Podemos transformar o curso da história
- Opinión
Assembléia Geral das Nações Unidas
Panel Sobre a Crise Financeira
Nova Yorque, 30 de Outubro 2008
François Houtart
Senhoras e Senhores Delegados
Queridos amigos
O mundo tem necessidade de alternativas e não somente regulações. Não é suficiente de renovar um sistema, trata-se de transformá-lo. É um dever moral e para compreendê-lo, adoptar o ponto de vista das vítimas permite ao mesmo tempo fazer uma constatação e exprimir uma convicção; a constatação que o conjunto das crises, financeiras, alimentares, energéticas, hídricas, climáticas, sociais, assinala uma causa comum, e a convicção que podemos transformar o curso da história.
A constatação
Quando 850 milhões de seres humanos vivem abaixo da linha de pobreza e que seu número aumenta, quando a cada vinte quatro horas, dezenas de milhares de pessoas morrem de fome, quando dia após dia desaparecem etnias, modos de vida, culturas, pondo em perigo o patrimônio da humanidade, quando o clima deteriora-se e quando se pergunta se vale ainda a pena de viver [ao modo de] um Novo Orléans, ou Sahel, nas Ilhas do Pacífico, na Ásia central onde se é cercado pelos oceanos, nós não podemos nos satisfazer apenas em falar de crise financeira.
Já as conseqüências sociais desta última [crise financeira] são sentidas bem além das fronteiras da sua própria origem: desemprego, chèreté a vida, exclusão dos mais pobres, de vulnerabilização das classes médias e alongamento no tempo da lista das vítimas. Sejamos claros, não se trata somente de um acidente de percursos ou de abusos cometidos por alguns atores econômicos que será necessário sancionar. Confrontamo-nos com uma lógica que percorre toda a história econômica dos dois últimos séculos. [Lógica] de crises em regulações, de desregulações em crises, o desenrolar dos fatos responde sempre à pressão das taxas de lucro: em aumento ele desregula, em baixa controla-se, mas sempre em prol da acumulação do capital, ela mesma definida como o motor do crescimento. Aquilo que se vive hoje em dia não é, por conseguinte, algo novo. Não é a primeira crise do sistema financeiro e alguns dizem que não será a última.
Entretanto, a bolha financeira criada durante as últimas décadas, graças, entre outras coisas, ao desenvolvimento das novas tecnologias da informação e das comunicações, tem subdimensionado todos os dados do problema. A economia tornou-se cada vez mais virtual e as diferenças de rendimentos explodiram. Para acelerar as taxas de lucros, uma arquitetura complexa de produtos derivados foi instaurada e a especulação instalou-se como um modo operacional do sistema econômico. Contudo, aquilo que é novo, é a convergência lógica entre as desregulamentações que conhece, hoje em dia, a situação mundial.
A crise alimentar é um exemplo. O aumento dos preços não foi primeiro o fruto de uma maior ou menor produção, mas o resultado combinado da diminuição das existências, manobras especulativas e a ampliação da produção de agro-combustíveis. A vida dos pessoas humanas, por conseguinte, foi sujeitada à tomada de benefícios. Os números da bolsa de Chicago são a ilustração.
A crise energética, no que diz respeito a ela, vai bem para além da explosão conjuntural dos preços do petróleo. Ela marca o fim do ciclo da energia fóssil barata (petróleo e de gases), cuja manutenção a um preço inferior provocou uma utilização inconsiderada da energia, favorável a um modo de crescimento acelerado, que permitiu uma rápida acumulação do capital à curto e médio prazo. A super-exploração dos recursos naturais e a liberalização das trocas, sobretudo desde os anos 70, multiplicou o transporte das mercadorias e incentivou os meios de deslocação individuais, sem levar em consideração as conseqüências climáticas e sociais. A utilização de derivados do petróleo como fertilizantes e pesticidas generalizou-se numa agricultura produtivista. O modo de vida das classes sociais superiores e médias construiu-se sobre o desperdício energético. Neste domínio, também, o valor de troca tomou o lugar sobre o valor de uso.
Hoje, esta crise que corre o risco de prejudicar gravemente a acumulação do capital, coloca em descoberto a urgência de encontrar soluções. Elas devem contudo, em tal perspectiva, respeitar a lógica básica: manter o nível das taxas de lucro, sem levar em conta externalidades, ou seja, aquilo que não entra no cálculo contabilístico do capital e cujo custo deve ser suportado pelas colectividades ou pelos indivíduos. É o caso dos agrocombustíveis e as suas conseqüências ecológicas: destruição, pela monocultura, da biodiversidade, dos solos e as águas subterrâneas; e sociais: expulsão de milhões de pequenos camponeses que vão povoar as favelas e agravar a pressão migratória.
A crise climática, a respeito da qual a opinião pública mundial ainda não tem tomado consciência de toda sua gravidade, é, de acordo com os peritos do GIEC (Grupo Internacional dos Peritos do Clima, pela sigla em francês) o resultado da atividade humana. Nicolas Stern, antigo colaborador do Banco Mundial, não hesita em dizer que “as mudanças climáticas são mais maior malogro da história da economia de mercado.” Com efeito, aqui como previamente, a lógica do capital não conhece “externalidades”, excepto quando começam a reduzir as taxas de lucro.
A era neoliberal que fez crescer as taxas de lucro, coincide igualmente com uma aceleração das emissões de gases de efeito de estufa e do aquecimento climático. O aumento na utilização de matérias primas e dos transportes, ao igual que a desregulação das medidas de proteção da natureza, aumentou as devastações climáticas e diminuiu as capacidades de regeneração da natureza.
