Entrevista com Camille Chalmers
Nosso futuro depende de uma ruptura total com todas as formas de dependência
16/09/2010
- Opinión
Entrevista cedida a Oelington de Souza, Paulo Almeida e Thalles Gomes.
SanMak/Haiti
Por que a colônia mais próspera das Américas se tornou a nação mais pobre do continente? O que se pode esperar da economia de um país que em apenas 35 segundos perdeu o equivalente a 120% de seu PIB? Como superar uma crise econômica sob uma ocupação militar que já se arrasta há seis anos? Camille Chalmers, professor da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Estatal do Haiti e coordenador da PAPDA [Plateforme Haïtienne de Plaidoyer pour un Développement Alternatif], busca responder a essas e outras indagações em entrevista exclusiva ao Jornal Brasil de Fato.
Brasil de Fato: Quais as linhas gerais para compreender por que o Haiti se transformou da colônia mais próspera das Américas no século 18 à nação mais pobre do continente no século 21?
Camille Chalmers: Há duas linhas fundamentais de explicação. Primeiro, há de se levar em conta a natureza da revolução antiescravista que realizamos no início do século 19, criando um Estado e uma República independente em condições totalmente distintas do que se passou no resto da América Latina. Porque nós realizamos duas rupturas. Uma ruptura com as metrópoles coloniais e também uma ruptura nas relações sociais internas, através da abolição da escravidão e do intento de criar uma economia auto-centrada nas necessidades básicas da população. Essas duas revoluções se constituíram em uma experiência que representou uma ameaça para os interesses dos impérios da época que utilizavam a escravidão como ferramenta de acumulação. E sabemos que até o século 20 esses impérios seguiram com processos escravistas e que em alguns países a escravidão seguiu real até final do século 19. Portanto, era importante para eles demonstrar que nossa experiência era um fracasso. Que não seria possível que filhos de escravos conduzissem um Estado e construíssem um país. O segundo elemento fundamental de explicação diz respeito à natureza da luta de classes que se desenvolveu dentro do país, sobretudo ao redor do assassinato de Jean Jacques Dessalines, que fundou o país em 1804 e que tentou avançar rumo a um processo autônomo, um Estado autônomo e independente. Do assassinato de Dessalines [em 1806] até 1825, constitui-se um Estado Oligárquico, um Estado ao redor de novas classes dominantes que construíram seu poder marginalizando sistematicamente a classe camponesa que havia realizado a revolução antiescravista. Dessa forma, trata-se de um Estado que se constitui de maneira totalmente oposta à nação. Um Estado opressivo, um Estado oligárquico, um Estado depredador, que define seus interesses sobre o intercâmbio comercial com o estrangeiro e com o mercado capitalista. É um Estado controlado por uma oligarquia que está ligada ao comercio internacional, às importações e às exportações de alguns produtos como o café e o açúcar. Assim, toda a dinâmica desenvolvida por esse Estado é a de rearticular a “economia de plantação”. Mas é impossível regressar à “economia de plantação” quando já não há mais escravidão. É essa tensão que explica o bloqueio do desenvolvimento do país, pois esta cisão entre Estado e nação nunca foi resolvida. Esta situação piorou bastante a partir de 1915, quando a ocupação militar dos Estados Unidos agrava essa ruptura entre Estado e nação, criando todo um mecanismo de dependência frente aos Estados Unidos. Trata-se de uma substituição da dependência ante as potências européias pela dependência direta aos Estados Unidos, em condições onde se modifica totalmente o jogo político interno, marginalizando ainda mais o campesinato através de uma brutal repressão, criando um Estado totalmente dependente e com um exército que obedece às ordens que vem diretamente do Departamento de Estado americano. Isso explica porque no Haiti, apesar da façanha realizada pela revolução antiescravista, apesar de possuir um campesinato dinâmico que foi capaz de abastecer todo o país com alimentos por quase dois séculos, apesar de tudo isso, não foi possível avançar rumo a um desenvolvimento, rumo a um crescimento sustentável e rumo à criação