Eleições 2002: Propostas para reflexão

30/11/2001
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Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

48ª Reunião Ordinária do Conselho Permanente

Eleições 2002: Propostas para reflexão

Introdução

  1. O povo brasileiro deverá escolher, em 2002, o Presidente da República, os Governadores dos Estados, Senadores, Deputados Federais e Estaduais.

  2. Atenta aos sofrimentos e esperanças do povo, a Igreja Católica no Brasil, como já é tradição, considera seu dever oferecer critérios e orientações que possam ajudar os cristãos a cumprir seu dever eleitoral, com consciência e responsabilidade. A política é forma sublime de exercer a caridade.

  3. A transformação rumo a uma sociedade justa é um processo contínuo, que exige profundas mudanças culturais e implica a participação de todos. Embora não se possa esperar resultados mágicos - menos ainda na realidade brasileira, marcada pela desigualdade social -, as eleições dos dirigentes políticos são etapas que podem fazer avançar decisivamente esse processo.

  4. No ano 2002, as eleições serão de grande importância para a definição de um futuro próximo, onde a sorte de todos os brasileiros e brasileiras estará em jogo. A Igreja faz um forte apelo à consciência dos cidadãos, para firmar as bases de uma sociedade verdadeiramente democrática.

  5. Este documento pretende ser um instrumento de trabalho, para que nossas Dioceses, paróquias, comunidades, movimentos e pastorais reflitam sobre a presença e a atuação dos católicos na política. Propomos que, a partir dele, sejam elaborados subsídios ou cartilhas, com feições locais, que orientem as eleições de 2002.

  6. Pronunciando-se sobre os problemas nacionais por ocasião das eleições, a Igreja Católica dá continuidade ao esforço realizado desde a década de 30 para promover a participação dos católicos na vida política. Deu seu apoio às reformas de base no início dos anos 60, à defesa dos direitos humanos e à redemocratização nos anos 70. Incentivou as emendas populares na Constituição de 1988 e a iniciativa popular de Lei contra a corrupção eleitoral em 1999.

  7. Após mostrar a gravidade da situação nacional e internacional, este documento aponta sinais de resistência e esperança, recorda o Ensino Social da Igreja, explicita as grandes opções em jogo, e oferece diretrizes para as comunidades eclesiais.


Situação nacional e internacional: desafios

  1. A fome continua sendo o maior flagelo, trasformando-se numa verdadeira guerra que mata mais que todas as outras. Na verdade, não se trata de falta de alimentos. O mundo tem condições de produzir mais do que são capazes de consumir todos os seus habitantes. O trágico defeito está em não se assegurar o acesso de muitos à alimentação necessária.

  2. O Brasil sofre de uma das mais perversas distribuições de riqueza do planeta. Segundo fontes oficiais, há pelo menos 44 milhões de pobres1. Num país tão rico como o nosso, o escândalo é que 11 milhões de pessoas ainda passam fome todos os dias2, enquanto persiste o consumismo ostensivo dos privilegiados.

  3. Essa situação de fome perdura também porque maus políticos a utilizam para se manter no poder.

  4. A submissão do país ao processo de globalização neo-liberal aprofundou as desigualdades e tende a aumentar a exclusão. A solução dos problemas sociais depende mais da distribuição da riqueza do que do seu crescimento.

  5. Há pessoas, em cargos públicos, que realmente exercem seu mandato pelo bem de todos. Mesmo assim, vemos crescer a distância entre a população e a maioria dos políticos. Estes vêm sofrendo enorme desgaste por causa dos escândalos que atingem até mesmo os seus principais líderes. Além disso, o Congresso Nacional enfraqueceu-se tolerando o regime antidemocrático das Medidas Provisórias.

  6. A cassação de mandato de vários políticos corruptos criou esperanças de renovação. A impunidade, porém, ainda prevalece favorecendo a cultura da corrupção. O desvio de recursos públicos, o tráfico das drogas e outras formas de crime organizado aumentam a violência e a insegurança da população.

  7. A este quadro nacional preocupante, somam-se perspectivas internacionais pouco alentadoras, agravadas pelos acontecimentos de 11 de setembro de 2001 e seus desdobramentos. O mercado financeiro domina cada vez mais a economia mundial em detrimento das necessidades da maioria da população. Em todos os países, a concentração de renda e o aumento de exclusão geram “massas sobrantes” submetidas ao desemprego, à fome e à ausência ou ao descaso das políticas públicas.

