O poder da Internacional do Capital Financeiro
29/06/2014
- Opinión
Diferentemente das crises clássicas do capitalismo, a atual se diferencia, enquanto crise política conjugada com a crise econômica, por encontrar o capital com um grau organização mais complexo e sofisticado, sem aparência imediata, mas com grande poder midiático e mais capaz de interferir rapidamente sobre os Estados, sem guerras extensivas e ocupações militares em todos os territórios de domínio.
A revista Forbes publicou em maio deste ano que 5% do PIB brasileiro está nas mãos de quinze ilustres famílias, que detém um patrimônio de 269 bilhões de reais. Thomas Piketty, autor do “O Capital no Século 21″ – mencionado por Paul Krugman como provavelmente o mais importante livro de economia desta década – é autor de uma frase de uma obviedade alarmante nos dias que correm, mas que passa ter valor especial porque é formulada, não por um inimigo do capitalismo, mas por um insatisfeito com os seus rumos atuais: “os poucos que estão no topo – diz Thomas – tendem a apropriar-se de uma grande parcela da riqueza nacional, à custa da classe média baixa” e que “isso já aconteceu no passado e pode voltar a acontecer no futuro”.
O remédio apontado pelo autor, um imposto global progressivo, vai precisamente contra a tendência autorizada pelas grandes agências financeiras, públicas e privadas, de importância no mundo, como se vê nas medidas em andamento nos países da União Europeia, que pretendem recuperar suas combalidas economias. Estudo recente, publicado pelo “El País” (22 jun. 2014), mostra 10% de queda nos gastos de alimentação da população espanhola no ano de 2013, o que atinge diretamente o consumo básico dos assalariados, aposentados e desempregados, que vivem da parca ajuda estatal.
No âmbito da crise, os índices de pobreza, já alarmantes, aumentaram gravemente nos Estados Unidos, pois hoje já afetam 46 milhões de norte-americanos, maior cifra dos últimos 50 anos, que deve ser combinada com o aumento da renda dos 1% mais ricos, em 9%, nos últimos 35 anos. (“Página 12″, 23 jun.14, baseado em estudos do professor Abraham Lowenthal, emérito da Universidade do Sul da Califórnia). Os Estados Unidos, como se sabe, superam a União Europeia em desigualdade, pois nesta a maior concentração de renda está com 10% da população e nos EUA a maior concentração de renda, em termos relativos, está com 1% da população.
Cabe um comparativo latino-americano, para verificarmos como os diferentes países colocados na cena mundial globalizada, reagem perante os dissabores da atual crise do capital. Recentemente os nossos “especialistas” em desastres econômicos – sempre atentos aos interesses especulativos e manipulações políticas no mercado de ações -passaram a mostrar a genialidade da direita mexicana para lidar com o baixo crescimento e a pobreza. Quando se depararam com as estatísticas – a partir de 2003 a economia brasileira cresceu 45,44% e a economia mexicana, no mesmo período, cresceu 30,471% – o México desapareceu das suas colunas proféticas. Mormente porque ficaria chato revelar que a participação dos salários na renda nacional, no Brasil é de 45% e no México é de 29%. Ou seja, o Brasil cresceu muito mais com menos desigualdade.
Esse rápido repasse na crise do capitalismo, presidido pela agenda neoliberal, serve para ilustrar a guerra de interpretações travada no meio intelectual, pelas redes e pelos órgãos de imprensa tradicional, entre as lideranças das mais diversas posições do espectro político. De um lado, estão os que entendem que a crise ocorre porque todas as “reformas”, necessárias para o reinado completo do capital financeiro sobre a vida pública e sobre os estados (capturados pelas agências que especulam com a dívida pública, para acumular sem trabalho) aquelas reformas, repito, não foram feitas pelos governos. Por isso, as baixas taxas de crescimento, o aumento da pobreza e do desemprego.
Num outro polo, os que, por diversos meios e com diversas gradações, sustentam que a decomposição da socialdemocracia, em nome de um “ajuste” conservador e predatório dos direitos sociais (com a renúncia de uma agenda socialista ou democrático-social verdadeira), significou a vitória dos valores dos que “estão no topo”, como diz Piketty. E que a pretensão verdadeira daquela agenda é desapropriar os direitos sociais, que vem sendo conquistados desde o Século 19, para conformar uma sociedade dos mais aptos, dirigida pelos mais fortes e mais ricos, capazes de se servir das grandes transformações tecnológicas, distribuindo migalhas de sobrevivência para a maioria da população, tendo como intermediária uma pequena e rica classe média, apartada nos seus condomínios ou pequenos bairros com segurança privada.
A campanha contra o Governo brasileiro e contra o Estado brasileiro, desencadeada pelos órgãos de imprensa e partidos políticos vinculados à primeira posição, no mundo inteiro, passava a imagem de um país degradado na sua vida pública, com autoridades incapazes de acolher um evento como a Copa do Mundo, incompetentes para dar segurança às autoridades de fora do país e ineptos para a realização da própria competição. Esta campanha, no entanto, não foi um mero mau humor da direita mundial. Foi nitidamente uma orquestração política de caráter estratégico para desmoralizar um BRIC que, com seus avanços e recuos, com as suas vacilações e posições ousadas, já tinha demonstrado que é possível crescer, distribuir renda, cuidar da vida dos mais pobres e excluídos e, ainda, exercer um papel político no cenário internacional, com certa margem de autodeterminação e soberania, criticando o neoliberalismo com as “costas quentes”. À esquerda ultra-radical isso parece pouco, mas, examinada a situação internacional e a própria fragilidade interna das bases políticas para desenvolver estas ações de resistência, convenhamos que é um feito extraordinária que nenhum governo, pelo mundo afora, conseguiu realizar com tal amplitude.