de riquezas que permitiria realmente realizar os sonhos e os anseios de 1804. Estamos diante de uma situação onde há um bloqueio criado por essa ruptura do Estado com a população, com a massa camponesa e da relação de dependência deste mesmo Estado com respeito às potências imperialistas. Por fim, deve-se ressaltar que o peso da hostilidade externa é muito forte e isso criou um isolamento total do país. O Haiti é visto como uma espécie de ameaça para o conjunto das elites latino-americanas e é essa mesma retórica que se está utilizando atualmente para justificar a MINUSTAH, porque a resolução das Nações Unidas que autorizou o desembarque das tropas em 2004 diz em seu preâmbulo que o Haiti é uma ameaça para a segurança do hemisfério. Essa mesma visão de um “povo ameaça”, que se relaciona com todo um discurso racista contra o povo do Haiti, explica porque temos uma posição particular dentro das relações internacionais, uma posição muito particular dentro do Caribe, e que o colonialismo e o neocolonialismo tenham sido exitosos em isolar totalmente a experiência haitiana, que até agora é muito pouco conhecida. Pouca gente conhece realmente nossa trajetória. Há muito pouco conhecimento e também muita manipulação sobre a imagem que se projeta do Haiti. A imprensa internacional joga um papel chave em criar uma imagem muito deteriorada da experiência haitiana e muita gente não entende realmente o que é o Haiti e o papel decisivo que jogou no processo de independência da América Latina, pelo apoio dado a Bolívar e Miranda que foi muito estratégico e que ajudou muito as lutas libertárias no continente. O mais grave é que, frente à crise atual, que realmente é uma crise político-social muito profunda, a intervenção da MINUSTAH utilizando tropas latino-americanas é uma situação que não permite realmente um encontro entre o povo do Haiti e os povos latino-americanos, porque há toda uma retórica de manipulação dizendo que a MINUSTAH é uma cooperação Sul-Sul, quando de fato não o é. É um elemento totalmente integrado dentro dos planos bélicos e de revitalização imperial dos Estados Unidos.
BdF: Você falou do papel do campesinato no processo de formação do Haiti. Poderia falar um pouco mais sobre como se deu o desenvolvimento da agricultura na economia do país?
CC: É um ponto muito importante, porque o campesinato haitiano, depois da abolição da escravidão, começou a ocupar terras, muitas vezes sem títulos, numa espécie de colonização do espaço agrário após o processo de revolução no início do século 19. Construiu-se então uma agricultura baseada na produção de alimentos para a população. E frente a isso, o Estado haitiano, conformado sobretudo a partir de 1825, buscou marginalizar esse campesinato para manter a produção voltada para o mercado mundial. Nasce assim uma luta, uma contradição muito forte, sobre a utilização das melhores terras para a produção de alimentos ou para a produção de bens de exportação para o mercado mundial. E toda a legislação criada durante o século 19 foi para marginalizar a população camponesa e para dedicar as melhores terras para a exportação. Esta tensão segue viva, apesar de que as condições se modificaram bastante, porque o Haiti já não é mais um exportador importante nem de café nem de açúcar. Entretanto, ainda não se compreendeu que o pequeno campesinato e a pequena produção da agricultura têm sido o elemento básico da resistência haitiana, permitindo que o Haiti, apesar de todas essas condições, tenha obtido uma auto-suficiência em termos de cereais até ano de 1972. Para poder responder à crise atual é fundamental ter uma estratégia que dê prioridade à produção agrícola e que permita solucionar os problemas graves da produção agrícola, aproveitando as reservas de produtividade e melhorando, sobretudo, as condições de vida do campesinato haitiano, que está totalmente excluído do acesso à escola, saúde pública, saneamento etc. Para transformar o país é preciso um plano de crescimento econômico baseado na agricultura, baseado na transformação a partir dos produtos agrícolas, que permita romper com a extrema pobreza em que vivem atualmente os camponeses.
BdF: O que se pode dizer da industrialização no Haiti? Em que nível se encontra atualmente?