  8. O terrorismo mundial provoca uma reação político-militar que vitima um dos países mais pobres do mundo e que empurra os demais para um círculo vicioso de repressão, ameaçador de liberdades individuais e coletivas. Numa exibição de poderio militar, reaviva-se o comércio generalizado de armas, em detrimento dos investimentos sociais.

  9. A potência hoje hegemônica no mundo vem pressionando o nosso país a aderir ao projeto da ALCA - Área de Livre Comércio das Américas - que ameaça aumentar a submissão do Brasil e de toda América Latina aos interesses da economia dos Estados Unidos.

  10. Neste novo contexto mundial, visualiza-se a necessidade de nosso país definir um projeto nacional próprio e assumir um papel de líder na integração latino-americana.


Sinais de resistência e esperança

  1. Com alegria, vemos emergir, em meio a sinais sombrios, um crescimento da consciência dos Direitos Humanos; a sede de participação, sobretudo das mulheres e dos jovens; a luta contra toda a forma de discriminação e um maior reconhecimento do pluralismo étnico e cultural; o respeito ao eco-sistema e à vida.

  2. O desenvolvimento das forças produtivas e da tecnologia suscita esperanças de superação de antigos limites no campo da saúde, da comunicação e de outros. Esses progressos, porém, não são partilhados por todos. A maioria vive o desencanto e a frustração pela falta de acesso a esses benefícios.

  3. Estamos diante de novas formas e campos de atuação, de novos atores sociais, que se afirmam na sociedade atual, como cidadãos protagonistas de um mundo novo.

  4. Entre eles:

  • O povo que, na sua luta pela sobrevivência, baseada na solidariedade e no voluntariado, vai criando alternativas de resposta às suas necessidades e novas formas de trabalho;

  • A sociedade civil que toma iniciativas diversas contra o crescimento descontrolado das dívidas externa e interna;

  • As famílias, “fonte de esperança para o futuro da humanidade”, que se reúnem e articulam para garantir a educação dos filhos e reivindicam políticas sociais específicas;

  • Os movimentos, como o do Fórum de Lutas pela Reforma Agrária, que exerce pressão para que a Reforma se concretize e seja fixado o módulo máximo para as propriedades rurais;

  • Os Conselhos Municipais e os grupos de cidadãos que se organizam para acompanhar e fiscalizar a atuação de suas Câmaras de Vereadores;

  • A Lei no. 9840 contra a corrupção eleitoral, conquistada pela Iniciativa Popular, que obteve nas eleições do ano 2000 alguns resultados positivos. A Justiça Eleitoral não conseguiu afastar da atividade política pessoas sem escrúpulos, que se aproveitam da miséria e da ignorância para se elegerem, mas se prepara para aplicar mais plenamente essa Lei nas eleições de 2002;

  • O Ministério Público, quando assume com firmeza sua missão no aperfeiçoamento de nossas instituições democráticas, à luz da Constituição cidadã;

  • Os Meios de Comunicação que vêm cumprindo um papel importante no processo de democratização, embora revelem frequentemente uma defesa do sistema vigente, comprometendo a formação da consciência crítica da população;

  • Os movimentos em defesa da ecologia que têm despertado uma nova consciência na preservação da natureza, do equilíbrio vital do planeta e da convivência humana;

  • Os movimentos sociais, que abrem novos espaços para a solidariedade e promovem um clima de maior tolerância e de respeito ao diferente.

  1. Muitas destas iniciativas sociais têm contado com o incentivo e parceria da Igreja como instituição ou de grupos de cristãos, movidos pela fé. Não por acaso, a sociedade civil tem manifestado sua confiança na Igreja Católica, conforme mostram as pesquisas de opinião. Isto está em sintonia com sua missão de ser esperança dos pobres.

  2. Neste início de novo milênio, em que uma globalização excludente ameaça o horizonte da humanidade, valorizamos iniciativas de entidades da sociedade civil, como a do Fórum Social Mundial, realizado no início do ano 2001, em Porto Alegre, com continuidade prevista para o ano de 2002. Amparados em nossa fé cristã, queremos nos associar a esta inspiração criativa, excluindo toda manifestação de violência.


