O golpe sob o aspecto da globalização

31/08/2017
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Foto: Nilton Cardin/Folhapress
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Muito se tem falado do golpe contra a presidenta Dilma sob o aspecto da elite política brasileira. O analista político e linguista Noam Chomsky descreveu os acontecimentos como um soft coup (golpe brando) e afirmou que Dilma, “a única dirigente política de topo que não roubou em benefício próprio, está a ser destituída por uma gangue de ladrões”. No entanto, as elites, no Brasil ou no mundo, têm ponto de vista muito semelhante em relação ao conceito de democracia.

 

Do livro O Ódio à Democracia, do filósofo francês Jacques Rancière, apresentado pelo ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro, dentre outras passagens pode-se citar: “O discurso intelectual dominante une-se assim ao pensamento das elites censitárias e cultas do século XIX: a individualidade é uma coisa boa para as elites; torna-se um desastre para a civilização se a ela todos têm acesso” (Rancière, 2014, p. 42).

 

Daí se apreende que jamais devemos esperar que as elites sejam condescendentes com a democracia, em qualquer parte do mundo e especialmente aqui no Brasil, onde não há tradição nem hegemonia cultural que legitime um processo democrático mais amplo ou radical, que evolui no acesso às dimensões econômicas, sociais e culturais para todos.

 

Nesse caso, os governos petistas de Lula e Dilma, ainda que contraditórios, foram guiados por um paradigma que foi na contramão dessa visão da “democracia das elites” e promoveram importantes avanços também nos aspectos socioeconômicos e algumas quebras de paradigmas no âmbito cultural, através de políticas públicas e leis sobre os direitos humanos e segmentadas para algumas maiorias historicamente negligenciadas, especialmente mulheres e negros(as). Isso foi o bastante para despertar o “ódio à democracia” por parte da elite intelectual e censitária no Brasil.

 

De outro lado, pode-se observar o golpe também sob o ponto de vista estrutural da globalização, que diz respeito às relações de trabalho, cuja análise traz-se aqui como referência o economista Guy Standing (2013), por meio de seu livro intitulado O Precariado: A Nova Classe Perigosa.

 

Standing (2013) argumenta que o precariado é produto da ideologia neoliberal, através da tese de “flexibilização do trabalho”, que começou a ser defendida ainda nos anos 1970. Diante das contradições da globalização e mais fortemente depois da crise do sistema financeiro de 2008, essa agenda se acirrou e passou a apresentar suas consequências com maior nitidez.

 

Importante ressaltar dois conceitos: a diferença entre cidadão e habitante e as diferenças entre tarefa, trabalho e ócio. Habitantes são as pessoas que vivem num determinado território com direitos limitados, sendo eles garantidos apenas aos cidadãos. Na Grécia antiga as tarefas eram executadas pelos não cidadãos, enquanto que o trabalho era destinado à ação reprodutiva familiar ou à práxis que exigia reflexão, enquanto o ócio era o papel da schole, ou seja, local de pensamento livre e criativo.

 

A modernidade passou a controlar o tempo de vida, dividindo-o em trabalho e lazer e mudando o conceito de ambos: o trabalho passou a ser considerado toda e qualquer tarefa e o lazer passou a ser considerado tempo ocioso, e não tempo livre e criativo. Na era da globalização o tempo passou a ser mais acelerado e deixou de distinguir as ações produtivas e não produtivas das pessoas, impondo uma conectividade permanente, combinada à explosão do consumo, que tornou os indivíduos escravos do trabalho.

 

Na estrutura hierárquica das relações de trabalho, pode-se considerar que as elites estão no topo; em seguida, vêm os trabalhadores estáveis que constituem carreira; depois, vêm os profissionais, especialistas em determinadas tarefas de curto prazo, mas que têm uma expectativa de sobreviver de sua profissão; da mesma forma que os técnicos, que estabelecem contratos autônomos e prestam serviços por tempo determinado. No final da pirâmide, surge o precariado, que são os desempregados, que se sujeitam a cumprir tarefas temporárias, de baixa remuneração, sem qualquer direito e sem identidade de classe, categoria ou profissão, portanto, vulneráveis: “Ser precarizado é ser sujeito a pressões e experiências que levam a uma existência precariada, de viver no presente, sem uma identidade segura ou senso de desenvolvimento alcançado por meio do trabalho e do estilo de vida” (Standing, 2013, p. 37).

 

Os principais segmentos atingidos por essa condição de precariado são em primeiro lugar os migrantes, que na condição de simples habitantes se submetem a qualquer tipo de exploração da força de trabalho, sem nenhum direito, sob pressão e ameaça permanente. Depois desse grupo vem a inserção das mulheres no mercado de trabalho, acompanhada da feminização da pobreza e tripla ou quádrupla jornada (casa, um ou dois empregos e cuidado com as crianças e também idosos da família). Os jovens, desde a condição de estagiário, telemarketing e outras modalidades chamadas de “minitrabalho”, e mesmo depois de formados, saem da universidade endividados tendo que se submeter a trabalhos temporários de curto prazo sem tempo de pensar em carreira ou recém-vindos das áreas rurais para os centros urbanos. Juntamente com a migração está inserida a discriminação étnico-racial nas relações de trabalho e finalmente os próprios idosos, que, com o aumento da expectativa de vida e precarização do sistema de seguridade e aposentadoria, buscam complementar sua renda com trabalho precário.

