O patinho bonito
05/05/2005
- Opinión
Hans Christian Andersen é um caso raro de escritor que ao escrever para
crianças com mais gosto e amor é lido por adultos.
A gente escreve um parágrafo como o que se vê acima e fica paralisado. Há
quatro horas que não saio disto: Hans Christian Andersen é um caso raro de
escritor que ao escrever para crianças com mais gosto e amor é lido por
adultos. E não seguimos adiante.
Julgávamos, desde a madrugada, que esta frase ia ser um detonador fácil, de
um tema tão fácil que poderíamos começar a escrever quando quiséssemos. O
resto é fácil, dizíamo-nos, pensávamos, como um engenheiro de obra feita,
antes de ser construída. Desde a madrugada, enquanto pensávamos escrever
sobre Andersen, que esta frase nos veio. O resto é um passeio, dizíamo-nos,
e corremos a anotá-la. Quatro horas perdidas depois, dizemo-nos: melhor
seria que não a tivéssemos escrito. Melhor seria cortá-la, tão simples, não
é? Uma frase que não gera, que não fecunda, pode e deve ser cortada como um
órgão ruim que se joga fora, refletimos. O diabo é que a realidade do mundo
da escrita é outra, distinta e distante do mundo orgânico, quatro horas e
meia depois anotamos. O caso, a dificuldade é outra, não é bem de frase
ruim, que se vence com um corte radical, um jogar fora.
A dificuldade real, cinco horas depois escrevemos, é dar continuidade à
primeira frase por caminhos discursivos, de ensaio, de demonstração por
bons argumentos do que se diz, como se o “Hans Christian Andersen é um caso
raro de escritor que ao escrever para crianças com mais gosto e amor é lido
por adultos” tivesse que ser continuado por parágrafos onde: primeiro se
chamasse a atenção para a cautela em não se dizer “literatura infantil”,
para evitar a ambigüidade, como uma defesa contra a broma, que chama
infantil ao que deseja insultar; depois, fazer a ressalva de que outros
autores para crianças também geram um prazer em leitores adultos; por
último, mostrar a especificidade, o lugar original de Andersen, entre esses
autores. Em resumo, uma continuidade que se tornaria muito aborrecida,
pesada, um texto sobre Andersen que seria um antiAndersen.
Seis horas depois escrevemos: falemos do Andersen que amamos, do Andersen
que nos toca.
Falemos então do maravilhoso conto “A pequena vendedora de fósforos”. Como
os nossos quilômetros rodados de leitura não são muitos, não podemos dizer
que este é um dos melhores contos que já se escreveram. Mas este é com
certeza o melhor conto que já lemos em nossa vida. A minha, mais
precisamente, de cinqüenta e cinco anos. Aquela trajetória da pequena
menina que sai a vender fósforos em uma véspera de Ano Bom, nas ruas
geladas de uma cidade, que vislumbra deslumbrada, pelo vidro embaciado das
janelas, a ceia posta nas casas burguesas, e com profunda fome fica
encantada e nos encanta, seria uma coisa que nas mãos de um falso artista
daria uma cena piegas, digna de se ir às lágrimas, de raiva. Mas não nas de
Hans Christian Andersen. A fome e o lar, doce lar, vemos, nas suas linhas.
Ah os perus rosados, pingues, da noite de Ano, ah as tortas fresquinhas,
deliciosas, da calma e pacífica e confortável vida burguesa dos lares que
se fecham egoístas à dor em volta, toda essa felicidade, esse calor da
lareira que vemos pelos olhinhos da menina, nos chegam como uma repulsa,
como um cancro, como um fel, de lares (filhos da puta, dizemo-los), de
lares doces lares que rejeitamos com todas nossas forças.
