A grita contra a política fiscal
- Opinión
A marca da semana, no noticiário de economia, voltou a ser a bateria dirigida contra a suposta incapacidade do governo em cumprir suas metas a respeito da política fiscal. Como geralmente acontece nesses momentos, a estratégia articulada pelo financismo encontra ressonância e eco assegurados nas editorias dos grandes meios de comunicação. Assim, o discurso parece uníssono e não existe espaço para apresentação de análises alternativas. Ao leitor mais desavisado, parece não haver dúvida a respeito da inevitável catástrofe que se anuncia, caso não sejam atingidas as marcas oficiais definidas ainda no ano passado para o quesito da fiscalidade.
A polêmica, no entanto, não se dá no campo da comparação apenas entre os valores do total de despesas e do total de receitas governamentais. Isso porque a administração federal continua superavitária nesse quesito. A gritaria acontece quando se traz o conceito do superávit primário para o centro da cena. E aqui é que reside o “pulo do gato” na avaliação crítica do desempenho fiscal da equipe econômica. Desse ponto de vista, portanto, não basta haver controle apenas na política fiscal, considerada aqui de forma agregada. A novidade foi introduzida lá atrás, quando da implementação do Plano Real, a partir de 1994. Naquele momento ficou estabelecida a necessidade de se cumprirem as metas de superávit primário, um dos pilares do tripé da política econômica.
Política fiscal e superávit primário
Esse pequeno detalhe - o uso do aparentemente singelo adjetivo “primário” - é que faz toda a diferença na avaliação da política fiscal e nas conseqüências derivadas de seu cumprimento de forma cega e inflexível. Isso porque sua aceitação implica a diferenciação das despesas governamentais em dois grandes subgrupos: i) as despesas reais; e ii) as despesas de natureza financeira. Assim, de um lado temos os gastos com pessoal, com equipamentos, com material, com pagamento de benefícios, com investimentos, etc. De outro lado, temos os gastos com pagamento de juros e demais serviços de rolagem da dívida pública. Ou, se quisermos outro enfoque da execução rçamentária, de um lado temos os gastos com saúde, educação, previdência social e similares, ao passo que de outro lado temos as despesas do Tesouro Nacional com as rubricas financeiras do endividamento.
Ao incorporar a exigência de obtenção do superávit primário nas contas públicas, dá-se um tratamento distinto a ser conferido às despesas reais e às financeiras.
Para obter um resultado superavitário nos gastos reais, faz-se necessário uma compressão das despesas desse primeiro grupo (saúde, educação, previdência social, etc) e/ou elevação dos impostos arrecadados sob a forma de receitas. Esse esforço de austeridade, porém, não acontece no que se refere às despesas para pagamento de juros e rolagem da dívida pública. Pelo contrário, todo o valor gerado pelo superávit primário vai ser canalizado diretamente para o pagamento dessas rubricas de natureza financeira.
Despesas financeiras são “imexíveis”
Com isso, quando os interesses do financismo vêm clamar pela redução dos gastos do governo, estão malandramente se referindo apenas aos gastos correntes, uma vez que eles consideram os gastos financeiros como pertencendo a um seleto subgrupo de despesas nobres e “imexíveis”. De acordo com essa visão, cortes são necessários e devem ser feitos na massa salarial dos funcionários, na contabilidade da saúde pública já em frangalhos, nos valores dos benefícios da previdência social, nas contas do sistema de educação, entre tantos outros exemplos. Já as despesas públicas realizadas com pagamento de juros ao sistema financeiro, bem essas não podem ser objeto de perturbação, para evitar problemas de credibilidade do sistema econômico. Afinal, as leis do mercado devem ser cumpridas à risca, para evitar a contaminação derivada do não cumprimento dos contratos. E dá-lhe blá-blá-blá a justificar a suposta superioridade de importância da esfera financeira sobre as demais.
As razões para a redução do superávit
Os argumentos apresentados pela equipe econômica para justificar o baixo desempenho na área fiscal fazem todo o sentido. Afinal, houve um conjunto importante de medidas de isenção e desoneração tributárias que foram tomadas ao longo dos últimos tempos. A intenção das mesmas era justamente estimular a retomada da atividade econômica e relançar os desafios do crescimento. Ocorre que tais decisões promovem - parece óbvio! - a redução da capacidade arrecadadora do Estado no curto e no médio prazos. Com isso, o total da receita pública tende a diminuir de forma imediata e a capacidade de gerar superávit fiscal também cai.
Raciocínio semelhante vale para as despesas de investimento do governo, a exemplo das obras do PAC. Elas não podem ser sacrificadas em nome do pagamento de juros da dívida, uma vez que são gastos que devem oferecer retorno positivo para o conjunto da sociedade, em futuro próximo. Com isso, a nova metodologia de cálculo do superávit primário também confere a esse tipo de gasto um necessário estatuto diferenciado. A consequência lógica é a redução dos objetivos fiscais previamente definidos.
