O bobo da corte

28/12/2003
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O bobo da corte é uma personagem marcante na Idade Média. Os soberanos medievais e as grandes famílias feudais não dispensavam seus serviços. Ao contrário, muitas dessas figuras são honoráveis e respeitados, vivendo, não raro, em meio ao luxo e à proteção do rei, do senhor ou do bispo. Estes não vivem sem seus histriões, os quais muitas vezes "fazem parte da coleção de feras real", conforme escreve George Minois em sua História do riso e do escárnio, Editora Unesp, São Paulo, 2003. O autor insiste que "todas as casas reais e principescas têm seus bobos. E lembra que, segundo o testemunho de outros historiadores, "existiram verdadeiras dinastias de bobos, ou centros de formação, viveiros da loucura oficial". A função do bobo é fazer rir. Mas, como alerta Minois, "não se trata, evidentemente, de um simples palhaço. Se o riso que ele provoca é importante, é porque traz consigo o que falta, em geral, nos círculos do rei: a verdade". Daí que "tais bobos não eram bobos. A função exige grande inteligência". De acordo com o mesmo autor, "o soberano só conhece a verdade por meio de seu bobo – sobretudo a verdade penosa, aquela que fere, aquela que um homem sensato e atento à situação não ousaria revelar". "O bobo é também aquele que lembra ao rei – como o fazia o escravo dos triunfadores romanos – que ele é apenas um mortal, partilha da condição humana, para evitar que mergulhe na embriaguez do poder solitário. O bobo é a contrapartida à exaltação do poder, porque ele é o único que pode dizer tudo ao rei. Sob a proteção da loucura e, portanto, do riso, ele pode se permitir tudo. A verdade passa a ser a loucura do riso. O bobo dá o espetáculo da alienação e adquire, a esse preço, o direito à palavra livre". "Em outros termos, a verdade só se faz tolerar quando empresta a máscara da loucura... e se a verdade passa pela loucura, passa necessariamente pelo riso. Só o riso é capaz de fazer o rei aceitar a verdade". "O riso do bobo tem ainda, na Idade Média, outra função: ritualizar a oposição, representando-a. Verdadeiro anti-rei, soberano invertido, o bobo assume simbolicamente a subversão, a revolta, a desagregação, a transgressão. É um parapeito que indica ao rei os limites de seu poder. O riso razoável do louco é um obstáculo ao desvio despótico". Usando ainda a expressão de Minois, a "gargalhada ensurdecedora" de Rabelais e de toda a renascença ajudou a dissipar as trevas da era medieval. Representou, de certa forma, a luz no fim de um longo túnel e a passagem para os tempos modernos. Não seria mau se as cortes de hoje ressuscitassem a função do bobo. Quem sabe sua figura temida e debochada e seu riso cínico e sarcástico pudesse contribuir para quebrar a arrogância de impérios e imperadores, para relativizar as "verdades absolutas" de uma ciência muitas vezes idolatrada ou para reduzir a cinzas os fanatismos religiosos! Nos palácios e planaltos, nos tronos e altares, nas instâncias da democracia moderna – executivo, judiciário e legislativo – o bobo poderia fazer um grande serviço: revelar com seu sarcasmo a nudez e a fragilidade da lei e do poder, bem como as fraquezas e limitações daqueles que os detêm. O riso é indômito e revolucionário: por caminhos enviesados põe a nu as fissuras da sociedade, permitindo que através delas se abra espaço para novas alternativas sócio-econômicas e político-culturais. Já dizia o filósofo: "o verdadeiro sábio é aquele que é capaz de rir de sua sabedoria". O riso aponta o dedo para as rugas, os cabelos brancos, as falhas e as contradições que queremos esconder. Escancara a verdade nua e crua. Torna-se com isso um grande instrumento de consciência e de mudança. Ao final do primeiro ano do governo Lula, talvez a melhor avaliação seja uma sonora gargalhada, ou um riso aberto e crítico ou, ainda, um sorriso apenas esboçado, cheio de interrogações, incertezas e perplexidades. Alfredo J. Gonçalves Brasília/DF, 28/12/03
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