O Ensino Social da Igreja

  1. O Ensino Social da Igreja emerge da fé na Boa Nova de Jesus Cristo, vivida na espiritualidade, refletida pela tradição teológica e explicitada pelo Magistério. Não foram poucas as advertências dos profetas e do próprio Jesus em relação ao cuidado que todo o ser humano deve ter com seus irmãos, sobretudo os pobres e os excluídos. Essa verdade é tão explícita, que mereceu do Papa Paulo VI a afirmação contundente: “Entre evangelização e promoção humana – desenvolvimento, libertação – existem laços de ordem antropológica [...]; laços de ordem teológica [...]; laços daquela ordem eminentemente evangélica, qual é a ordem da caridade: como se poderia, proclamar o mandamento novo sem promover na justiça e na paz o verdadeiro e o autêntico progresso do homem?”3.

  2. Portanto, quando a Igreja Católica se pronuncia sobre a realidade social, política e econômica, o faz consciente de que de sua “missão religiosa decorrem benefícios, luzes e forças que podem auxiliar a organização e o fortalecimento da comunidade humana”4.

  3. A Igreja assume, desta forma, sua missão no campo político, visando formar as consciências cristãs de que há uma relação intrínseca, e portanto indissociável, entre vida e fé, promoção humana e missão religiosa;

  4. Há mais de cem anos, a Igreja Católica tem sistematizado seu ensino social face às ideologias dominantes seja do liberalismo, seja do socialismo. Recentemente, a prevalência do chamado neoliberalismo e as novas condições de produção e distribuição da riqueza têm levado o Magistério da Igreja a explicitar, com clareza, seu posicionamento tanto contra os desvios do atual sistema quanto em favor de novas formas de solidariedade.

  5. O Papa João Paulo II tem marcado seu pontificado com a chamada de toda a Igreja para o desenvolvimento da globalização da solidariedade. Ele considera como missão da Igreja, seu serviço e comprovação da sua fidelidade a Cristo, o incentivo às mais diversas formas de solidariedade, pois isso a identifica como a “Igreja dos pobres”5.

  6. Na Exortação Apostólica Ecclesia in America, 1998, falando sobre os pecados sociais que clamam aos céus, afirma o Papa João Paulo II: “Domina cada vez mais, em muitos países americanos, um sistema conhecido como “neoliberalismo”; sistema este que, apoiado numa concepção economicista do homem, considera o lucro e as leis de mercado como parâmetros absolutos em prejuízo da dignidade e do respeito da pessoa e do povo. Por vezes, este sistema transformou-se numa justificativa ideológica de algumas atitudes e modos de agir no campo social e político, que provocam a marginalização dos mais fracos. De fato, os pobres são sempre mais numerosos, vítimas de determinadas políticas e estruturas freqüentemente injustas”6.

  7. Na Carta Apostólica “No Início do Novo Milênio”, 2001, diz o Papa com igual força: ”O nosso mundo começa o novo milênio, carregado com as contradições de um crescimento econômico, cultural e tecnológico, que oferece a poucos afortunados grandes possibilidades, e deixa milhões e milhões de pessoas, não só à margem do progresso, mas a braços com condições de vida muito inferior ao mínimo que é devido à dignidade humana”7.

  8. Tudo o que foi recordado do Magistério da Igreja quer ser inspiração para opções que teremos de fazer, com a máxima responsabilidade, no ano das eleições. A Igreja não se furta de sua obrigação ética e evangélica de formar as consciências para que os cristãos e as pessoas de boa vontade assumam, com transparência e compromisso sério, o dever de fazer a melhor escolha, não apenas pensando em si, mas de maneira forte e radical no bem comum.


No horizonte das eleições de 2002, as grandes opções em jogo

  1. O presente documento quer ser um instrumento de trabalho que estimule não somente os católicos, mas todos os cidadãos de nosso país, a assumirem plenamente suas responsabilidades sociais.

  2. Ele não está unicamente voltado para as próximas eleições, mas quer abrir um espaço de diálogo - antes, durante e depois das eleições - para que algo de novo possa efetivamente nascer, em nosso país, da atuação dos responsáveis políticos que serão eleitos em 2002.

  3. A luta por uma real democracia representativa, deve impelir os partidos a assumir, plenamente, sua responsabilidade na escolha dos seus candidatos às eleições. É inadmissível que muitos desses partidos, mesmo entre aqueles de grande representação nacional, continuem apresentando, como candidatos, pessoas comprovadamente inescrupulosas no uso de recursos públicos. Há quem se aproveite das brechas da lei para não perder a elegibilidade, mesmo quando condenado.