CC: Quase não há setor industrial. É muito pequeno, muito raquítico. Havia um setor industrial que produzia alguns produtos de consumo imediato, mas esse setor foi abandonado com as políticas neoliberais que abriram o mercado interno para a concorrência internacional e muitas dessas empresas não conseguiram resistir. O outro setor industrial é o setor das zonas francas, que se baseia na exportação de têxteis e outros produtos para os Estados Unidos. É este o setor que foi apresentado a partir dos anos 70 como uma alternativa para a industrialização do país. Não eram chamadas de zonas francas nesta época, mas sim parques industriais. Instalaram em Porto Príncipe dois parques industriais que começaram a funcionar a partir de 1979 e chegaram a criar 70 mil empregos em 1982, no seu momento de maior força. Eram verdadeiras zonas francas de produção de couro, bolas de beisebol, cintos, têxteis e também de materiais eletrônicos, com muitas empresas “Join Adventures” associando capital minoritário haitiano com capital estadunidense. Esta experiência foi muito desoladora em termos de modelo de desenvolvimento porque mostrou seus limites muito rapidamente. Atraiu à capital Porto Príncipe 70 mil empregados, mas junto com eles 2 milhões de desempregados.Quer dizer, criou mais desemprego e essa é a raiz do problema de Porto Príncipe atualmente, com uma urbanização totalmente anárquica e sem nenhuma gestão real em termos de políticas sociais para este fluxo migratório que significou uma verdadeira explosão em termos demográficos. É um setor muito dependente, muito pobre em termos de tecnologia, são tecnologias bastante limitadas. É um setor em que as pessoas não obtêm nenhuma aprendizagem que possa ser utilizada em outros setores produtivos. E é um setor de capital muito volátel, que se desloca a cada vez que se transformam as condições de competitividade a nível de mercado mundial. No Haiti, este setor está sendo apresentado novamente como uma alternativa. Mas agora, nesta nova onda de propostas que estão chegando desde 2002, há a presença de empresários da Republica Dominicana que querem mover parte de seu parque industrial para o Haiti, sobretudo na região fronteiriça, seguindo o exemplo da CODEVI instalada na fronteira norte. Fala-se hoje em dia na instalação de 14 novas zonas francas na fronteira e outras zonas francas no Noroeste e no Sul do país. Há, portanto, toda uma estratégia atual, proclamada inclusive pelo presidente do Banco Mundial, para transformar o Haiti numa plataforma de serviços para as empresas transnacionais, uma plataforma de serviços para as zonas francas, com uma mão-de-obra muito maltratada, com uma mão-de-obra sem nenhum direito real. Nesse sentido é que se deve compreender o novo acordo comercial com os Estados Unidos, que antes se chamava HOPE mas que agora se chama HELP. Trata-se de um acordo para a entrada preferencial de produtos têxteis do Haiti no mercado estadunidense e que é ao mesmo tempo um acordo de livre comércio que exige do Estado haitiano a aplicação de medidas neoliberais. E há muitos interesses que se movem ao redor disso, não só os interesses dos empresários dominicanos, estadunidenses, mas também de empresários brasileiros que estão interessados nisso. Por exemplo, o vice-presidente do Brasil tem interesses diretos no setor têxtil. Uma comitiva de empresários brasileiros visitou o Haiti há poucos meses demonstrando interesse em estabelecer zonas francas no ramo da sapataria para fazer do Haiti uma plataforma de exportação rumo aos Estados Unidos. De acordo com os documentos oficiais a previsão é que essas zonas francas criem 200 mil empregos nos próximos anos. Entretanto, nós já conhecemos o significado disto e é muito importante combater essa idéia e demonstrar que essas zonas francas não representam nenhuma alternativa, ao contrário, representam um aumento da super-exploração da mão-de-obra haitiana. Dessa forma, é essencial termos claro nesse momento que o desenvolvimento do Haiti, o futuro do Haiti, se radica numa ruptura total com todas essas formas de dependência, e na possibilidade de articular uma economia auto-centrada, onde os atores centrais devem ser o campesinato e os setores urbanos empobrecidos que possuem muita capacidade, muito conhecimento, muita sabedoria, muita força de trabalho e que podem ser mobilizados ao redor de um verdadeiro projeto nacional.
BdF: Nos últimos vinte anos, a América Latina foi palco de um fortalecimento das práticas neoliberais. Como isso ocorreu no Haiti? Como se deu a aplicação do neoliberalismo no país?
