II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
24/03/2004
- Opinión
A II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional já pode ser considerada um marco na
mobilização contra a fome e por justiça social. O
encontro, que reuniu 1300 pessoas, foi realizado de 17 a
20 de março no Centro de Convenções de Pernambuco, em
Olinda e foi organizado pelo Conselho Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) com apoio do
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
O CONSEA é um instrumento de articulação entre o governo e
a sociedade na formulação de políticas públicas e ações na
área de alimentação e nutrição. Órgão vinculado à
presidência da República tem caráter consultivo. A II
Conferência Nacional é a etapa final de um processo de
criação dos conselhos e realizações de encontros nas
diversas regiões. As resoluções aprovadas serão propostas
ao presidente como novas diretrizes para o Plano Nacional
de Segurança Alimentar e Nutricional para os anos de 2004
a 2007.
A CONJUNTURA POLÍTICA
Dez anos após a primeira conferência, realizada no calor
do impeachment de Collor e da primeira grande mobilização
nacional pelo combate à fome, os problemas estruturais e
contradições referentes ao tema permanecem, senão as
mesmas, muito parecidas. O grande motivo disso foi o total
descaso e abandono com que os governos de Fernando
Henrique Cardoso trataram o assunto.
A vitória do Partido dos Trabalhadores nas eleições de
2002 colocou novamente a questão da soberania alimentar no
centro do debate nacional. O compromisso do governo de
erradicar a fome no Brasil durante seus quatro anos
através do Programa Fome Zero trouxe grande expectativa à
sociedade. Segundo o Bispo de Duque de Caxias, Dom Mauro
Morelli, um dos mais antigos lutadores na defesa da
segurança alimentar no Brasil, "hoje Lula nos desafia para
nos libertarmos da fome e da miséria e nós como povo temos
que desafiá-lo a todo tempo".
OS DEBATES
O evento teve como palestrante em sua abertura o
presidente Luis Inácio Lula da Silva. Em mais um de seus
longos discursos improvisados, Lula arrancou aplausos da
platéia ao reafirmar seu compromisso com a segurança
alimentar do país. Na manhã seguinte foi a vez do Ministro
do Desenvolvimento Social.
Em seu discurso, Patrus Ananias rebateu críticas de
praticar uma política assistencialista. "De barriga vazia
ninguém consegue ser cidadão. Antes de ensinarmos um
indivíduo a pescar, ele tem que estar de pé", enfatizou. A
intenção do governo é dobrar o número de famílias
atendidas pelos projetos sociais unificados, passando das
atuais 3,6 milhões para 6,5 milhões até o final de 2004.
O discurso do ministro abriu uma série de palestras com
alguns dos mais importantes especialistas e militantes dos
movimentos de defesa da soberania alimentar. Plínio de
Arruda Sampaio, José Graziano da Silva e Dom Mauro Morelli
foram alguns dos nomes para as conferências que tocaram os
seguintes eixos: Direito à alimentação, soberania
alimentar e contexto internacional; Princípios moderadores
de uma política de soberania alimentar e nutricional; e
Programas de soberania alimentar e nutricional no Brasil.
Uma das questões mais presentes nos discursos foi a
reafirmação de que a segurança alimentar não se restringe
a dar alimentos a população carente. "Só entendendo a
importância de políticas universais ligadas à seguridade
social conseguiremos estruturar uma segurança alimentar
permanente. A reforma agrária, o apoio à agricultura
familiar, ações de distribuição de renda, são
fundamentais" discursou o economista do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) Guilherme Delgado.
UMA AVALIAÇÃO CRÍTICA
O Fome Zero, dada sua importância na agenda da segurança
alimentar, foi um dos principais assuntos da Conferência.
Em sua palestra, o ex-ministro José Graziano reafirmou que
o programa não tem como único objetivo erradicar a fome e
persegue uma política de segurança alimentar. Segundo
Graziano, "o Fome Zero criou tantas expectativas, que isso
tem ofuscado seus muitos avanços para a sociedade".
Participantes do encontro, porém, ressaltaram que o
projeto que está sendo aplicado na prática é diferente do
formulado inicialmente pelo Instituto da Cidadania para o
programa de governo de Lula. "O Fome Zero não pode se
restringir a políticas assistenciais e deve estruturar
direitos perenes no campo da seguridade alimentar"
discursou o economista do IPEA Guilherme Delgado. Dom
Mauro Morelli também deixou sua crítica indireta, "o povo
brasileiro não quer esmola, quer dignidade".
