A guerra, a preparação para a guerra e a “transição energética”

É pouco provável que ocorra uma grande “guerra hegemônica” entre EUA e China, ou mesmo entre EUA e Rússia, nas próximas décadas.

07/07/2020
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Petrobras
Foto: Agência Petrobras
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Com um consumo diário médio de mais de 300 mil barris, o Departamento de Defesa aparece como o maior consumidor anual de petróleo dos Estados Unidos, o que tem provocado crescente preocupação a respeito da vulnerabilidade energética de suas forças militares, acirrada por uma postura diplomática e geopolítica agressiva por parte da China a respeito do acesso a recursos petrolíferos.

Barreiros, D. Projeções sobre o Futuro da Guerra: tecnologias disruptivas e mudanças paradigmáticas (2020-2060). Texto para Discussão n. 25, IEUFRJ, Rio de Janeiro, 2019, p. 9.

 

No início da Primeira Guerra Mundial, o cavalo ainda era um elemento central do planejamento militar das grandes potências, e o carvão é que movia as máquinas, os trens e os vapores do mundo. Mas quatro anos depois, no fim da guerra, havia acontecido uma “revolução energética” que mudou a face do capitalismo, e o petróleo redesenhou a geoeconomia e a geopolítica mundiais. Logo depois do conflito, o crescimento geométrico da indústria automobilística teve papel fundamental na difusão mundial do motor a combustão, e da gasolina.

 

Não há dúvida de que foi a guerra que acelerou o processo dessa segunda grande “transição energética” da história do capitalismo industrial. Isto passou depois da guerra, mas a “transição energética” do carvão para o petróleo teve papel decisivo no próprio resultado da guerra. A grande mudança começou pela Marinha Britânica, já em 1911, mas depois do primeiro passo, todas as demais potências envolvidas no conflito aderiram à nova matriz energética do petróleo e à sua utilização militar imediata na criação dos novos tanques de guerra, e no desenvolvimento da aviação militar. E durante a guerra, devido à importância da nova fonte energética, todos os governos acabaram criando estruturas e agências específicas de articulação entre o Estado, seu comando estratégico, e as grandes empresas petrolíferas privadas, para coordenar a produção e distribuição do óleo, por fora do mercado e em obediência às estratégias de guerra de cada um desses países. Poucos dias depois da assinatura do armistício, em 1o de novembro de 1918, o governo inglês hospedou uma reunião da Conferência de Petróleo Interaliada, criada durante a guerra, e naquela ocasião Lord Curzon comemorou a vitória dos aliados declarando em alto e bom som, que “a causa aliada flutuou para a vitória sobre uma onda de óleo”.[1]

 

No início da Primeira Guerra, os Estados Unidos controlavam 65% da produção mundial do “ouro negro”, e durante o conflito os norte-americanos forneceram 80% do óleo consumido pelos países aliados. Por isso, depois da guerra, os norte-americanos assumiram automaticamente a liderança da nova matriz energética do mundo, e se transformaram nos maiores produtores e exportadores mundiais de petróleo até o fim da Segunda Guerra Mundial. A região do Cáucaso havia perdido importância, transitoriamente, depois da guerra e da revolução soviética, e a exploração do petróleo do Oriente Médio ainda estava dando seus primeiros passos, depois que a França e a Inglaterra assinaram o Acordo Sykes-Picot em 1916, que foi depois confirmado pelo Acordo de San Remo, de 1920, dividindo entre si o território do antigo Império Otomano, que viria a se transformar no epicentro da disputa energética das grandes potências na segunda metade do século XX.

 

Um século depois, já na terceira década do século XXI, o mundo está atravessando uma transformação geopolítica ciclópica, e ao mesmo tempo está se propondo a realizar uma nova “transição energética”, que substitua os combustíveis fósseis por novas fontes de energia que sejam “limpas e renováveis”. A Segunda Guerra Mundial acabou há 75 anos, e a Guerra Fria terminou 30 anos atrás, mas hoje é comum falar de uma “terceira guerra mundial”, ou de uma “nova guerra fria”, apesar de as grandes potências não estarem envolvidas entre si numa guerra direta e explícita.