  1. Ao assumir compromissos políticos, a Igreja Católica o faz a partir do imperativo ético da defesa da vida, em cada momento de seu desenvolvimento terreno. Este é o critério máximo de julgamento de qualquer sistema político, dos modelos econômicos e das soluções técnicas. Esse imperativo ético se concretiza, em cada momento e lugar, em metas políticas. Diante da atual realidade brasileira, três grandes metas ganham prioridade: a erradicação da fome; o efetivo respeito dos direitos humanos para todos; o desenvolvimento sustentável, que garanta qualidade de vida à população e respeite a ecologia.

  2. Sugerimos que os partidos políticos incluam essas metas em seus programas de políticas públicas, correspondendo a um projeto social. Assumidas pelos futuros membros eleitos para o Executivo e para o Legislativo, elas não só alimentarão a cultura da esperança, como poderão contribuir para uma convivência mais justa, condição para a superação da violência institucionalizada e para a construção da paz.


Para a erradicação da fome

  1. É preciso realizar, com urgência, uma justa redistribuição da renda do país. Não basta produzir alimentos em quantidade, se a eles a população toda não tiver acesso.

  2. É necessário efetivar a verdadeira Reforma Agrária, há tantos anos prometida. Ao lado de enormes propriedades, muitas vezes improdutivas, milhares de famílias sem terra reclamam alguns hectares para a própria sobrevivência. A “terra de negócio” não pode ter primazia sobre a “terra de trabalho”.

  3. Urge uma política agrícola vinculada à reforma agrária, que privilegie o pequeno produtor rural. Promova-se uma política de incentivo à agricultura familiar, por meio de programas de fixação e assentamento, facilidades de crédito, assistência técnica e de recursos hídricos, apoio e garantia à comercialização dos produtos.

  4. Merecem efetiva aplicação os diferentes projetos de renda mínima amplamente conhecidos. Quando combinados com a exigência de freqüentar a escola, ataca-se também o problema do analfabetismo. Além disso, oferecem novas oportunidades às famílias mais carentes e reduzem os índices de subnutrição e de mortalidade infantil, como fazem as pastorais sociais, com destaque à Pastoral da Criança.


Para o respeito aos direitos humanos de todos

  1. Impõe-se uma inversão de prioridades no uso dos recursos federais, estaduais e municipais, privilegiando as carências mais urgentes da população brasileira como a educação, saúde, moradia e segurança. Cabe redirecionar a atual política econômica, voltada para o serviço das dívidas interna e externa, em detrimento dos investimentos sociais. Essa inversão exige, por sua vez, desenvolver mecanismos de controle, por parte da população, da aplicação do orçamento e dos gastos públicos.

  2. É fundamental para a realização humana o direito ao trabalho. A criação de postos de trabalho deve ser priorizada. Os partidos não podem ignorar a voz do povo, que pede geração de novos empregos, mediante investimentos na construção de moradias populares e no saneamento, e incentivo às cooperativas e aos mutirões.

  3. Incentive-se a expansão do mercado interno, visando a satisfação das necessidades básicas do povo e o desenvolvimento da poupança interna, que diminuiria a dependência do país com relação aos capitais externos especulativos. Promova-se auditoria das dívidas externa e interna e uma revisão dos acordos com o FMI.

  4. Os investimentos nas áreas sociais devem contribuir para que a maioria da população veja finalmente respeitados os direitos fundamentais da pessoa humana, em nosso país. Um tratamento injusto é dado, de fato, aos pobres, e especialmente à população de origem indígena ou africana. Uma verdadeira democracia exige a superação de todas as formas de discriminação – de classe, de raça e de gênero – bem como o fim da violência e da impunidade.


Por um desenvolvimento sustentável

  1. Somos chamados a assumir, atentos ao futuro do planeta, um desenvolvimento sustentável, isto é, onde o ser humano possa produzir tudo que necessita sem danificar a natureza, fonte de vida para as gerações futuras.

  2. A Igreja propõe, frente ao consumismo dominante, a contribuição da cultura da simplicidade, intrinsecamente ligada à cultura da solidariedade. A economia solidária, as iniciativas do terceiro setor, os serviços prestados gratuitamente por voluntários, os projetos voltados para o desenvolvimento das comunidades e para o bem comum podem ser fortalecidos, se receberem o estímulo de políticas adequadas.

  3. É possível a convivência com o semi-árido brasileiro. Mais do que combater a seca, trata-se de aprender a conviver com a irregularidade da precipitação das chuvas, como aponta o caminho alternativo da campanha por um milhão de cisternas, levado adiante, na região nordestina, pela Cáritas, juntamente com várias pastorais e organizações da sociedade. Mas são necessárias também outras medidas econômicas para garantir a vida do povo no semi-árido.


