Os inocentes e os culpados
03/04/2002
- Opinión
Os sem terra erraram ao entrar na fazendo de FHC. Os palestinos erram ao
fazer atentados contra a população civil em Israel. Esses erros têm que
ser criticados. Não é porque a luta pela democratização do acesso à
terra seja justa, uma das mais importantes do Brasil hoje e os sem terra
sejam os protagonistas dessa luta, que não devem ser criticados quando
cometem erros. Não é porque a elementar reivindicação de um Estado
palestino seja a questão central a ser conquistada, para que seja
possível uma paz justa e duradoura no Oriente Médio, que os palestinos
não devam ser criticados quando cometem erros.
Devem ser criticados, com a dureza que cada caso exige, principalmente
porque sua luta representa o interesse das grandes maiorias e sua luta
deve ser encaminhada da melhor maneira possível, para que essas grandes
maiorias tenham seus interesses satisfeitos e a justiça possa se impor.
Quando erram, prejudicam a essas grandes maiorias, que necessitam
conquistar seus direitos e por isso é tão importante a questão das formas
corretas de luta por objetivos justos.
Devem ser criticados, para que a justiça da reforma agrária no Brasil e
da existência de um Estado palestino soberano se transformem em
realidade. Por isso seus erros são graves e devem ser criticados para
que sejam corrigidos e superados. Porque são lutas justas é que devem
ser criticadas, porque precisam triunfar e devem triunfar.
A campanha governamental, que conta com a ativa participação de grande
parte da mídia, tenta fazer dos sem terra agentes e não vítimas da
violência. Quando reagem à violência, são transformados praticamente em
introdutores da violência no campo no Brasil, sem os quais a paz no campo
se instauraria.
Quando ocupam terras improdutivas, são transformados em perturbadores da
produção que, sem eles, abasteceria as necessidades da população
brasileira, com acesso de todos os que querem trabalhar à terra.
Em suma, uma covarde e monopolística campanha de imprensa faz daqueles
mais pobres, mais excluídos, mais humilhados, vítimas, quando tentam
lutar por seus direitos. Quando lutam e o fazem como nunca, nem ninguém
no Brasil havia conseguido, para conquistar a justiça no campo, ao fazer
com que um milhão de pessoas estejam assentadas, trabalhando, com acesso
à escola, com dignidade e espírito comunitário. Construíram o mais
formidável sistema escolar público de acesso a todos, com qualidade e
funcionamento real.
Defender os sem terra, no seu projeto essencial de democratização do
acesso à terra – negado pelas elites brasileiras durante séculos, negação
herdada pelo atual governo e seu comissário contra os sem-terra, o
ministro, ex e agora anti-comunista – é compromisso dos que lutam por uma
sociedade justa e solidária. É nesse marco, dos que têm esse
compromisso, que cabem as críticas aos erros dos trabalhadores sem terra,
para que eles possam aprimorar suas formas de ação, seu discurso, afim de
que os objetivos por que lutam possam se impor e o Brasil avançar no
caminho – ainda distante hoje – de uma sociedade justa e democrática.
Os palestinos são os vietnamitas do mundo contemporâneo, aqueles que
resistem e se rebelam à vida sem destino que as grandes potências – com
os EUA e seu aliado aliado estratégico, Israel – lhes reservam. Eles
lutam na mais bela e heróica gesta de resistência de um povo nas últimas
décadas e são transformados, pela grande mídia, de vítimas em verdugos,
de povo humilhado, espoliado, dominado, expropriado do direito elemento
de ter um Estado próprio em agressores, “terroristas”, responsáveis pela
insegurança de outros países.
Se apelam para ações terroristas – de que são vítimas diárias pela
ocupação colonial de Israel – é porque acreditam que é o único
instrumento pelo qual podem responder a todo o sofrimento que três
décadas e meia tem lhe imposto. Deve-se discutir com eles sobre a
legitimidade e a eficácia de um método como o de ações que vitimizam à
população civil de Israel – que deve mudar radicalmente sua forma de
pensar e de sentir, para que uma paz duradoura e justa seja possível – no
marco de sua luta pelo direito a ter um Estado palestino – reconhecido há
décadas pela ONU, mas não pelos EUA e por Israel – com os preceitos
elementares de qualquer Estado – e de que Israel goza – de soberania,
fronteiras delimitadas e contínuas, direito de ir e vir, retorno dos
refugiados.
A crítica aos eventuais erros que os sem terra e os palestinos – para
citar movimentos que lutam por direitos essenciais –, por parte dos que
se comprometem com a construção de mundo melhor, mais humano, solidário –
portanto, muito distinto daquele existente atualmente, dominado pelo
dinheiro e pela força das armas e do monopólio midiático – é sobre formas
de luta, prazos, aliados. Em suma, um debate num marco de fraternidade e
de solidariedade, para que não se corra o risco de se deslizar do
ceticismo para o cinismo ou da divergência para o oportunismo – eleitoral
ou outro, mas sempre com os olhos voltados para o agrado dos que são os
adversários, não apenas dos sem terra e dos palestinos, mas de um outro
mundo possível, solidário e humanista.
Se os sem terra e os palestinos são culpados, eu não quero para mim essa
inocência.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105742
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