No cerne do ciclone: a crise da dívida na União Europeia (4/7)

O “Plano Brady” europeu – austeridade permanente (IV)

04/10/2011
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Em julho-agosto de 2011, as bolsas foram novamente abaladas a nível internacional. A crise aprofundou-se na União Europeia, em particular em matéria de dívidas. O CADTM entrevistou Eric Toussaint a fim de descodificar os diferentes aspectos desta nova fase da crise [1]
 
CADTM: Na sequência da cimeira europeia de 21 de julho de 2011, foi anunciado que a dívida da Grécia iria ser reduzida recorrendo à contribuição dos banqueiros. Estaremos a ir para o bom caminho?
 
Eric Toussaint: Não, nem pouco mais ou menos. Essas decisões não oferecem solução favorável aos países em dificuldade. As decisões de 21 de julho, se alguma vez vierem a ser aprovadas pelos parlamentos dos países envolvidos no setembro-outubro de 2011, limitam-se a folgar um bocadinho o garrote que estrangula esses países e principalmente as suas populações.
 
De resto, no caso da Grécia (seguir-se-ão outros países), as autoridades europeias permitiram que os banqueiros, amplamente responsáveis pelo desastre, elaborassem um programa feito à medida para defender os seus interesses egoístas. Foi um cartel ad hoc dos principais bancos credores, que dá pelo nome pomposo de Instituto da Finança Internacional (IIF), que redigiu um rol de opções que oferecem quatro cenários possíveis[2][2].
 
Como afirma o Crédit Agricole, um dos principais bancos franceses (possui um banco na Grécia, o Emproriki[3][3], repleto de títulos gregos), o IIF inspirou-se largamente no Plano Brady aplicado durante os anos 1980-1990 para gerir a dívida de 18 países emergentes (ver mais adiante). Os chefes de Estado, a Comissão Europeia e os banqueiros anunciaram nos meios de comunicação social que isso permitiria reduzir em 21% da dívida, o que é redondamente falso. Na realidade e na melhor das hipóteses, a redução no caso da Grécia atingiria os 13 500 milhões de euros, ou seja 4% do stock actual que totaliza 350 000 milhões de euros (e que continuará a crescer nos próximos anos). A cifra de 21% corresponde à redução que os banqueiros aceitam aplicar ao valor dos títulos gregos que detêm. É uma operação que eles realizam nos seus livros de contas, convém realçar. De facto, nada disto diminui a factura que o Estado grego tem de pagar. Aliás, os banqueiros estão tão felizes pelo facto de as suas propostas terem sido aceites pelos chefes de Estado e pelo BCE, que vários deles anunciaram a partir do fim de julho e inícios de agosto de 2011 que averbavam na conta dos títulos gregos com prazo de vencimento em 2020 perdas iguais a 21%. Por exemplo, o BNP Paribas averbou 534 milhões de euros de perdas, o Dexia 377 milhões[4][4]. Ao procederem assim, estes bancos que têm uma posição de liderança no IIF querem pressionar os países da UE, a fim de fazer aprovar os acordos feitos com os chefes de Estado e o BCE. Além disso, ao constituírem estes montantes em provisão de perda, poderão deduzi-los dos ganhos, poupando nos impostos. Até à data, apenas existe um desmancha-prazeres no grupo dos banqueiros: o Royal Bank of Scotland (RBS) retirou-se do IIF e anunciou que aplicaria uma redução de 50% em vez de 21%, averbando uma perda de 733 milhões de libras esterlinas. Isto só prova que a perda de 21% é insuficiente. Por outro lado, segundo o Financial Times e o jornal financeiro belga L’Écho, o Conselho das Normas Internacionais de Contabilidade(International Accounting Standards Board, IASB) fez chegar uma carta à ESMA (Autoridade Europeia dos Valores Imobiliários e dos Mercados, European Securities and Markets Authority) – que regula os mercados financeiros europeus – na qual põe em causa os bancos europeus que aplicam uma redução de 21% aos seus títulos gregos quando o valor de mercado (market to market) é de menos de 50%.
 
