O Decênio Afrodescendente: um desafio para o mundo

O Decênio foi ganho após uma longa luta, e depois de discussões, explicações e negociações entre os Estados. Uns - sobretudo os ocidentais e alguns países africanos – não desejam mais este tipo de processo.
15/04/2015
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Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 501: El Decenio Afrodescendiente 10/02/2015

“(...) Queremos, isto sim, marchar o tempo todo, noite e dia, em companhia do homem, de todos os homens. Não se trata de alongar a caravana, porque então cada fila percebe apenas a que a precede, e os homens que não se reconhecem mais encontram-se cada vez menos, falam-se cada vez menos.” Fanon ([1961] 1968 p.274)

 

No passado 10 de dezembro em Nova Iorque, com apoio da Assembleia Geral, foi apresentado oficialmente o Decênio Internacional dos Afrodescendentes[1]. O Decênio foi ganho após uma longa luta, e depois de discussões, explicações e negociações entre os Estados. Uns - sobretudo os ocidentais e alguns países africanos – não desejam mais este tipo de processo. Outros, que defendem este processo, são cientes de que “(...) as correntes da discriminação racial tristemente continuam minando a vida de homens, mulheres e crianças” como foi apontado por Martin Luther King há mais de cinquenta anos, quando da marcha pelos direitos civis dos afroamericanos. Também houve fortes discussões entre o Grupo de Trabalho sobre os afrodescententes e os Estados.

 

Este Grupo de Trabalho de Expertos sobre os Afrodescendentes[2] foi criado em 2001, durante a Conferência Mundial Contra o Racismo, a Xenofobia, a Discriminação Racial e as Formas conexas de Intolerância[3] (Durban, África do Sul). O grupo tem a responsabilidade de estudar os problemas da discriminação racial que as pessoas afrodescendentes enfrentam, assim como de apresentar propostas para a eliminação da discriminação racial contra as pessoas africanas e afrodescendentes no mundo.

 

O grupo, passo a passo, tem defendido a importância de se ter um Decênio, dada a permanência da colonialidade do poder e do conhecimento que tem estruturado o mundo capitalista e imperialista. Um mundo que não tem questionado a hierarquia das “raças” nem a superioridade da cultura ocidental, enquanto princípios fundacionais das sociedades democráticas europeias.

 

Estas afirmações ainda não deixaram de incidir na organização do mundo. As consequências desses fantasmas ideológicos são infinitas. Elas se expressam, entre outras, na reescrita e mistificação da história e na expressão do racismo que agride suas vítimas com a discriminação nos níveis social, cultural e económico, assim como nos níveis civil e político; isso sem esquecer a xenofobia de Estado assumida por muitos representantes políticos e funcionários de governo; um fato que não deixa de mostrar a grave crise moral das classes políticas.

 

O programa do Decênio

 

O Grupo de Trabalho fez um grande esforço para produzir o documento matriz, o qual no Grupo de Trabalho Intergovernamental serviu de base para o debate sobre a implementação efetiva da Declaração e do Programa de Ação de Durban. Isto permitiu o desenvolvimento de um programa de atividades para o Decênio Internacional que foi entregue para a Assembleia Geral da ONU.

 

O Alto Comissionado para os Direitos Humanos das Nações Unidas agirá como coordenador do Decênio e terá a tarefa de garantir a criação de uma entidade que sirva como um mecanismo de consulta e de criação de condições para uma avaliação do Decênio a médio prazo.

 

Podemos dizer que o Decênio – cujos temas são: Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento[4] – deve ser uma oportunidade para “promover o respeito, a proteção e a realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais dos afrodescendentes tal como eles são reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Além disso, será também uma oportunidade para “promover um maior conhecimento e respeito pela diversidade de herança e de cultura dos afrodescendentes e pelo seu aporte ao desenvolvimento das sociedades”. Além de “aprovar e fortalecer marcos jurídicos nacionais, regionais e internacionais conforme a declaração e o Programa de Ação de Durban e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial e fazer com que esta seja efetiva e plenamente aplicada” [5].

 

Ainda falta conhecer o papel que deve cumprir o Grupo de Trabalho sobre os Afrodescentendes e o mandato que será entregue ao Conselho de Direitos Humanos a respeito do Foro Internacional e do processo de elaboração da Declaração dos Direitos Humanos dos Afrodescendentes. Este grupo será um indício da vontade política das Nações Unidas e da Comunidade Internacional sobre sua verdadeira decisão de acabar com o racismo, a discriminação, a xenofobia e as formas conexas de intolerância.

