Um dia que deveria ser todo dia
30/01/2006
- Opinión
O mês de janeiro encerra com o Dia da Não-Violência, comemorado hoje. Há uma razão histórica e espiritual para a escolha dessa data. Em 1948, no dia 30, Mahatma Gandhi, líder indiano fundador do movimento de não-violência, foi brutalmente assassinado aos 78 anos. Quando se dispunha a orar juntamente com 500 pessoas, recebeu vários tiros disparados por Nathuran Vinayak Godse, um hindu fanático que nunca aceitou os sentimentos fraternos de Gandhi para com os muçulmanos. Suas últimas palavras foram: He Rama! (Oh, meu Deus!). No século XX, a figura de Gandhi tornou-se paradigmática como líder e apóstolo da não-violência. Ao celebrarmos o dia em que se comemora o movimento ao qual ele deu nome, vale uma reflexão para entender melhor o sentido de sua pregação. Ao contrário do que muitos pensam e do que poderia parecer à primeira vista, não se trata de uma passividade inerte e entregue, que não esboça nenhuma reação ou iniciativa. É, na realidade, um movimento de pura atividade, que congrega e impulsiona todas as pulsões mais energéticas e ativas do ser humano em vista de um objetivo concreto e luminoso. Dito pelas próprias palavras textuais de Gandhi: «O que quer que façam conosco, não iremos atacar ninguém nem matar ninguém; estou pedindo que vocês lutem, que lutem contra o ódio deles (do governo inglês), não para provocá-los. Nós não vamos desferir socos, mas tolerá-los, e através do nosso sofrimento faremos com que vejam suas próprias injustiças e isso irá feri-los, como todas as lutas ferem, mas não podemos perder, não podemos... Eles poderão torturar meu corpo, quebrar meus ossos, até me matar, então terão meu corpo inerte, mas não a minha obediência». O não-violento está longe, portanto, de ser um alienado passivo. É um rebelde movido pela paixão da verdade e do amor. Rebelde contra tudo que ameaça a vida humana, os direitos dos outros, os valores que constroem o mundo. A não-violência ensina que tudo é relativo, menos Deus, único, Absoluto, que sustenta o mundo e a história. E demonstra que há que obedecer a Deus antes que aos homens, não cedendo mesmo ao preço da própria vida com aquilo em que se crê. Vinte séculos antes de Gandhi ter nascido, outro homem se manifestou na Galiléia, ensinando uma doutrina bastante parecida. «Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: Olho por olho e dente por dente. Eu, porém, digo-vos que não resistais ao mal; mas se alguém te ferir na tua face direita, oferece-lhe também a outra». Tal como Gandhi e antes dele, Jesus de Nazaré não se afastou um centímetro daquilo que sentia ser a vontade de Deus para sua vida e sua missão. Foi de encontro ao conflito que acabaria por matá-lo pacificamente, enfrentando os que desejavam que não enchesse os ouvidos do povo com sua doutrina. Após a morte de Jesus, quando seu corpo inerte foi descido da Cruz e sepultado, seus discípulos ganharam as ruas pregando sua ressurreição. Pedro, antes acovardado e cheio de medo, abriu a boca em praça pública, para declarar em alta e clara voz: "este Jesus que vocês mataram, Deus o constituiu Senhor e Cristo". À semelhança do mestre Jesus, seus discípulos foram perseguidos persistente e cruelmente. Porém, a atitude não-violenta e pertinaz questionava mesmo aqueles envolvidos em sua perseguição. Assim é que o sábio mestre judeu Gamaliel, membro do Sinédrio, advertiu a certa altura os companheiros que acreditavam dever eliminar a doutrina de Galileu e seus seguidores: "Agora vos digo: Dai de mão a estes homens, e deixai-os, porque este conselho ou esta obra, caso seja dos homens, se desfará; mas, se é de Deus, não podereis derrotá-los; para que não sejais, porventura, achados até combatendo contra Deus." Cumpria-se assim, muito antes de Gandhi, o que este explicitaria séculos depois: a atitude não-violenta faz nascer a paz e o amor nos corações humanos. A resistência pacífica e serena que não se desvia da verdade é a única força capaz de dobrar as resistências e as violências humanas. Assim foi com Jesus de Nazaré, com os milhares de mártires que o seguiram, e com muitas outras grandes figuras da história da humanidade, inclusive Mahatma Gandhi. Assim poderá ser se alguns de nós, que acreditamos e desejamos a paz, pusermos em prática, em alguma medida, os princípios da não-violência. O que se comemora então em um dia, será uma realidade de todo dia. - Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
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