CADTM: A propósito do acordo de 21 de julho de 2011 também foi dito, no que respeita à Grécia, Irlanda e Portugal, que a duração dos empréstimos da Troika ia ser alongada e que as taxas de juro seriam reduzidas. O que se pode dizer sobre isto?
 
Eric Toussaint: As autoridades europeias anunciaram de facto a intenção de reduzir em 2 ou 3 pontos as taxas de juro que exigem à Grécia, à Irlanda e a Portugal[5][5]. Ao proclamarem que desciam as taxas a cerca de 3,5%, para os créditos de 15 a 30 anos, reconheceram que as taxas que exigiam até agora eram proibitivas. Vêem-se forçados a fazer isso pelo desastre óbvio a que levaram estes países, mas também pelo facto de o risco de contágio a outros países ser muito elevado. As medidas anunciadas pelas autoridades europeias a 21 de julho de 2011 constituem uma confissão clara de “enriquecimento sem causa” pelo qual são responsáveis, bem como do carácter doloso da sua política.
 
CADTM: O que se entende por “enriquecimento sem causa”?
 
Eric Toussaint: O enriquecimento sem causa designa um enriquecimento abusivo, um ganho obtido por meios ilegítimos. Tal corresponde a um princípio geral do direito internacional enunciado no artigo 38° dos estatutos do Tribunal Internacional de Justiça[6][6]. Os Estados como a Alemanha, a França e a Áustria pedem emprestado a 2% nos mercados e emprestam à Grécia a 5% ou 5,5%, à Irlanda a 6%. Assim como o FMI empresta aos seus membros a baixas taxas de juro e empresta à Grécia, à Irlanda e a Portugal a taxas nitidamente superiores.
 
CADTM: O que se entende por “carácter doloso” da política da Troika?
 
Eric Toussaint: O dolo[7][7] é um conceito importante do direito internacional. Designa um comportamento condenável que consiste em provocar intencionalmente prejuízo a outrem. Se um Estado foi levado a contrair um empréstimo em virtude da conduta fraudulenta de outro Estado ou duma organização internacional que participou nas negociações, pode invocar o dolo como tendo viciado o seu consentimento no contrato. Ora, a Troika aproveita-se do desespero da Grécia, da Irlanda e de Portugal para impor medidas que ferem os direitos económicos e sociais desses países, que põem em causa convénios colectivos, que constituem uma violação da soberania do país e, em certos casos, da sua ordem constitucional. Temos provas, graças a certos órgãos de imprensa italianos, de que no início do mês de agosto de 2011, o BCE aproveitou os ataques especulativos contra a Itália para exigir das autoridades do país que praticassem as mesmas medidas anti-sociais que a Grécia, a Irlanda e Portugal. Foi feita a ameaça de que, se as autoridades italianas não alinhassem nessas medidas, o BCE não auxiliaria a Itália.
 
O que os membros da Troika fazem pode ser comparado à acção odiosa duma pessoa que, com o pretexto de socorrer uma pessoa em perigo, aproveita para agravar o drama sofrido por essa pessoa e ainda arrecadar lucros à custa desse drama. Além disso, poderíamos considerar que se trata dum delito planeado em grupo: o FMI, o BCE, a Comissão Europeia e os governos que os dominam. O facto de se associar para planificar e perpetuar um acto condenável agrava a responsabilidade dos agressores.
 
E não é tudo: as políticas económicas exigidas pela Troika não permitirão aos países em causa melhorar realmente a sua situação. Durante três decénios, este tipo de política nefasta foi aplicado, a mando das grandes empresas privadas, do FMI e dos governos dos países mais industrializados, nos países endividados do Sul assim como numa série de países do ex-bloco soviético. Os países que aplicaram esta política da maneira mais disciplinada passaram por períodos desastrosos. Os que recusaram os ditames dos organismos internacionais e a sua doutrina neoliberal saíram-se muito melhor. É preciso ter isto em mente, e afirmar alto e bom som que os resultados da política da Troika e dos especuladores já são sobejamente conhecidos. Hoje ou no futuro não têm nem terão o direito de afirmar que desconheciam o resultado que as suas políticas provocam. Já hoje os resultados na Grécia são claros e evidentes.
 
CADTM: Há um ano, o CADTM alertou contra uma operação de redução da dívida conduzida pelos credores, nesse caso a Troika, os banqueiros e outros especuladores financeiros. Confirmou-se?
 