 

Não se trata de um exército de reserva que ameaçava os rendimentos dos trabalhadores em diferentes profissões como ocorria na era industrial, mas de uma espécie de lumpesinato que viabiliza a competitividade global através do baixo custo da força de trabalho e que se converte em lucro das empresas e na satisfação do mercado financeiro.

 

Num primeiro momento esses mecanismos de precarização das relações de trabalho foram adotados pelos Tigres Asiáticos nos anos 1990 e pela Índia e China nas últimas duas décadas, como estratégia para se inserir de forma competitiva na globalização. Após a crise de 2008, a mesma lógica passou a dominar também os países desenvolvidos.

 

No Brasil, as organizações sindicais e populares enfrentaram as medidas neoliberais nas décadas de 1980/90 e depois com as sucessivas vitórias eleitorais do PT deu-se prioridade a outras agendas, algumas delas antineoliberais, contrárias à agenda da flexibilização das relações de trabalho.

 

Após o golpe contra a democracia, que tirou a presidenta Dilma do poder em 2016, essa agenda neoliberal passou rapidamente para o centro do processo político e aprovou imediatamente três medidas: teto de gastos públicos, reforma do ensino médio e reforma trabalhista.

 

As três estão articuladas e atendem os interesses do capital hegemônico, ou seja, o sistema financeiro, pois as grandes redes de firmas atuam na produção e no sistema financeiro simultaneamente, aos quais interessa uma educação simplesmente tecnicista, um Estado que arrecada impostos, faz superávit primário e garante juros altos e os contratos de alto risco (como ocorreu especialmente nos EUA em 2008) e a flexibilização das relações de trabalho, que compõe a infraestrutura que viabiliza a competitividade e lucratividade das marcas globalizadas.

 

Essas três reformas que já foram sacramentadas garantem a primeira etapa exitosa do golpe sob o ponto de vista do interesse do capital hegemônico e colocam o Brasil no mapa dos países que se “adequaram” aos parâmetros da globalização.

 

Contudo, esse processo traz consequências políticas para a sociedade, que se transforma com essas medidas. O precariado se compõe de uma parcela crescente da sociedade, empurrada à condição de habitantes (sem direitos), independentemente de origem, num primeiro momento atraída por uma ideia positiva de maior autonomia de trabalho, encantado com nomes criativos como home office, offshore, terceirização etc.1

 

Porém, estudos como o apresentado por Standing (2013) demonstram que a flexibilização leva à precarização das relações de trabalho e gera insegurança e ameaça constantes, que provocam ansiedade e alienação, produzem raiva, medo, baixa autoestima e perda da identidade de classe ou étnica, além de quebrar até mesmo os laços intrageracionais, pois os filhos não querem depender dos pais, submetendo-se às condições de trabalho precárias precocemente, e consequentemente não se comprometem com os pais idosos, levando-os igualmente à condição de precariado futuramente.

 

Como afirma Standing (2013), esse processo leva à “mente precarizada”, incorporando os hábitos digitais de sobrecarga de informações fragmentadas que geram déficit de atenção e incapacidade de reflexões mais complexas e de longo prazo, ou seja, uma espécie de alienação por excesso de informação, aumentando a raiva, a revolta e a distopia, presa fácil para o discurso de ódio e o avanço das ideologias ultraconservadoras e nazifascistas que veem o seu semelhante como uma ameaça e inimigo imediato em vez do reconhecimento e da solidariedade pela condição comum.

 

As pautas e a agenda política e cultural que serviram de motivação para o engajamento das gerações de trabalhadores da era industrial, das juventudes das gerações anteriores e dos excluídos, num contexto passado, não encontram eco nesse novo perfil social, e nesse vácuo de utopia ganha espaço o discurso ultraconservador do ódio e das distopias. Um exemplo alarmante vem dos dados recentes do Latinobarômetro, que indicam a queda de 54% para 32% dos brasileiros que preferem a democracia, em apenas um ano, entre 2015 e 2016 (acima apenas da Guatemala), enquanto aumentou para 23% as pessoas que pouco se importam se o regime é democrático ou não.

 

Diante disso, algumas considerações são necessárias: em primeiro lugar que as elites odeiam a democracia radical, aqui e em qualquer parte do mundo; em segundo lugar que os governos petistas, em que pese suas contradições, representaram um contraponto à agenda neoliberal; em terceiro lugar que o golpe político levado a cabo pelas elites brasileiras tem forte conexão com a hegemonia do capital financeiro global que já garantiu a consecução da sua agenda principal (teto de gastos públicos, reforma do ensino médio e reforma trabalhista); em quarto lugar é preciso aprofundar a análise sobre as consequências políticas dessa nova classe social em pleno crescimento e potencializada pelas medidas econômicas do golpe, o precariado, e passa a ser urgente a elaboração de propostas utópicas para esses segmentos para disputá-los com o discurso ultraconservador e nazifascista de ódio à política e às instituições, que já apresenta índices e exemplos concretos de manifestações trágicas de desumanização no Brasil.

 

Referências

 

RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.

 

STANDING, Guy. Precariado: A Nova Classe Perigosa. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013.

 

- José Roberto Paludo é doutor em Sociologia Política pela UFSC, master em Ciências Aplicadas pela FIIAPP de Madri, graduado em História pela Unijuí e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo

 

Notas

 

 

Edição 163, 30 agosto 2017

http://www.teoriaedebate.org.br/index.php?q=materias/nacional/o-golpe-sob-o-aspecto-da-globalizacao

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/187761

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