Diretrizes para as Comunidades Eclesiais


Fundamentos

  1. A formação das consciências para a participação nas transformações sócio-políticas é responsabilidade de toda a Igreja. A atuação concreta nesse campo compete, antes de tudo, aos leigos que, de maneira especial, aí devem exercer o seu protagonismo, como já afirmava o episcopado latino-americano em Santo Domingo8.

  2. Para todos os cristãos, é urgente buscar a união entre vida e fé, a expressão da fidelidade a Cristo na vida quotidiana, nas relações sociais e na participação política. O Concílio denunciava como um dos “erros mais graves do nosso tempo”9 o divórcio entre a fé professada e a vida quotidiana. O Concílio afirmava ainda mais: “Ao negligenciar os seus deveres temporais, o cristão negligencia os seus deveres para o próximo e o próprio Deus e coloca em perigo a sua salvação eterna”10.

  3. O Papa João Paulo II, na mesma linha do Concílio, na Exortação Christifideles Laici, afirma: “Para animar cristãmente a ordem temporal, no sentido de servir a pessoa e a sociedade, os fiéis leigos não podem absolutamente abdicar da participação na “política”, ou seja, da múltipla e variada ação econômica, social, legislativa, administrativa e cultural, destinada a promover orgânica e institucionalmente o bem comum. [...] Todos e cada um têm o direito e o dever de participar da política, embora em diversidade e complementaridade de formas, níveis, funções e responsabilidades. [...] A opinião muito difusa de que a política é um lugar de necessário perigo moral, não justifica minimamente nem o ceticismo nem o absenteísmo dos cristãos pela coisa pública. Pelo contrário, é muito significativa a palavra do Concílio Vaticano II: “A Igreja louva e aprecia o trabalho de quantos se dedicam ao bem da nação e tomam sobre si o peso de tal cargo, a serviço dos homens”11.

  4. Há, porém, restrições à atuação político-partidária dos clérigos: “Os clérigos são proibidos de assumir cargos públicos que implicam participação no poder civil”12; “[Os clérigos] não tenham parte ativa nos partidos políticos... a não ser que, a juízo da competente autoridade eclesiástica, o exijam a defesa dos direitos da Igreja ou a promoção do bem comum”13. A razão desta norma está bem explicitada no documento de Puebla: “Os pastores, uma vez que devem preocupar-se com a unidade, se despojarão de toda ideologia político-partidária que possa condicionar seus critérios e atitudes. Terão, assim, liberdade para evangelizar o político como Cristo, a partir de um Evangelho sem partidarismos nem ideologizações”14.

  5. Pesquisas de opinião dos últimos anos indicam que a maioria dos fiéis católicos e dos cidadãos não deseja que a Igreja intervenha diretamente na política partidária, indicando candidatos, mas que ajude os eleitores a decidir melhor em suas escolhas, com informações e reflexões críticas. Encontram-se, porém, grupos de católicos e de outros cristãos que querem eleger candidatos de sua própria confissão religiosa. É preciso que o critério do bem comum esteja sempre acima do mero critério da confessionalidade e os católicos levem em conta as orientações do episcopado na atual conjuntura.


Orientações práticas

  1. A Igreja Católica no Brasil, por meio de documentos da CNBB e de iniciativas diocesanas, procurará:

  1. conscientizar cidadãos e cidadãs da sua responsabilidade de votar e votar bem, tendo presente que seu voto tem valor, escolhendo com cuidado os candidatos a serem votados nos diversos níveis; para isso poderá produzir cartilhas, volantes, cartazes, programas radiofônicos;

  2. promover debates e reflexões sobre programas e candidatos, a fim de propiciar uma melhor avaliação deles;

  3. organizar também seminários, encontros e outras modalidades para debate e aprofundamento de temas sócio-políticos mais específicos da região ou do lugar, a fim de envolver mais eficazmente um número maior de pessoas;

  4. estimular para que a escolha do candidato se faça a partir do seu programa, do seu respeito ao pluralismo cultural e religioso, do seu comportamento ético e de suas qualidades (como honestidade, competência, liderança, transparência, vontade de servir ao bem comum, comprovada pela atuação anterior...), do seu compromisso com a justiça e com a causa dos marginalizados15, com especial atenção a um programa de ação consoante com aquele proposto neste Documento;

  5. criar ou fortalecer comitês contra a corrupção eleitoral e para a aplicação da Lei 9.840, que proíbe a compra de votos e o uso da máquina administrativa;

  6. incentivar de modo especial a participação das mulheres na política, e contribuir para que elas preencham o número de vagas que lhes são reservadas por lei;

  7. valorizar os candidatos católicos eleitos, acompanhando-os no exercício de seu mandato e procurando manter relações de diálogo com a comunidade eclesial.