 

Corrigir os erros do passado

 

Se bem o colonialismo e a escravidão desapareceram quase totalmente, a ideologia que os amparou ainda vigora com suas modalidades de menosprezo das populações colonizadas que parecem ter sido repatriadas nas metrópoles dos países economicamente avançados.

 

No contexto atual de globalização, a permanência dessa colonialidade encontra-se nas relações sociais, nas relações internacionais, nas instituições e nas mentes; estende-se de diversas maneiras, está presente em todos os lugares e afeta a todos. A colonialidade fundou seu discurso na escravidão e o aperfeiçoou com a implantação da dominação colonial.

 

A xenofobia e o racismo anti-negro assumidos pelos novos populismos de direita são um exemplo eloquente desse discurso. O mesmo está amparado pelos bons sentimentos, pelo discurso do apartheid, a desvalorização e de desumanização do outro sustentada pela cor da sua pele. A colonialidade é então um discurso que se caracteriza por uma visão patológica do mundo à qual alguns meios de comunicação outorgam uma respeitabilidade inaceitável.

 

O Decênio Internacional deveria ser o prazo que se dão todas as nações e os povos para restabelecer a dignidade plena àqueles que têm sido humilhados, desprezados e que não estão aqui para reclamar justiça, como também para mostrar às gerações mais jovens que a terrível experiência dos seus antepassados não se reduz às perdas e aos ganhos das vontades da história.

 

Devemos destacar que na Declaração e no Programa de Ação de Durban[6], os afrodescendentes, incluindo aqueles que não são descendentes de escravos, são identificados – como grupo específico – enquanto vítimas da discriminação racial e da xenofobia que resultam do comércio transatlântico de pessoas e da escravatura.

 

Essa deve ser a oportunidade para corrigir os erros do passado, consolidar um progresso categórico e dar um primeiro passo em direção ao processo de inclusão para reabilitar a memória e a reparação moral de um dos maiores delitos cometidos contra a humanidade.

 

Esse é o compromisso que foi feito no lançamento do Decênio, na Assembleia Geral das Nações Unidas. Esses 10 anos devem permitir o fortalecimento das medidas nacionais, das atividades de cooperação regional e internacional para as pessoas de ascendência africana, para que se possa garantir o usufruto pleno dos direitos econômicos, culturais, sociais, civis e políticos dos afrodescendentes. Se objetiva aumentar de maneira substanciosa a sua participação cultural, civil e política na vida social, como promover uma melhor compreensão e um respeito maior à diversidade e a riqueza do seu patrimônio e cultura.

 

O reconhecimento é de fato, um elemento fundamental na reconstrução das relações humanas, o que permite superar as classificações hierárquicas baseadas na raça, estabelecidas pela chamada civilização. Assim, além do Foro Internacional e da Declaração da ONU sobre os direitos humanos dos afrodescendentes, que já fazem parte do calendário de atividades aprovado pelos Estados, o Decênio deve se dedicar a operações e campanhas de sensibilização, de formação e de educação sobre as problemáticas colocadas pelos afrodescendentes a respeito da historia e atualidade. É importante que uma quantidade elevada de pessoas saiba das questões citadas acima - que estão no cerne das relações internacionais, e que saiba também das relações sociais no norte e no sul, no este e no leste.

 

Para que tais campanhas de sensibilização sejam realizadas, o Grupo de Trabalho propôs o desenvolvimento de um seminário mundial sobre os afrodescendentes e o mundo contemporâneo, no marco do Decênio.

 

Esse tema iria reunir expertos de todos os países e todos os horizontes com o propósito de valorizar o aporte cultural, científico, econômico, social e político dos afrodescendentes no mundo de hoje. Todas as contribuições, venham de onde vierem, devem ser recolhidas pelo Alto Comissionado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, em parceria com instituições como a UNESCO, para que assim possa ser construída uma enciclopédia da afrodescendência e da sua contribuição ao mundo.

 

Um dos desafios do Decênio Internacional dos Afrodescendentes é acabar com o legado tóxico de uma história que tem sido ocultada, até negada e fantasiada.