CC: No Haiti tivemos um movimento social muito forte nos anos 84, 85 e 86, que resultou na derrota da ditadura Duvalier. Esse movimento popular não estava lutando somente contra a ditadura, mas reivindicava também mudanças substanciais no contrato social. Uma nova repartição da riqueza, a realização da reforma agrária e o fim da marginalização do setor camponês. Esse movimento popular tão forte foi duramente golpeado pelo imperialismo e pela oligarquia dominante através de dois golpes de estado, em 1991 e 1994, três ocupações militares massivas, com mais de 20.000 soldados dos Estados Unidos e toda uma estratégia de divisão, fragmentação e corrupção do movimento social popular através dos projetos de desenvolvimento das ONGs e das agências humanitárias como a USAID. Assim que, frente a esse movimento popular que tinha reivindicações claramente anti-neoliberais, montou-se todo um projeto neoliberal e grande parte da classe dominante haitiana aderiu a esse projeto, que foi implantado aproveitando a grande repressão ao movimento social. Esse projeto neoliberal logrou uma liberalização financeira quase completa, com um processo de dolarização da economia muito forte, liberalização total das taxas de crédito, além da eliminação das instituições estatais que autorgavam crédito ao setor rural, o que explica porque agora há uma concentração do crédito e um empobrecimento total do setor camponês que não tem acesso a esse crédito. No setor de comércio exterior também realizaram uma liberalização quase total. E também avançaram rumo às privatizações. Queriam privatizar as nove empresas estatais mais importantes, mas lograram privatizar somente três – a de produção de farinha de trigo, cimento e, mais recentemente, telecomunicações. Nas duas primeiras experiências de privatização, as estatais foram praticamente entregues a empresas norte-americanas e a empresas européias. Além disso, ocorreu também todo um processo de privatização de fato, como, por exemplo, com a entrada das empresas de telefonia celular. Boa parte deste setor está controlada atualmente por empresas do capital transnacional, como é caso da Digicel/Comcel. Dessa forma, há uma penetração desse capital transnacional, mas uma penetração que se limita ao setor de serviços e que não cria nenhum processo de industrialização. Inclusive, pode-se dizer que há hoje no Haiti um processo de desindustrialização, com as novas políticas de abertura implantadas desde o ano de 1986. É importante ressaltar que a implantação dessas políticas neoliberais foram uma das táticas utilizadas pelo imperialismo para deslegitimar o poder de [Jean Bertrand] Aristide. O objetivo do golpe de estado de 1991 era sacar o movimento popular do cenário político. Quando esse movimento regressou em 1994, impuseram a aplicação de um plano neoliberal que teve como efeito uma separação de Aristide e sua base social, e a criação de uma fragmentação política dentro do movimento social popular. Isso explica porque agora, apesar de termos um nível importante de conscientização e de mobilização, não temos um movimento nacional capaz de convocar todos os setores da sociedade para resistir aos ataques do imperialismo, e que tampouco tenha capacidade de avançar e retomar os planos de transformação que tínhamos nos anos 1984 a 1986.
BdF: Que influência a presença estrangeira exerce sobre a economia do Haiti? Até que ponto essa presença representa os interesses do capitalismo internacional no país?
CC: O setor das zonas francas sempre foi dominado pelo capital estrangeiro. Havia também alguma participação de capital haitiano, mas 80% era de capital estrangeiro, basicamente estadunidense. Agora, nesse mesmo setor, estão entrando novos capitais asiáticos da Coréia, além da presença da Vietel, uma empresa do Vietnã, que comprou a estatal TELECO. No entanto, os setores de maior lucratividade são basicamente os setores financeiros e comerciais, que não tem nada a ver com a base econômica do país, pois estão mais relacionados com as transferências monetárias dos haitianos repatriados - que transferem mais ou menos 35% do PIB (Produto Interno Bruto). Isso representa quase 1,8 bilhão de dólares por ano e é uma base suficiente de lucro para o setor do capital comercial. Dessa forma, o capital financeiro está nas mãos da oligarquia nacional. É um setor controlado por empresários haitianos, mas que atua em estreita relação com o setor financeiro estadunidense. Grande parte do que tem como reserva está investido no mercado de capitais dos Estados Unidos. São “haitianos”, mas não têm nenhuma visão, nenhum projeto de desenvolvimento nacional. Portanto, a presença do capital estrangeira está bastante reduzida e há muitos planos para a entrada desse capital no setor turístico e no setor extrativo, por exemplo. Há planos de extração de ouro no Noroeste onde há reservas auríferas importantes e inclusive petróleo. Mas são planos que impõem muitas reticências para se estabelecerem, porque querem eliminar totalmente o movimento social e toda a capacidade reivindicativa do povo, para assim obter uma taxa de exploração estável baseada na super-exploração da mão-de-obra. Nesse momento de grande crise após o terremoto de 12 de Janeiro, esse setor quer se aproveitar para entrar massivamente com os capitais externos e eliminar grande parte da resistência haitiana. E é o que estão tratando de fazer com mecanismos inclusive institucionais, como a CIRH [Comissão Provisória para a Reconstrução do Haiti], que está totalmente sob o controle de Washington e das instituições financeiras internacionais.