Então Andersen vai mais longe, e nos fere mais dentro do coração. Se o
artista é o criador de imagens que são o próprio domínio do divino,
Andersen é um destes. Ele faz então a menina virar uma estrela – que coisa
sublime!, uma estrela no céu escuro, em que se torna, ao cair e delirar de
fome. Enregelada, a pequena vendedora sobe, “em um halo de luz e de
alegria, mais alto, e mais alto, e mais longe... longe da Terra, para um
lugar, lá em cima, onde não há mais frio, nem fome, nem sede, nem dor, nem
medo”. Este é um conto que por várias vezes tentei ler em voz alta, em
aulas de português para adolescentes pobres, e por mais de uma vez não
consegui. A voz não me saía, embargava, quando chegava a este ponto da
menininha que vira uma estrela. Eu não conseguia vencer o conflito entre
chorar e lhes gritar: “Se não mudarmos este mundo, nada mais tem sentido.
Vamos ser assaltantes, vamos roubar e matar”. Mas, covarde, para não me
mostrar o fraco que sou, e para não ser incurso no Código Penal, apenas
dizia-lhes:
- Mudemos de página.
E me virava para o quadro. Mas a menina havia virado uma estrela, eu sabia,
e por isso o branco da lousa estava embaciado. Ainda que não fosse de vidro
como as janelas por onde olhava a vendedora de fósforos.
Este é o Andersen do qual não conseguimos falar sem paixão. O criador de
imagens extraordinárias, delicado até a sutileza, até o perfume da rara
poesia. Uma crônica bem escrita sobre ele iria do Soldadinho de Chumbo ao
Patinho Feio. Da Pequena Sereia à Roupa Nova do Imperador. Uma crônica bem
escrita sobre ele teria que dizer, como um pastiche de Andersen, em boa e
fluente linguagem narrativa, que Andersen é o outro nome com que chamamos:
Um homem de revolta mais que moderna, porque eterna. Um criador de
humanidade, porque da humanidade. O filho mais ilustre da Dinamarca, porque
um dos irmãos mais ilustres de todos os povos. O homem a quem a sociedade
hipócrita, de todos as sociedades, de todos os países, teima em deixar na
segura estante dos autores infantis. Mas que à maneira de sorrir, de falar
da fantasia, dos animais, dos seres inanimados, dos lugares distantes, como
quem nada quer, nos fere e nos morde. Como raros autores adultos. Não tanto
por ser um homem ou um autor agressivo. Mas porque nos fere e nos morde
pela verdade.
Se usássemos do mesmo tom que se usa em discursos ao pé do túmulo ou de
banquetes, diríamos: Hans Christian Andersen, como se fosse insuficiente a
tua humanidade, de amor universal pelos rejeitados, de dar voz e afeto a
qualquer objeto físico, tu nos deixas a luz, como se nada nos deixasses, de
que existe verdade e dor no mundo da fantasia. E de passagem, no teu halo
de homem de face triste, como se fosse um brilho inocente, a lição de que a
criança não é um homem idiota. Ela é um homem em permanente descoberta,
pareces-nos dizer. Ela é um ser que escuta o preconceito, antes de ela
própria ser atingida pelo preconceito, tu nos contas, em palavras de
narração viva. Não fosses o escritor que és, com muita felicidade serias um
instrutor de meninos de todas as idades, deveríamos dizer.
E com tais expressões grandiloqüentes apenas queríamos dizer: Andersen,
muito te amamos. E acrescentamos agora e ao fim, por pura e simples
loquacidade: Enquanto houver pequenas vendedoras de fósforos que viram
estrelas no céu escuro; Enquanto houver soldadinhos de chumbo que amam
dançarinas de papelão; Enquanto houver figurinhas de porcelana que se
apaixonam e vivem até o dia em que se desfazem em cacos; Enquanto houver
bonequinhos que ardem abraçados no fogo da lareira, tu és, Andersen, o
patinho bonito mais bonito, porque és o patinho feio mais bonito que um dia
conhecemos.
https://www.alainet.org/pt/articulo/111926?language=en
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