O mais grave é que os veículos de comunicação tradicionais do país, não só repassaram este pânico desmoralizante da nação e das suas instituições, como alimentaram com falsas informações os veículos externos. Trabalharam diretamente contra o Brasil, embora já ensaiem uma autocrítica oportunista, Não se tratou de mero equívoco, mas de parceria política, porque, para estes grupos, nunca se coloca como real a disjuntiva “Soberania X Dependência”, ou “Estado Social x Estado Mínimo”, ou “Cooperação Interdepende x Subordinação Dependente”, ou mesmo “Democracia x Autoritarismo”. Porque soberania, estado social, cooperação sem submissão, sempre apontam para mais democracia (não menos democracia), para mais participação das pessoas na política e na renda (não menos participação) e as receitas europeias para resolver as crises são incompatíveis com tais conquistas da modernidade.
O traço material desta aliança e da campanha contra o Brasil é o interesse em ganhar dinheiro com a dívida pública, gerando instabilidade e desconfiança nos governos ou submetendo as nações a governos dóceis e à agenda da redução das funções públicas do Estado. A ideologia da aliança é o liberalismo econômico, ora ornamentado com traços de fascismo e intolerância, ora casado com a austeridade fiscal. Ela tanto pode arrastar as classes médias para os protestos, como atiçar o “lúmpen” para fazer quebradeiras de bens públicos e privados -principalmente bens públicos - assim esvaziando os movimento sociais e políticos de esquerda, que estão insatisfeitos, com justiça, com os limites que já bloqueiam o crescimento econômico e impedem a melhoria da qualidade do serviços públicos nas áreas da saúde, transporte e segurança, principalmente nas grandes regiões metropolitanas. A repressão, então, por este mecanismo perverso de isolamento dos lutadores sociais, aparece legitimada para a maioria da sociedade, que não se identifica com a violência gratuita à margem da lei, aceitando uma violência do Estado, que julga “necessária”, mesmo que muitas vezes também à margem da lei.
Arrisco dizer que, diferentemente das crises clássicas do capitalismo – como na crise de 29 e na crise “do petróleo” nos anos 70 – a crise atual se diferencia, enquanto crise política conjugada com a crise econômica, por encontrar o capital com um grau organização mais complexo e sofisticado, sem aparência imediata, mas mais capaz de interferir rapidamente sobre os Estados, sem guerras extensivas e ocupações militares em todos os territórios de domínio. De um lado, há uma verdadeira “Internacional do Capital Financeiro”, com seus tentáculos internos na mídia e nos partidos tradicionais -que já avança sobre os não tradicionais através do financiamento privado das campanhas eleitorais- e, de outro, há uma visível fragmentação na estrutura material e espiritual das classes populares, com a correspondente fragmentação dos seus movimentos e partidos.
Os bancos centrais dos países ricos, as agências privadas de risco, as instituições financeiras destinadas a especulação, juntamente com as grandes cadeias de comunicação globais, são organizados diretamente pelo dinheiro e apoiadas na reprodução ficta do dinheiro, com um manto ideológico e político que carece de coerência programática, mas que se amplia no próprio movimento do dinheiro, como acumulação artificial incessante. Esta vai aparelhando e submetendo instituições, grupos e indivíduos, em todas as esferas da vida pública, assim tornando os próprios partidos liberais e neoliberais supérfluos, como inteligência política, constituindo-os como mera extensão e reprodução daquele movimento do dinheiro, promovendo a irrelevância das suas construções programáticas.
O surgimento de partidos de extrema direita e de caráter fascista em toda a Europa, com base de massas, também é uma agonia da política burguesa democrática em seu sentido clássico e, em termos humanos, imprime nestes partidos o mesmo conteúdo ideológico de barbárie que move as atuais guerras de conquista territorial pelas fontes de energia fóssil: ambos os processos são inspiradas pelo espírito patriótico, ambos dependem de aplicação de doses maciças de violência para serem vitoriosos, ambos respaldam o poder dos mais fortes e mais decididos a dominar e vencer, ambos não tem a aniquilação da vida do outro como limite moral do seu projeto de poder.
Ao tentar desmoralizar o Brasil, sem qualquer rubor e apostando que a Copa fosse um festival de incompetência e violência generalizada, a direta conservadora e antidemocrática do país – associada material e ideologicamente ao capital financeiro e sua estrutura de poder internacional - mostrou mais uma vez que não conhece o Brasil. Nem o que tem de bom, produtivo e organizado, no Estado brasileiro. Não conhece o seu povo, porque não convive com as suas lutas nem compreende a sua linguagem, como demonstraram quando quiseram impedir o Prouni e o Bolsa-Família, por exemplo. Não conhecem o Estado Brasileiro, porque prestam atenção somente nas suas imperfeições e mazelas históricas, com os olhos de quem quer destruir o que ele tem de público para construir uma nação soberana, pautada pela Justiça e pela Liberdade.
- Tarso Genro é Governador do Estado do Rio Grande do Sul.
30/jun/2014
https://www.alainet.org/fr/node/86796
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