BdF: Quais as conseqüências do terremoto de 12 de Janeiro para a economia haitiana?
CC: É uma situação terrível, com um saldo expressivo de mortos – fala-se em mais de 300 mil mortos. Desde o ponto de vista social, estamos falando de 1,2 milhão de pessoas vivendo nas ruas, um milhão de órfãos e uma perda enorme em termos materiais e de infra-estrutura - que se calcula em torno de 120% do PIB. Frente a isso, durante os últimos oito meses, não se há dado nenhum processo de recuperação real, nem de inversão massiva, que poderia permitir ao povo d o Haiti recuperar o que existia antes do terremoto. O que vemos é uma situação de embate, de jogo, de manipulação, onde o que mais preocupa ao capitalista é aproveitar-se do que chega como ajuda de emergência ou reconstrução, para reforçar a presença das transnacionais no país. Isso se manifesta claramente quando da montagem da CIRH. Por outro lado, desde o ponto de vista do povo, vivemos uma experiência muito forte, com muitos laços novos de solidariedade que se desenvolveram com o deslocamento massivo de boa parte da população de Porto Príncipe para o campo. Creio que é uma ocasião, um momento muito importante para não somente trabalharmos sobre um plano alternativo de construção do país, mas também aproveitar esse ambiente de solidariedade interna que se mobilizou de maneira tão admirável depois do terremoto para dizer que a base fundamental da reconstrução deve ser a economia solidária, essa solidariedade que existe dentro do povo haitiano, rechaçando os planos de controle imperial que têm uma cumplicidade quase total da classe política interna.
BdF: Você disse que hoje em dia o Haiti vive uma crise que tem suas origens em 1986. O que caracteriza essa crise? O que a distingue de outras crises que o Haiti já passou?
CC: A crise atual é uma crise que tem manifestações múltiplas em todos os setores. Temos uma economia que é muito débil. A nível agrícola, por exemplo, não temos capacidade de abastecer o país, importando quase 50% dos alimentos. Não há tampouco dinamismo nos outros setores econômicos. É uma economia que está em regressão. Inclusive com respeito a cifras dos anos oitenta tivemos uma recessão prolongada com uma redução da taxa de crescimento durante mais de dez anos. Desde o ponto de vista político, a Constituição de 1987 foi adotada num ambiente de crescimento e de auge das lutas populares e contém muitas disposições importantes em termos de participação popular, em termos de ampliação da participação das comunidades de base. Mas não houve realmente uma mudança real no funcionamento do sistema político. Há uma tensão entre um novo sistema definido pela Constituição de 1987 e a realidade do Estado Oligárquico repressivo de sempre. É essa tensão que explica a existência de uma espécie de bloqueio, uma espécie de empate entre as forças progressistas que buscam uma mudança radical em termos econômicos e políticos e as forças oligárquicas do imperialismo que estão decididos a manter o status quo, aceitando apenas mudanças levianas e superficiais. É essa situação que explica, por exemplo, que durante o período eleitoral existe sempre uma preocupação por parte do poder em excluir a maioria do povo da participação nas eleições. Essa classe dominante não logrou obter um controle efetivo das massas em termos ideológicos e teme que as massas se expressem de maneira distinta ao programado pelos interesses imperiais. Foi o que se passou em 2006, e que passará provavelmente nas eleições de novembro. A crise atual é uma crise onde as classes dominantes não logram apresentar verdadeiramente um projeto que estabilize o sistema e ao mesmo tempo não conseguem vencer de maneira definitiva os movimentos populares que conservam capacidade de mobilização, capacidade de presença, mesmo que diminuída se comparada a de 1991. Trata-se, então, de uma transição que já dura muito tempo e que vai incorporando novos atores. Por exemplo, há todo um processo de