Se não se fizer nada num futuro próximo, de 20% à 30% de todas as espécies vivas poderão desaparecer daqui há um quarto de século. O nível e a acidez dos mares aumentará perigosamente e poderia-se contar entre 150 e 200 milhões de refugiados climáticos a partir da metade do 21° século.
É neste contexto que situa-se a crise social. Desenvolver espetacularmente 20% da população mundial, capaz de consumir bens e serviços de elevado valor agregado, é mais interessante para a acumulação privada à curto e médio prazo, do que responder às necessidades básicas de quem têm apenas um poder de compra reduzido ou nulo. Com efeito, incapazes de produzir o valor agregado e que não tendo senão uma escassa capacidade de consumo, eles não são mais do que uma multidão inútil, no máximo susceptível de ser objeto de políticas assistenciais. O fenômeno acentuou-se com a predominância do capital financeiro. Uma vez mais a lógica da acumulação prevaleceu sobre as necessidades dos seres humanos.
Todo este conjunto de anomalias conduzem a uma verdadeira crise de civilização caracterizada pelo risco de um esgotamento do planeta e uma extinção da vida, o que significa uma verdadeira crise de sentidos. Então, regulações? Sim, se constituem as etapas de uma transformação radical e permitem uma saída de crise que não seja a guerra, não, se fazem apenas prolongar uma lógica destrutiva da vida. Uma humanidade que renuncia à razão e abandona a ética, perde o direito à existência.
Uma convicção
Certamente, a linguagem apocalíptica não é portadora de ação. Em contrapartida, uma constatação da realidade pode levar a reagir. A investigação e a colocação em prática de alternativas são possíveis, mas não sem condições. Elas supõem, primeiro, uma visão a longo prazo, utopia necessária; seguidamente medidas concretas escalonadas no tempo e, por último, atores sociais portadores dos projetos, num combate cuja dureza será proporcional à recusa da mudança.
A visão a longo prazo pode articular-se em redor de alguns eixos essenciais. Em primeiro lugar, um uso renovável e racional dos recursos naturais, o que supõe outra filosofia com relação à natureza: não mais a exploração ilimitada de uma matéria, neste caso objeto de lucro, mas o respeito daquilo que constitui a fonte da vida. As sociedades do socialismo dito real, apenas inovaram neste sentido.
Seguidamente, privilegiar o valor de uso sobre o valor de troca, o que significa outra definição da economia: não mais a produção de um valor agregado, fonte de acumulação privada, mas a atividade que assegura as bases da vida, material, cultural e espiritual dos seres humanos através do mundo. As conseqüências lógicas são consideráveis. A partir deste momento, o mercado serve de regulador entre a oferta e a procura em vez aumentar a taxa de lucro de uma minoria. O desperdício das matérias primas e da energia, a destruição da biodiversidade e a atmosfera, é combatido, levando em consideração as “externalidades” ecológicas e sociais. As prioridades na produção de bens e serviços mudam de lógica.
Um terceiro eixo é constituído por uma generalização da democracia, não somente aplicada ao sector político, por uma democracia participativa, mas também no sistema econômico, em todas as instituições e entre os homens e as mulheres. Uma concepção participativa do Estado decorre necessariamente, al igual que uma reivindicação dos direitos humanos em todas as dimensões, individuais e colectivas. A subjetividade reencontra um lugar.
Por último, o princípio do multiculturalidade vem completar os outros três eixos. Trata-se de permitir a todos os saberes, mesmo os tradicionais, participar na construção das alternativas, a todas as filosofias e culturas, quebrando o monopólio da ocidentalização, a todas as forças morais e espirituais capazes de promover a ética necessária. Entre as religiões, a sabedoria do hinduísmo na relação com a natureza, a compaixão do budismo nas relações humanas, a sede de justiça na corrente profética do Islão, as forças emancipatórias de uma teologia da liberação no cristianismo, o respeito das fontes da vida no conceito da terra-mãe dos povos autóctones da América Latina, o sentido da solidariedade expresso nas religiões da África, são contributos potenciais importantes, no âmbito evidentemente de uma tolerância mútua garantia pela imparcialidade da sociedade política.
Tudo isso são utopias! Mas o mundo tem necessidade utopias, na condição de elas se traduzam numa prática. Cada um dos princípios evocados é suscetível de aplicações concretas, que já têm sido objecto de propostas por parte numerosos de movimentos sociais e organizações políticas. A nova relação com a natureza significa, entre outras coisas, a recuperação pelos Estados da soberania sobre os recursos naturais e a sua não apropriação privada; a detenção das monoculturas e da diminuição em valor da agricultura campesina, a ratificação, o aprofundamento das medidas de Quioto e de Bali sobre o clima.
Privilegiar o valor de uso provoca a não mercantilizzação dos elementos indispensáveis à vida: as sementes, a água, a saúde, a educação; o restabelecimento dos serviços públicos; a abolição dos paraísos fiscais; a supressão do sigilo bancário; a anulação das dívidas odiosas dos Estados do Sul; o estabelecimento de alianças regionais, sobre base não de competitividade, mas de complementaridade e de solidariedade; a criação de moedas regionais, o estabelecimento de multipolaridades e bem como outras medidas também.. A crise financeira constitui a ocasião única de pôr estas medidas
Democratizar
Mas quem será portador deste projecto? É verdade que a engenharia do capitalismo é transformar as suas próprias contradições
Ofereçam então na Organização das Nações Unidas um espaço de modo que possam exprimir-se e apresentar as suas alternativas. Será a vossa contribuição para a inversão do curso da história, indispensável de modo que o ser humano reencontre um espaço de vida e possa assim reconstruir a esperança.
- François Houtart: Professor emérito da Universidade Católica de Louvain (Bélgica); Fundador do Centro Tricontinental
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