  1. A Igreja não indicará candidatos e partidos por meio da sua hierarquia, mas, para realizar os objetivos e atividades acima indicados, os fiéis leigos serão incentivados a promover grupos de “Fé e Política”, ou outra forma de organização que os ajude a assumir um papel ativo na conscientização e formação política.

  2. A Igreja poderá divulgar informações sobre os candidatos, cuidando da exatidão das informações e de fazê-lo rigorosamente dentro das exigências da Lei.

  3. Para evitar dispersão de votos, recomenda-se que, na escolha dos candidatos, os eleitores católicos procurem agir em parceria com movimentos populares, associações de bairro ou outras expressões da sociedade civil, evitando a identificação da Igreja com um candidato ou um partido.

  4. É oportuno exercer a vigilância com relação aos partidos que continuam indicando como seus candidatos pessoas comprovadamente inescrupulosas. Os eleitores devem ser orientados a não apoiar tais candidatos, e até recusar qualquer candidato de um partido que acoberte tais pessoas.

  5. Recomenda-se particular cuidado quanto aos partidos que incluem em suas listas líderes católicos, com a única função de somar votos para a sigla. Os votos dados a tais candidatos contribuem para a eleição de políticos, nem sempre merecedores de apoio.


Cronograma mínimo

  1. Sugerimos que, ao longo do ano de 2002, até outubro, dioceses, pastorais, movimentos e grupos de “Fé e Política” estudem este Documento e promovam:

  • a divulgação ampla deste documento, visando conscientizar a opinião pública, mediante debates, encontros, artigos, estudos, tanto em comunidades e instituições quanto em meios de comunicação (rádios, TV, jornais...);

  • a reflexão crítica, envolvendo candidatos a cargos eletivos, movimentos sociais e partidos, estudantes e intelectuais, trabalhadores e sindicatos;

  • a revisão e o esclarecimento daqueles aspectos deste documento e das posições da Igreja, que no decorrer do debate pré-eleitoral se revelem necessitados de melhor explicitação e/ou de aprofundamento.

  1. Dado o número e a complexidade dos temas, sugere-se um cronograma para os estudos, debates e divulgação, tendo como critério enfatizar um aspecto do documento em cada mês, conforme o roteiro seguinte:


2001

Dezembro

Primeira divulgação geral do documento e elaboração do plano de estudo e divulgação em âmbito local.

Entregar o documento aos dirigentes dos partidos, em âmbito federal e estadual, fazendo apelo para que evitem acolher e acobertar candidatos envolvidos em processo por corrupção.

2002

Janeiro

Estudo e divulgação das diretrizes para as comunidades eclesiais sobre o trabalho de conscientização política.

Fevereiro, março, abril

Estudo e divulgação deste documento, procurando esclarecer o “porquê” e o “como” da intervenção da Igreja no debate eleitoral. Elaboração das Cartilhas Regionais, Diocesanas ou Comunitárias.

Maio a setembro

Estudo e divulgação do documento conclusivo da 40ª Assembléia Geral da CNBB (abril de 2002) sobre a “Exigências Éticas e Evangélicas da Superação da Fome e da Miséria”, em conexão com a reflexão deste documento sobre as eleições e sobre as Cartilhas.

Brasília -DF, 27 a 30 de novembro de 2001


1 Cf. PNAD 1999 (setembro). Pobre: o que tem renda inferior a US$ 1,08 por dia.

2Cf. o “Panorama Social da América Latina 2000-2001”, estudo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), que situa o Brasil como o país de pior distribuição de renda nas Américas.

3 Exortação Apostolica Evangelii Nuntiandi n. 31.

4 Cf. Gaudium et Spes 42.

5 Cf. Laborem Exercens 8.

6 Exortação Pós Sinodal Ecclesia in America n. 56.

7 Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte n. 50.

8 Conferência Episcopal de Santo Domingo 103.

9 Gaudium et Spes 43.

10 Idem.

11 Gaudium et Spes 75 e CfL 42.

12 Código de Direito Canônico, 285, § 3.

13 Código de Direito Canônico, cân. 287, § 2.

14 Cf. Documento de Puebla, 526.

15 Cf. Por Uma Nova Ordem Constitucional, n. 29.

https://www.alainet.org/pt/articulo/105467
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