Comer não é direito de todos
31/01/2003
- Opinión
Há dois valores que o socialismo, apesar de suas contradições,tinha
vivos: o internacionalismo e o sentido da solidariedade mundial a
partir dos oprimidos. Essa herança desapareceu quase totalmente após a
implosão do ensaio socialaista. O que veio após foi uma revolução,
vale dizer, uma involução: o triunfo de uma cualtura materialista,
competitiva e mercantilista. Mercantiliza-se tudo: água, saúde,
educação, arte, sexo e religião. Setores desta, então, entraram
pesadamente no mercado, disputando entre si quem mais atrái gente, se
as sessões de exorcismo e cura, se a hilária aeróbica de Deus.
Se tudo é negócio, então, tudo vira oportunidade de ganho. A coisa é
simples:os ricos são ricos porque aproveitaram as oportunidades e os
pobre são pobres porque se mostraram incapazes de aproveitar delas. A
função do Estado se concentra em criar oportunidades para todos e de
manter o acesso ao mercado livre e competitivo. A partir daí, cada qual
lute e construa seu caminho.
Onde reside a falácia desta visão? Na admissão de que não existem mais
direitos humanos universais e incondicionais, pouco importa o dinheiro
que tenho no bolso. O que existe, dizem, não são direitos mais
necessidades vitais. E cada um por si mesmo deve buscar antedê-las. Não
existe mais o direito para todos de comer, vale dizer, de viver, nem o
direito ao acesso à água potável e ao ar respirável. Tudo é acessível,
contando que se pague.
Comida, água e ar não são mais bens comuns mundiais, cuja gestão cabe
responsabilidade pública coletiva. Agora são bens econômicos, cuja
gestão, para ser mais eficaz, dizem, caberá ao setor privado. Em
1974,os G 7, ao projetarem a Nova Ordem Econômica Mundial, propunham
como resposta à crise do petróleo, erradicar até o ano 2000, totalmente
a pobreza e garantir o acesso à água potável a todos. Em 2002, ao
constatarem que a situação mundial se agravou, os mesmos decidiram em
Joanesburgo em apenas diminui-la pela metade ate o ano 2015. Em outras
palavras, o direito de comer, de beber e de respirar, em fim, de viver,
não está garantido para todos.
Reconhece-se assim que a desigualdade entre ricos e pobres é
insuperável. Como o repete nosso humanista maior o ministro Cristovam
Buarque:²podemos ser não só desiguais mas dissemelhantes, pois não nos
sentimos mais do mesmo gênero humano; só erradicamos a pobreza se nos
sentirmos semelhantes, caso contrário, bifurcamos a humanidade². O
combate à fome humana que inclui a fome de beleza (cidadania) é
critério inconfundível de vigência ou não de humanidadae e de com-
paixão entre os humanos.
Agora temos condições de apreciar o caráter revolucionário e anti-
sistêmico do projeto Fome Zero do governo Lula. Ele crê que outro mundo
e outro Brasil são possíveis, desde que tenhamos com-paixão e amor
incondicional ao outro. Foi o sentido ético-poilítico de sua fala em
Davos. É admirável que não sejamos dirigidos por um mercador que nas
coisas só vê mercadoria e nas pessoas, recursos humanos. Mas por um
político que tem coração, que não se envergonha de chorar e que entende
o poder como oportunidade, a verdadeira oportunidade, de fazer a
revolução da ternura: garantir que todos possam comer ao menos três
vezes ao dia.
* Leonardo Boff, Teólogo
https://www.alainet.org/pt/articulo/106872
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