Eric Toussaint: Completamente. A operação actual é inteiramente conduzida pelos credores e corresponde aos seus interesses. Como já disse, o plano actual é uma versão europeia do Plano Brady [8][8]. Recordemos o contexto em que este plano foi implementado nos anos 1980.
 
No início da crise que rebentou em 1982, o FMI e os governos dos EUA, da Grã-Bretanha e de outras potências vieram em auxílio dos banqueiros do Norte que tinham corrido riscos enormes ao emprestarem a torto e a direito aos países do Sul, principalmente da América Latina (um pouco à semelhança do que sucedeu no sector dos subprime e do que se passa com países como a Grécia, os países da Europa do Leste, a Irlanda, Portugal, Espanha). Quando os países em desenvolvimento, a começar pelo México, ficaram à beira da cessação de pagamento, o FMI e os países membros do Clube de Paris emprestaram-lhes capitais, na condição de que os países devedores continuassem a reembolsar a banca privada do Norte e aplicassem planos de austeridade (os famosos planos de ajustamento estrutural). Depois, tendo em conta que o endividamento do Sul prosseguia segundo o efeito de bola da neve, desencadearam o Plano Brady (nome do secretário de Estado do Tesouro norte-americano na altura); este plano implicava a reestruturação da dívida dos principais países endividados por meio duma troca de títulos. Os países participantes foram a Argentina, o Brasil, a Bulgária, a Costa Rica, a Costa do Marfim, a República Dominicana, o Equador, a Jordânia, o México, a Nigéria, o Panamá, o Peru, as Filipinas, a Polónia, a Rússia, o Uruguai, a Venezuela e o Vietname. Na altura, Nocolas Brady anunciou que o volume da dívida seria reduzido em 30% (na realidade, a redução, se é que houve, foi muito fraca; em vários casos, e não foram poucos, a dívida até aumentou, como veremos mais adiante); os novos títulos (os títulos Brady) garantiam uma taxa de juro fixa de cerca de 6%, o que era muito favorável aos banqueiros. O plano também assegurava o prosseguimento das políticas de austeridade sob o controlo do FMI e do Banco Mundial. Hoje em dia, noutras latitudes, a mesma lógica provoca os mesmos desastres.
 
Vale a pena ter em conta a apreciação feita a posteriori por dois economistas norte-americanos de renome: Kenneth Rogoff, ex-economista-chefe do FMI, e Carmen Reinhart, professor universitário e conselheiro do FMI e do Banco Mundial. Eis o que eles escreveram em 2009 a propósito do Plano Brady. Começam por afirmar: “Entre os grandes episódios de desendividamento, é de notar a ausência dos célebres acordos de reestruturação Brady concluídos nos anos 1990.”
 
De seguida, apoiaram o seu relatório negativo nos seguintes elementos:
 
“Com efeito, no caso da Argentina e do Peru, o rácio dívida/PNB era mais elevado três anos depois do acordo Brady que no ano precedente à reestruturação! Em 2000, sete dos dezassete países que tinham iniciado uma reestruturação de tipo Brady (Argentina, Brasil, Equador, Peru, Filipinas, Polónia e Uruguai) apresentavam um rácio dívida externa/PNB mais elevado que três anos depois da reestruturação; no final de 2000, o rácio era mais elevado que antes do acordo Brady para quatro deles (Argentina, Brasil, Equador e Peru). Em 2003, quatro beneficiários do Plano Brady (Argentina, Costa do Marfim, Equador e Uruguai) tinham falido ou reestruturado a dívida exterior. Em 2008, menos de 20 anos depois do plano, o Equador tinha falido duas vezes. Alguns dos outros membros do grupo Brady conseguiram sobreviver.” [9][9]
 
A versão europeia segue ao pormenor o Plano Brady. No âmbito do plano, os Estados participantes tiveram de comprar títulos cupão zero[10][10] do Tesouro dos EUA a fim de constituir uma garantia em caso de não pagamento. O plano europeu arquitectado pelos bancos, pela Comissão Europeia e pelo BCE (com o apoio das directrizes gerais do FMI) prevê quatro opções. Nas três primeiras, a Grécia adquire, via Fundos Europeus de Estabilidade Financeira (FESF), euro-obrigações cupão zero, como garantia de reembolso total dos títulos emitidos a 30 anos[11][11].
 
