorreu. Salientamos que as regras lógicas de Bayes estipulam que, caso uma evidência torne uma hipótese absurda, ela deve ser descartada.

 

Os procuradores, no entanto, mantêm sua hipótese contra as evidências apresentadas.

 

Para entender melhor esse absurdo, recorramos ao método “explanacionista”, ou inferência lógica de Peirce, por eles mesmos recomendado como metodologia adequada para a interpretação de evidências e formulação de juízos.

 

Tal método, também conhecido como abducionismo, nada mais é, em termos muito simplistas, que um método de construção de hipóteses destinadas a explicar (explanar) fatos determinados. Ante a impossibilidade de realizar experimentos controlados que nos deem certeza científica concernente a alguns fenômenos, esse método pode, de fato, ser muito útil para oferecer explicações lógicas e razoáveis para alguns eventos.

 

Não chegaríamos ao ponto de afirmar, como fazem os procuradores, que “o estado de certeza diz mais a respeito da falta de criatividade do indivíduo do que a respeito da realidade”, pois isso seria sucumbir a um absurdo solipsismo filosófico, embora eles não se apercebam disso. Mas podemos admitir que a inferência lógica que busca a melhor explicação possível pode ser útil, ante a “dificuldade probatória” que se observa em muitos casos.

 

Entretanto, a inferência lógica têm regras claras. Ela não pode ficar simplesmente ao sabor da “criatividade” dos formuladores das hipóteses. Sobretudo, ela não permite que tal criatividade desconheça os imperativos fáticos.

 

A hipótese a ser escolhida tem de ser a que explica de forma mais coerente e consistente os fatos, em relação a todas as outras que possam ser formuladas. Peirce tinha como máxima que a hipótese não pode ser mais “extraordinária” (complexa ou extravagante) que os fatos explanados. Em outras palavras, a hipótese a ser escolhida deve ser a que explica de forma mais simples e direta as evidências apresentadas.

 

Isso é o mesmo que dizer que as hipóteses têm de ser submetidas à “navalha de Occam”. Trata-se de princípio heurístico atribuído à William de Occam (ou Ockam), teólogo e filósofo inglês do século XIV, segundo o qual, entre várias hipóteses concorrentes, devemos escolher a que tem menos pressupostos, isto é, a que explica os fenômenos de forma mais simples e elegante.

 

Foi Occam, aliás, além de Conan Doyle, quem inspirou o personagem William de Baskerville, o monge franciscano inglês que atua como um “sherlock holmes” medieval em “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, mal citado pelos procuradores.

 

Pois bem, sabemos, pelo próprio texto dos procuradores, que:

 

1)    Lula e seus familiares jamais ocuparam o triplex.

2)    Lula (ou qualquer preposto) nunca adquiriu o imóvel, como está provado pela documentação da Caixa Econômica Federal.

3)    O imóvel não foi doado ou presenteado a Lula, conforme demonstra a mesma documentação.

4)    As únicas “evidências” de culpabilidade conseguidas foram, basicamente, a declaração de um réu em desespero, apresentada fora do instrumento da delação premiada (portanto, sem nenhum compromisso de dizer a verdade) e um bilhete de pedágio.

 

Ante isso, seguindo os preceitos da inferência lógica de Peirce e o princípio heurístico de Occam, perguntamos: qual a melhor hipótese que explica esses fatos, essas evidências?

 

Talvez porque não sejamos tão “criativos” ou “convictos” como os procuradores, escolheríamos a hipótese de que Lula é inocente da acusação imputada. Temos razoável certeza de que tal hipótese seria também a escolhida por Peirce e Occam. No reino da ficção, William de Baskerville, Sherlock Holmes e C. Auguste Dupin, que tanto parecem encantar a imaginação juvenil dos procuradores, também a escolheriam, até mesmo para evitar a construção de tramas estrambólicas e ridículas, que irritariam os leitores por absoluta falta de verossimilhança.

 

Bayes diria, assumindo que a probabilidade inicial da culpa ou inocência de Lula fosse igualmente de 50% (uma hipótese justa e neutra), que a probabilidade a posteriori da inocência seria claramente mais alta.

 

Dessa maneira, assumindo os pressupostos teóricos e epistemológicos esgrimidos pelos próprios procuradores, sua hipótese estaria refutada ou seria descartada como a de menor poder explicativo.

 

Contudo, nossos bravos e criativos procuradores, em seu cego solipsismo filosófico e judicial, argumentam que “como provado (provado como?) no presente caso, sendo o triplex no Guarujá destinado ao réu Lula pela OAS a partir dos crimes de corrupção contra a Administração Pública Federal, sobretudo contra a Petrobras, esconder que o réu Lula é o proprietário do imóvel configura o crime. Dizer que não há escritura assinada pelo réu Lula é confirmar que ele praticou o crime de lavagem de dinheiro”.

