Propulsores da nave-espacial-mundo

25/04/2002
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A humanidade conheceu muitas crises e ilimitadas travessias. É verdade que nenhuma delas envolvia todas as sociedades, como no nosso caso. Mas atravessou a todas sem sucumbir. Ao contrário, saiu delas com novas possibilidades de realização pessoal e coletiva. Por isso, face à dramaticidade dos tempos atuais alimentamos esperança. Estamos apenas em dores de parto e não em espasmos de aborto. Vamos reflorescer e irradiar, pois, esse é o destino do ser humano no tempo e na eternidade. Entretanto, ninguém tem hoje, condições de desenhar o perfil da sociedade- mundo nascente. Seria ilusório apresentar um projeto ou um programa. O que importa é discernir aqueles princípios que podem funcionar como propulsores da nave espacial-Terra. Elencamos quatro princípios, há séculos enviados ao exílio, agora regressando lentamente: a Terra, o cuidado, o feminino e a espiritualidade. A geosociedade se funda neles. A Terra está sendo vista não mais como um baú de recursos ilimitados, mas como Gaia, um superorganismo vivo, que enlaça em redes de interdependências a todos os seres. Nós, humanos, somos Terra que sente e ama, cuida e venera. Essa percepção nos leva a ter sentimentos de pertença, de cooperação e de respeito sem os quais o novo não irrompe. Terra e humanidade têm um destino comum. O cuidado é da essência da vida e do ser humano. Junto com o trabalho, o cuidado constrói o mundo humano. Por milênios vivemos sob a ditadura do trabalho. Sem o cuidado o trabalho devastou a Terra. O cuidado que é uma relação amorosa para com as coisas, salvará ainda a vida e a Terra. O feminino no homem e na mulher é um princípio que origina em nós a percepção da totalidade, nos permite ver que as coisas são também símbolos, nos faz cultivar o espaço do mistério, nos inclina ao enternecimento e ao cuidado e nos torna mais cooperadores que competitivos. O resgate da “anima”(feminino) é fundamental para colocar no centro de tudo a vida e para fundar uma relação não utilitarista mas afetuosa com a realidade envolvente. Por fim, a espiritualidade. Ela não é monopólio das religiões mas uma dimensão do humano. É a nossa capacidade de dialogar com o Eu profundo e de ouvir os apelos da coração. É a consciência que se sente inserida num todo maior e que capta o elo secreto que tudo liga e re-liga à Fonte primeva de todo ser, chamada Deus. Com ele entretém diálogo de intimidade e de amor. A espiritualidade é a aura que sustenta os valores de solidariedade, com-paixão, cuidado e amor, fundamentais para uma sociabilidade verdadeiramente humana. De volta do exílio, esses princípios perpassam os movimentos sociais e inauguram um novo estado de consciência, mais respeitoso para com a Terra, com mais cuidado para com a vida, valorizando a razão cordial e a inteligência emocional e criando espaço para a espiritualidade, fonte de contemplação, gratuidade e veneração. O embrião da geo-sociedade pôde ser celebrado no Forum Social de Porto Alegre e alhures. Só agora pode começar, verdadeiramente, o novo milênio, a geosociedade mundial, tornando real o verso utópico de Fernando Pessoa: “quero poder imaginar a vida como ela nunca foi”. Leonardo Boff, teólogo e filósofo, autor de Saber cuidar, ethos do humano, compaixão pela Terra.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105813
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