criminalização da economia com a questão do trafico de drogas que está se intensificando, aproveitando a debilidade das instituições políticas. Deve-se ressaltar que desde 2004 o tráfico de cocaína para os Estados Unidos dobrou, o que representa uma fonte importante de corrupção, manipulação e desarticulação dos movimentos. Grande parte da burguesia comercial, da burguesia financeira, se acomodou nessa situação, aproveitando para obter lucros significativos. Todo o setor financeiro está crescendo muito rapidamente, baseando-se em atividades que não têm nada a ver com economia nacional e que são atividades especulativas. Utilizam transações cambiais para poder maximizar seus lucros, sem realizar nenhuma inversão dentro da economia nacional, nem a nível do setor agrícola, nem a nível do setor industrial.
BdF: Sob o ponto de vista de superação desta crise, o que se pode esperar das eleições presidenciais de novembro?
CC: Muito pouca coisa. As eleições de novembro vão aprofundar ainda mais a crise. Vão criar mais instabilidade e menos legitimidade dos poderes estatais, porque agora temos uma situação de ocupação militar pela MINUSTAH e uma situação de ocupação econômica e política pela CIRH presidida por Bill Clinton. Nessas condições, os dirigentes têm um espaço de legitimidade cada vez mais reduzido. Entretanto, essa situação de crise pode permitir o surgimento de um plano alternativo, um plano patriótico de liberação, que dê resposta à crise conjuntural e que possa inclusive encontrar soluções para a crise estrutural. Temos a possibilidade de desenvolver um plano alternativo que consiga oferecer uma real alternativa ao povo e que avance rumo a uma integração nacional, rumo a um projeto popular que permita liberar as forças produtivas e criar riqueza e prosperidade para o país.
BdF: Em que nível se encontra a construção desse plano patriótico de liberação dentro dos movimentos populares ?
CC: Como eu disse antes, há muita fragmentação. Nos últimos anos houve avanços importantes em termos de criação de frentes unificadas, mas ainda há muito trabalho a ser feito. E também há uma presença muito forte de agentes ligados a tudo que é “projeto de desenvolvimento”. Muitas ONGs têm uma base financeira importante e controlam boa parte do movimento popular. Portanto, é necessário liberar o movimento popular dessas forças, da força da Igreja, da força das seitas protestantes e da força das ONGs ligadas ao imperialismo. No setor operário, por exemplo, a desarticulação do setor de produção dirigido ao mercado nacional significou também a debilitação do movimento operário e o movimento sindical tem sido manipulado desde fora pelo financiamento externo. No setor camponês, há atualmente uma situação de aproximação de forças sociais que tiveram muitas divergências políticas no passado. É um processo interessante que permitiu desenvolver lutas conjuntas contra os agrocombustíveis e contra as sementes transgênicas da Monsanto. É importante chegar a mais unidade dentro do setor camponês para ter uma frente unificada forte a nível nacional, mas é importante também desenvolver laços de trabalho e aproximação entre o movimento camponês e outros setores do movimento social para podermos chegar a um projeto nacional viável, crível e mobilizador que apresente uma alternativa real para o povo. Para tanto, creio que um elemento básico é a conformação nos próximos anos de uma força política nova. A conjuntura atual é muito propícia para que avancemos nesse sentido, porque a resposta que se está dando à crise pós-terremoto é uma verdadeira caricatura que ajuda muito a desenvolver mais consciência e construir alternativas políticas e sociais que permitam superar a fragmentação popular, articulando um projeto anti-imperialista, um projeto de liberação nacional, de afirmação da identidade caribenha e nacional contra todo tipo de dominação, exploração e manipulação.
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