 

Ou seja, a prova do crime é a ausência de provas.

 

Conforme a lógica paradoxal desses procuradores, “quanto maior o poder ostentado pelo criminoso, maior a facilidade de esconder o ilícito”. Assim, a ausência de provas é, nesse caso, a grande prova. Não temos como provar, ergo está provado.

 

De fato, com o uso de uma lógica paradoxal, inconsistente, uma interpretação equivocada da teoria do domínio do fato e de muita imaginação política, na peça criativa dos procuradores a total ausência de provas se converte na prova suprema.

 

O que isso tem ver com o teorema de Bayes e com as regras da inferência lógica de Peirce? Nada, rigorosamente nada. A essa altura, Bayes e Peirce, que Deus os tenha, devem estar se revirando em seus túmulos, estarrecidos com as barbaridades lógicas que são cometidas em seus nomes. Claus Roxin, que ainda está vivo (não por muito tempo, a depender de nossos criativos procuradores e juízes) também deve estar sendo supliciado pelo uso inadequado do domínio do fato.

 

E Eugène Ionesco está se corroendo de inveja.

 

O problema, portanto, não está em Bayes, Peirce ou qualquer outro grande teórico da lógica probabilística. Está nos procuradores, que deles fazem uso oportunista e completamente equivocado.

 

Essas “Alegações Finais”, caso fossem apresentadas numa corte anglo-saxônica séria, acostumada ao princípio da dúvida razoável, mas também zelosa do princípio, olvidado pelos procuradores, do in dubio pro reu, provocaria risos de escárnio em juiz que não se arvorasse em procurador.

 

“Exóticos” e “extravagantes” não são Bayes e Peirce. Exóticos são esses procuradores e seu extravagante solipsismo.

 

Na realidade, os procuradores usaram Bayes, Peirce e o simpático Eco, que gastava tanto do Brasil, apenas para dar ares de “cientificidade” às suas crenças ideológicas e partidarizadas.

 

Falta a esses procuradores, pelo visto, um conhecimento mínimo desses autores. Se os leram, não os entenderam. Ou pior: leram, entenderam, mas os usam com evidente má-fé.

 

Falta, sobretudo, a tais procuradores, algo que sobrava no grande astrônomo alemão Johannes Kepler: grandeza de espírito e honestidade intelectual.

 

Como muitos procuradores, Kepler era um homem de profundas convicções religiosas. Ela acreditava firmemente que as órbitas planetárias tinham de ser círculos perfeitos e que os planetas se moviam a velocidade constante, tal com apregoavam a igreja e os antigos gregos. Contudo, analisando os dados pormenorizados de Tycho Brahe, astrônomo dinamarquês famoso por sua acuradas observações empíricas, Kepler chegou à conclusão de que suas hipóteses iniciais estavam erradas e que os planetas, na realidade, tinham órbitas elípticas e se moviam a velocidades variáveis ( mais rápidas próximo ao Sol e mais lentas longe dele).

 

Kepler, como se diz popularmente, rendeu-se às evidências, reformulou suas hipóteses e, com isso, tornou-se um dos maiores cientistas da História. Na realidade, foi ele que abriu caminho para Newton, que criou o moderno entendimento moderno do mundo como algo guiado por leis naturais matematicamente formuladas. Tal vanguarda lhe assegurou a hostilidade de seus contemporâneos, mas lhe reservou um lugar na posteridade. É reverenciado no mundo inteiro como um herói da razão.

 

Não parecer ser esse o destino de nossos procuradores. Intelectualmente mesquinhos, guiam-se somente por suas convicções políticas e ideológicas e pelos holofotes da mídia. Em nome deles, atropelam não apenas direitos e garantias individuais, mas também a própria verdade e as regras da lógica. Pouco parecem se importar com o dano que causam ao país, às suas instituições e ao próprio sistema de justiça.

 

Homens menores que são, seu grande objetivo é condenar e encarcerar o maior líder popular da história do Brasil, em busca do aplauso fácil dos poderosos e de parte de seus contemporâneos.

 

A posteridade, no entanto, lhes reserva um destino amargo. No máximo, serão mencionados em livros como os de Thompson e Schumann, nas notas de pé de página que fizerem referência aos tolos que se guiam pelas falácias da vaidade. 

 

- Marcelo Zero é sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado

 

29 de Junho de 2017

https://www.brasil247.com/pt/colunistas/marcelozero/303797/A-fal%C3%A1cia-do-procurador.htm

 

https://www.alainet.org/fr/node/186483
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