CADTM: Em resumo, como avalias esse plano?
 
Eric Toussaint: O plano não permitirá à Grécia resolver a situação por duas razões fundamentais: 1. a redução da dívida é totalmente insuficiente; 2. as políticas económicas e sociais aplicadas pela Grécia para responder às exigências da Troika fragilizarão ainda mais o país. Isto permite-nos cunhar de odiosos os novos financiamentos que serão concedidos à Grécia no âmbito desse plano, bem como as antigas dívidas reestruturadas pelo mesmo[12][12].
 
CADTM: Diz-se que o BCE se opôs a um forte corte da dívida grega…
 
Eric Toussaint: É verdade. O BCE caiu na sua própria armadilha: uma vez que comprou muitos títulos gregos no mercado secundário e aceita que os bancos (incluindo os gregos) depositem títulos gregos como garantia dos empréstimos que lhes concede, o activo do seu balanço é constituído por uma enorme quantidade de títulos gregos (aos quais se juntam os títulos irlandeses, portugueses, italianos e espanhóis). Um corte de 50 ou 60% dos títulos gregos iria desequilibrar o seu balanço. Diga-se de passagem que seria perfeitamente viável, pois trata-se dum jogo de escritura.
 
Ao se opor a aceitar um corte, o BCE privilegia uma vez mais os interesses dos banqueiros privados, que também não querem aceitar uma forte desvalorização dos seus activos. O BCE pressionou ao máximo os chefes de Estado europeus e a Comissão Europeia para reforçar o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira, a fim de que este passasse a comprar daqui para a frente os títulos de alto risco. Tenciona livrar-se dessa carga o mais depressa possível. (Traduzido por Rui Viana Pereira, revisto por Noémie Josse-Dos Santos.)


[1]Este artigo está incluído numa série de sete artigos. Ver a primeira parte “A Grécia no centro da tormenta” http://www.cadtm.org/A-Grecia-no-ce..., a segunda parte “A feira de saldos dos títulos gregos” http://www.cadtm.org/A-feira-de-sal... a terceira parte “O BCE, servo fiel dos interesses privados” http://www.cadtm.org/O-BCE-servo-fiel-dos-interesses
[2]Resumidos no Financial Times, 26-07-2011, p. 23, bem como no boletim do Crédit Agricole, Perspectives Hebdo, 18-22.07.2011.
[4]Financial Times, 6-7.08.2011.
[5]Ver o texto da declaração oficial do Conselho da União Europeia: http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cms_data/docs/pressdata/fr/ec/123985.pdf
[6] Também está previsto em numerosos códigos civis nacionais como no código civil espanhol (artigos 1895° e seguintes) e francês (artigos 1376° e seguintes).
[7] Artigo 49 da Convenção de Viena de 1969 e do Tratado de Viena de 1986.
[8]Ver Éric Toussaint, Banque mondiale: le Coup d’État permanent, CADTM-Syllepse-Cetim, 2006, cap. 15.
[9]Carmen M. Reinhart, Kenneth S. Rogoff, Cette fois, c’est différent. Huit siècles de folie financière, Pearson, 2010. Ed. Original, 2009, Princeton University Press.
[10]Trata-se de títulos que não dão direito a prémio de cupão, daí o nome. O comprador adquire a um preço inferior ao valor facial, o qual é pago quando o contrato vence. O cupão zero é geralmente indexado à inflação.
[11]Ver Crédit Agricole, Perspectives Hebdo, 18-22.07-2011, p. 3.
[12]Acerca do carácter odioso, e consequentemente, nulo, das dívidas reclamadas pela Troika à Grécia, Irlanda e Portugal (podemos juntar a estas as dívidas reclamadas pelo FMI à Roménia, Letónia, Bulgária e Hungria, todos eles membros da UE), ver Renaud Vivien e Eric Toussaint, “Grécia, Irlanda e Portugal: porque é que os acordos com a Troika são odiosos?”.
https://www.alainet.org/pt/articulo/153048?language=es

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