 

De fato, o que está em pleno curso é uma gigantesca mutação geopolítica mundial, provocada pela universalização do sistema interestatal capitalista, pela ascensão vertiginosa da China e da Índia, e pela volta da Rússia à condição de potência militar global. Tudo isso concomitante ao declínio da participação econômica e do poder militar das potências ocidentais mais ricas e industrializadas do século XX, sobretudo no caso da Europa, mais do que dos Estados Unidos. E apesar dessas grandes transformações, é pouco provável que ocorra uma grande “guerra hegemônica” entre EUA e China, ou mesmo entre EUA e Rússia, nas próximas décadas. O território e o armamento desses países são gigantescos, eles controlam em conjunto cerca de um quarto da superfície territorial do mundo, e mais de um terço da população global, e já não admitem mais invasões ou conquistas do tipo clássico. Por isso, sua luta deve se deslocar para os territórios periféricos do sistema e para os espaços e fluxos sem fronteiras por onde circulam os recursos e a energia do sistema interestatal capitalista, onde deve assumir a forma de uma “guerra híbrida” quase permanente, travada em vários pontos simultaneamente, com mudanças súbitas e inesperadas de cenário, e com alianças cada vez mais instáveis, como se todo mundo fosse reproduzir no futuro, e em escala planetária, o que foi a história passada da formação da própria Europa.

 

De qualquer maneira, essa competição subterrânea e contínua entre os “três gigantes” deverá promover um dos saltos tecnológicos mais espetaculares de toda a História. E uma vez mais, como sempre ocorreu através dos anos, esse salto tecnológico deverá ser liderado pela pesquisa e pela inovação da indústria bélica, envolvendo uma mudança na matriz energética que move atualmente a infraestrutura militar desses países, e de todo o mundo. Não será uma guerra, mas uma longa “preparação para a guerra”, uma guerra que talvez nunca ocorra explicitamente, mas que estará sendo travada de forma oculta, em todos os planos, na terra, no mar, no ar, no mundo submarino e no espaço sideral. Muito provavelmente será um destes momentos em que a humanidade estará cruzando uma das “fronteiras” que alguns analistas chamam de” ponto de singularidade”. Ray Kurtzweil,[2] por exemplo, “prevê que o crescimento da capacidade tecnológica envolvendo computadores, robótica e biotecnologia alcançará um ponto “tendente ao infinito”, entre 2029 e 2045, o que significaria que as inteligências artificiais teriam superado as capacidades de todos os humanos combinados; a partir daí, a biologia humana e a máquina fariam parte de um mesmo complexo, sem que se pudesse distinguir onde um começa e o outro termina”.[3]

 

Hoje, do ponto de vista energético, quando se olha para o planejamento estratégico das grandes potências que estão situadas no epicentro da competição geopolítica mundial, o que se observa não é uma preocupação imediata com a exaustão dos recursos fósseis, mas com os custos crescentes das ações para garantir o acesso de cada uma delas a suas reservas dispersas pelo mundo. O Alto Comando Estratégico destes países ainda prevê o uso prioritário da energia fóssil em suas várias plataformas militares, pelo menos até 2050, mas todos trabalham com o mesmo objetivo de substituir a energia carbônica por uma nova matriz que seja construída progressivamente, e que inclua cada vez mais a energia eólica, solar, maremotriz e biocombustível, com o aproveitamento também de fontes ainda subutilizadas de hidrocarbonetos, como é o caso das areias betuminosas e do hidrato de metano.