Nesse sentido, a atual política econômica do governo foi
um ponto polêmico. Há preocupações quanto à capacidade de
se construir uma política de segurança alimentar e
nutricional com tantas restrições orçamentárias e recessão
econômica. Para o professor da UFRRJ e membro da comissão
organizadora do evento Francisco Menezes, "nesses marcos
fica muito difícil. É preciso um processo que garanta
emprego e renda, e para isso, é preciso redefinição na
política econômica".
Os membros da FAO, órgão para a fome e agricultura da ONU,
em entrevista coletiva durante o evento elogiaram o
trabalho do governo. "A FAO vem dando apoio técnico e
político, a pedido do governo, na implantação do Fome
Zero" disse o representante no Brasil José Tubino. "É
parte do programa global contra a fome da ONU", concluiu.
Questionado sobre a erradicação da fome nesses quatro anos
de governo Lula com as atuais restrições econômicas,
Tubino respondeu que há avanços dentro de tantas
limitações. "Se vai se atingir a fome zero, ainda é
difícil de diagnosticar", disse.
O MAPA DA FOME
Apesar de ser um dos maiores produtores de alimento do
mundo, o Brasil continua sendo um país onde milhões de
pessoas ainda convivem diariamente com a fome. Essa
contradição esteve presente nos debates de toda a
conferência. Segundo o professor Francisco Menezes,
"vivemos um paradoxo. Somos um país exportador de
alimentos que ainda tem um número enorme de famintos. A
fome no Brasil se dá pela falta de poder aquisitivo e
distribuição de renda de um modelo excludente".
A reforma agrária foi outro tema presente. Um dos
consensos foi que não é possível garantir segurança
alimentar e nutricional com a atual estrutura fundiária do
Brasil. O representante do governo chinês Gao Hong Bin foi
bastante aplaudido em seu discurso. "Uma diferença
importante entre o Brasil e a China é que nós não temos
camponeses sem terra. Nossa reforma agrária foi feita há
cinqüenta anos", disse. Em sua palestra, Gao Hong Bin
discutiu sobre os programas sociais que em 25 anos tirou
250 milhões de pessoas da miséria em seu país.
Um dos aspectos mais ressaltados para uma política de
segurança alimentar e nutricional foi a intersetorialidade
e transversalidade das iniciativas. Nesse sentido
estiveram presentes vários ministérios, entre eles
desenvolvimento social, saúde e educação. A representante
do MEC Albaneide Peixinho explicitou as principais medidas
de sua pasta, "nossa política de alimentação escolar tem
evitado a evasão e melhorado a aprendizagem e o rendimento
escolar".
A representando o Ministério da Saúde, Marília Mendonça
Leão falou do SISVAN, o programa de vigilância alimentar e
nutricional. "O acompanhamento nutricional das crianças, o
treinamento de técnicos nos municípios e a melhoria do
padrão alimentar são algumas das ações. É preciso evitar
que os desnutridos de hoje, sejam os obesos de amanhã",
disse Mendonça. A conferencista também ressaltou a
importância de as políticas de segurança alimentar e
nutricional respeitarem os hábitos alimentares de cada
região.
AS RESOLUÇÕES
O terceiro dia do encontro foi marcado pela realização dos
grupos temáticos que iriam formular as propostas a serem
votadas pelos delegados na plenária final. Entre os 16
temas dos grupos estavam o direito humano à alimentação,
acesso e uso dos recursos naturais e da água, cultura
alimentar, programas de complementação de renda e
transgênicos.
Uma das maiores polêmicas foram os alimentos geneticamente
modificados. A posição de liberalização e consumo dos
transgênicos pelo governo Lula foi duramente criticada
durante a conferência. Segundo o coordenador do Movimento
Por um Brasil Livre de Transgênicos, Jean Marc Von der
Waid, "A liberalização é extremamente grave e traz
prejuízos para os consumidores, para a agricultura, o meio
ambiente e para a soberania nacional". Ao final do
encontro foi aprovado por ampla maioria o posicionamento
contrário à produção e comercialização de transgênicos no
Brasil.
No último dia foi realizada a plenária final. Nela foram
aprovadas 48 resoluções que serão encaminhadas ao
presidente Lula e servirão de plataforma para a atuação do
CONSEA e para a formulação de um Plano Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional. A II Conferência
Nacional também aprovou uma carta de princípios. Segundo
Francisco Menezes, membro da organização do evento, "a
Carta de Olinda é o documento político para dialogar com a
sociedade o direito fundamental da alimentação e da
nutrição".
Finalizada a II Conferência Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional, os documentos ali aprovados
mostram que virá mais pressão ao governo federal por parte
da sociedade para que cumpra seus compromissos históricos.
O encontro, que teve como homenageados o médico Josué de
Castro e o sociólogo Hebert de Souza, é mais um marco na
organização do povo brasileiro na luta por segurança
alimentar e justiça social.
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