 

Um esforço pela rehumanização

 

Não podemos nos confundir, o reconhecimento do status dos Afrodescendentes não é só um gesto político em face das vítimas e das gerações presentes e futuras. O reconhecimento é um fato determinante para a libertação de quem tem dominado, explorado e infringido sofrimentos insuportáveis à um número alto de  populações durante séculos.

 

Este Decênio Internacional dos Afrodescendentes não pode ser pensado sem a contribuição essencial da sociedade civil e sem observar o seu lugar central na efetivação de todas as atividades. É só através de uma maior interação entre os atores estatais, as organizações internacionais, regionais e subregionais; entre as organizações e a sociedade civil que o Decênio Internacional poderá alcançar seus objetivos. Mas, será suficiente?

 

O sucesso do Decênio depende em grande medida da vontade política de todos os países que fazem parte da comunidade internacional - será que a maioria deles realmente quer reversar a correlação de forças e desconstruir os elementos da colonialidade que os estruturam?

 

A década é apresentada em um contexto global no qual se enfrentam, em uma luta à morte, de um lado, os defensores do mundo ocidental assustado pela alteridade e a diferença e com a vontade de impor sua cultura e sua ideologia alienante a todas as nações. E, do outro lado, estão os que habitam um mundo mantido sob a dominação colonial e que busca alcançar a igualdade de direitos. Nessa luta, qualquer passo falso será relembrado pelos primeiros e aproveitado por eles mesmos para expressar o que os segundos lhes devem e de onde eles vêm.

 

No marco da globalização, o contexto se caracteriza por dinâmicas de “colonialidade global”, dentro da qual continuam sendo construídos padrões de exclusão.

 

Portanto, a erradicação do racismo anti-negro – sem se esquecer do racismo anti-muçulmano, da discriminação, da xenofobia e das formas conexas de intolerância, corre o risco de seguir sendo uma causa central no futuro dos povos das Nações.

 

Qual poderá ser o motor ideológico-político capaz de explicar para os setores dominantes que um dos elementos a ser desconstruído, para começar a se pensar em um mundo de paz, fundamentado na não discriminação e no seu corolário, a igualdade, é a colonialidade do poder, com a sua carga de exclusão, essencialismo e estigmatização?

 

O sucesso dessa década vai depender basicamente das tentativas de re-humanização. Estas devem promover a humanização dos descendentes de escravos, súditos coloniais e migrantes vindos do sul, entre outro atores, nas metrópoles e nas cidades dos antigos impérios. Todos eles compartilham com os antigos escravos e os ex-coloniais, o seu pertencimento a um grupo humano sob suspeita.

 

Os próximos dez anos são um desafio para o mundo. Esperamos que ao seu fim, no 31 de dezembro de 2024, não renovemos a terrível constatação feita durante a abertura da Conferência de Durban[7]: “Apesar dos esforços da comunidade internacional, não se têm conseguido alcançar os principais objetivos dos três Decênios de luta contra o racismo e a discriminação racial, assim hoje um sem-número de seres humanos ainda é vítima da discriminação racial, a xenofobia e as formas conectas de intolerância”  [8]. Poderemos, nós, os Estados e os povos responder a esse objetivo? Seremos capazes de mudar o paradigma da racialização das nossas sociedades, e, sobretudo, de reverter a correlação de forças a fim de descolonizar o poder e os saberes?

 

Temos dez anos para conseguir dar resposta a estes questionamentos. Não temos um minuto para perder se desejamos ter sucesso e neutralizar todas as posturas negativas.

 

(Tradução ALAI)

 

Mireille Fanon-Mendes-France é presidenta do Grupo de Trabalho da ONU sobre afrodescendentes.



[2] Resoluções 2003/68 e 2003/30 da Comissão de Direitos Humanos, posteriormente ratificadas pela Comissão de Direitos Humanos na resolução 9/14.

[3] Do 30 de agosto ao 8 de setembro 2001, ver A declaração e o Programa de Ação de Durban, http://www.un.org/es/events/pastevents/cmcr/

[4] Resolução 68/237.

[6] Cf : nota 4.

[7] Ver nota 4

[8] Declaração de Madeleine Robinson, ex Alta Comisionada das Nações Unidas para los Direitos Humanos ; pág. 3, da declaração e do Programa de Ação de Durban.

 

 Artigo publicado na América Latina en Movimiento , No. 501:  http://alainet.org/publica/501.phtml

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/168967?language=es
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