Finalmente as conhecidas pressões sociais e políticas associadas ao modelo de nosso pacto federativo provocam demandas de despesas no plano dos estados e dos municípios. Assim, a União acaba sendo responsabilizada pela sua incapacidade em monitorar a geração de superávit primário na contabilidade pública dos demais entes federados. O governo federal apresenta de forma efetiva o resultado de sua administração e das empresas estatais. Mas não tem o controle total sobre os demais níveis de governo
Frente a tais dificuldades, é bem possível que a meta de 2,3% do PIB de superávit primário não seja mesmo atingida até o final do ano. No entanto, isso não significa de forma alguma que estejamos frente ao caos incontrolável e ao quadro de catastrofismo que se procura desenhar. Esse barulho todo, que vem sendo criado em torno da questão, é apenas uma forma, nada discreta, de o capital financeiro fazer valer seus interesses. Ele procura impedir que o governo corte também as despesas com juros, assim como fez com as demais rubricas da área social. Afinal, menor superávit primário pode inclusive significar menor volume de despesas do orçamento realizadas com juros da dívida pública. E contra isso o financismo se bate com todas as forças.
Estratégia da banca: aumentar a SELIC
Na verdade, essa estratégia de terror se articula de forma sintonizada com o calendário que antecede a reunião do Comitê de Política Monetária - COPOM. O último encontro de 2013 do colegiado que define a taxa oficial de juros deverá ocorrer nos próximos dias 26 e 27 de novembro. E os representantes dos interesses da banca já buscam criar o clima para exigir, ainda outra vez, uma nova elevação da SELIC. Ao longo das últimas cinco reuniões, o COPOM tem promovido aumentos sistemáticos e consecutivos na taxa. Ela saiu de 7,25% ao ano em março para os atuais 9,5%. E a linha de argumento que se vê nas páginas dos jornais é justamente pela suposta necessidade de uma taxa oficial ainda mais alta, como forma de garantir credibilidade ao sistema de equilíbrio macroeconômico, que estaria sendo questionado. Uma loucura!
Afinal, sempre existe ou é inventado o argumento de plantão, a desculpa da vez. Há alguns meses atrás, o clima criado artificialmente para o aumento da SELIC foi a chamada “inflação do tomate”. Uma verdadeira brincadeira de mau gosto, uma profunda irresponsabilidade, mas que logrou aumentar a taxa geral de juros apenas em razão dessa elevação sazonal de apenas um dos itens da nossa cesta de consumo. Mais à frente, surgiu um suposto problema relativo à necessidade de maior atração de recursos externos, face a um possível aumento de juros pelo FED - o banco central norte-americano. Pois bem, nenhum dois 2 fenômenos ocorreu ou se manteve, mas em ambas situações o núcleo econômico cedeu às pressões do financismo e aumentou a SELIC. E aqui vale lembrar que cada 0,5% de elevação na taxa correspondente a uma despesa anual extra de R$ 10 bilhões, a ser realizada sob a forma de juros. Ou seja, repete-se “ad nauseam” a tragédia do corte orçamentário em educação e saúde, sempre para assegurar a despesa pública com juros.
FMI volta a palpitar: os riscos da ilusão
Esse tipo de recomendação - maior rigor de ortodoxia na condução da política econômica - já vem sendo objeto de crítica pelo mundo afora, em razão de sua ineficácia em solucionar as situações de crise. Porém, até o FMI, vez por outra, volta a insistir por sua adoção aqui em nossas terras. Há 2 semanas atrás, por exemplo, um relatório oficial do fundo chegou a sugerir que o Brasil deveria elevar novamente o patamar do superávit primário para 3% do PIB, como acontecia à época de Palocci/Meirelles. Ou seja, novos sacrifícios na área social para drenar um volume mais expressivo de recursos para o parasitismo financeiro.
Não há dúvidas de que o Estado tem muito a melhorar na eficiência do gasto público. Uma mesma quantidade de recursos pode ser muito mais bem administrada, evitando desperdícios e oferecendo mais serviços à população. Além disso, a qualidade daquilo que é proporcionado pela administração pública, via de regra, também ainda deixa muito a desejar. O desafio, portanto, passa também pela melhoria da gestão pública. O mesmo raciocínio vale para os programas de concessão, de subsídio ou de desoneração que são oferecidos ao setor privado, onde nem sempre os resultados surgem sob a forma de melhorias compartilhadas por todos os setores da sociedade. E o que dizer, então, do gasto público que menos retorno social oferece, a tal da despesa com juros?
Na verdade, o episódio de generalização das críticas pelos meios de comunicação deveria servir como aprendizado para os responsáveis pela equipe econômica.
- Doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) e integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal.
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