 

Além disso, todos esses países, ao lado de outros com menor pretensão militar, vêm se empenhando no desenvolvimento da eletricidade produzida no próprio campo de batalha, como resultado inclusive das exigências impostas pelos novos sistemas eletrônicos que estão sendo utilizados cada vez mais, nas operações militares com laser, sensores químico-biológicos e exoesqueletos. Vários autores sugerem inclusive que nas próximas décadas, do ponto de vista militar, “a própria concepção de geração de energia vá se afastar razoavelmente do modelo ‘coletor’” da economia fóssil-dependente em que a geografia dos recursos é dada pela natureza, em direção a um modelo ‘agricultor’, no qual a energia seja efetivamente gerada do começo ao fim em espaços predeterminados pelas estratégias de cada um. No limite da ‘colheita de energia plantada’ estariam os microgeradores portáteis e pessoais, capazes de garantir autonomia operacional a um soldado com seus equipamentos”.[4]

 

Os Estados Unidos, a Rússia, a China, a própria Índia e as demais potências intermediárias do sistema mundial trabalham todas com o mesmo horizonte de 2050/60, quando programam a “transição energética” de suas estruturas e plataformas militares, com vistas à construção de um novo paradigma “fóssil-free”. Assim mesmo, hoje já é possível identificar a presença deste novo paradigma do futuro, no desenvolvimento atual de algumas tecnologias militares “de ponta” utilizadas em alguns armamentos que já se encontram em fase embrionária, ou, em alguns casos, em pleno uso experimental nas disputas pelo petróleo do Oriente Médio. Incluem-se nesta categoria três tipos de tecnologias que interagem entre si, e que já vêm sendo utilizadas de forma cada vez mais mortífera, como é o caso dos “drones”, dos “enxames” e da “inteligência artificial” para uso militar. Três tecnologias que fazem parte de um processo mais amplo de “dronificação da guerra”, com utilização de veículos armados, terrestres, aéreos e navais, operados à distância, com autopilotagem e capacidade tática de tomar decisões autônomas durante a execução de algum objetivo alterado em meio à batalha.

 

Uma parte desse armamento, sobretudo os de maior porte, ainda utiliza combustível da aviação convencional. Mas a intenção de seus projetores é que num horizonte de médio prazo eles passem a utilizar a mesma energia dos drones de menor porte, que são elétricos, ou que se utilizam de uma matriz híbrida, envolvendo uma combinação variável de hidrogênio e eletricidade. O potencial desses novos armamentos se vê multiplicado geometricamente naquilo que os especialistas chamam dos “enxames” – situados literalmente na última fronteira tecnológica da guerra do século XX – que são, na prática, verdadeiros “coletivos de drones” que operam em rede trocando informações entre si, sob o comando de equipamentos dotados de “inteligência artificial” que reduzem a intervenção humana ao mínimo indispensável da definição dos objetivos mais gerais da própria guerra, e de cada um de seus combates.

 

Do ponto de vista da “transição energética” que está em debate neste momento em todo o mundo, o mais importante é ter claro que os estrategistas militares das grandes potências estão prevendo que entre 2020 e 2050/60, todos esses novos armamentos e plataformas militares já estejam enquadrados na nova matriz energética – “limpa e renovável” – que estará nascendo, neste caso, da competição militar entre as poucas grandes potências que disputarão o poder global, durante o século XXI, dentro de um sistema que será, com toda certeza, cada vez mais hierárquico, assimétrico e imperial.

 

Notas

 

[1] Yergin, D. O petróleo: uma história de conquistas, poder e dinheiro. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2009, p. 205.

[2] Kurtzweil, R. The singularity is near. New York: Viking Books, 2005.

[3] Barreiros, 2019, p. 14.

[4] Barreiros, 2019, p. 9.

 

- José Luis Fiori é Professor titular do Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional (IE/UFRJ), e do Programa de Pós-Graduação em Bioética e Ética Aplicada (PPGBIOS/UFRJ), Coordenador do GP do CNPQ, “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo”, e do Laboratório de “Ética e Poder Global”, do NUBEIA/ UFRJ; pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).

 

julho 7, 2020

https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2020/07/a-guerra-a-preparacao-para-a-guerra-e-a-transicao-energetica-por-jose-luis-fiori/

 

 

https://www.alainet.org/fr/node/207709?language=en
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