FARC, um novo partido na Colômbia

11/09/2017
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Foram 53 anos de luta armada nas montanhas colombianas, a guerrilha mais antiga da América Latina. Primeiro, chegou como defesa mesmo, das famílias e das comunidades, num país devastado pelo caos político iniciado com o assassinato de Jorge Gaitán. Um exército popular nascido em 1964, em resposta a violência desatada pelo governo sobre a região de Marquetalia. Um grupo que, atuando de maneira mais sistemática, foi então se articulando como uma proposta de libertação, marxista. Mais de meio século enfrentando o poder de um estado militarizado, paramilitares, e narcotraficantes. A Colômbia e seu caldeirão, recheado de mortes, desaparições, desalojamento de gente. Um país marcado pela proximidade política com os Estados Unidos, parceiro na luta contra qualquer possibilidade de vitória de uma proposta socialista. Era preciso varrer do mapa as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, e muito foi investido nisso.

 

Mas, apesar de toda a ajuda dos EUA e da ação permanente do paramilitarismo, o mercenarismo e o narcotráfico, as FARCs resistiram. E ao longo de quase meio século nunca faltou gente para engrossar as fileiras do sonho da liberdade e da soberania.

 

Só que mais de 50 anos de guerra civil também conseguiram esgotar a população. Era tempo demais vivendo sob o medo e o terror de estado. Por isso, a proposta de um cessar fogo e de consolidação da paz começou a ganhar músculo. Várias tentativas já tinham sido feitas, todas infrutíferas, mas dessa vez, com a mediação de Havana, Cuba, as partes se entenderam. Não sem conflito. A ponto de, depois de assinada a paz, no final de 2016, um plebiscito realizado no país decidir pelo não ao acordo, fruto de campanha massiva das forças mais reacionárias, comandadas por Álvaro Uribe, ex-presidente com ligações próximas ao narcotráfico.

 

O fato é que, acertados alguns interesses, o acordo vingou e as armas da guerrilha começaram a ser entregues. A paz começou a tecer seus primeiros arranjos numa caminhada que não será curta, nem fácil. 

 

E uma dessas tessituras foi a possibilidade de transformar toda aquela organização popular nascida na guerrilha em uma instituição partidária capaz de atuar na vida cotidiana, às claras, amarrando os laços construídos por todo o país. Assim, foi-se costurando a organização do Primeiro Congresso das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo. 

 

E o congresso aconteceu agora em agosto de 2017, na capital do país, reunindo mais de 1.200 delegados de praticamente todas as regiões da Colômbia. Vieram os combatentes das montanhas e os milicianos da cidade. Vieram ainda delegações de movimentos revolucionários de mais de 20 países. Foram cinco dias de acaloradas discussões e ao fim, ali estava um novo partido político, uma organização fora da clandestinidade, pronta para disputar o jogo político na Colômbia da paz. Assim, o que eram as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) se transmudaram em Força Alternativa Revolucionária do Comum (FARC). Um nome e tanto, capaz de plasmar na mesma sigla os desejos de meio século: um país no qual os bens comuns pudessem ser desfrutados por todos e não apenas por uma elite. A voz da montanha pode soar sem medo, e da junção dos caminhos da luta armada com a paz, pode nascer a rosa vermelha que, a partir de agora, anunciará a luta da FARC partidária, civil. 

 

Já na abertura do histórico congresso, a fala de Rodrigo Londoño, o  Timochenko, então dirigente máximo das FARC, deixava claro que entrar para a legalidade não significava abandonar os pressupostos que levaram tantos colombianos às armas: “não renunciamos aos nossos fundamentos ideológicos, nem ao projeto de sociedade. Seguiremos sendo revolucionários. Nossa missão fundamental será ganhar as massas, sem as quais o adversário fará o que quiser conosco”.  

 

Durante os cinco dias de congresso os delegados construíram o estatuto e o programa do partido, elegendo também a primeira diretoria, com 111 membros. Dentro desse grupo ficaram incluídos os antigos componentes do Estado Maior das FARCs, bem como aqueles que representarão o partido como senadores e deputados, cinco em cada casa, conforme garantiu o acordo.

 

Para aqueles que durante anos viveram no terror da guerra, agora está colocada a possibilidade de construir uma alternativa que expresse a construção do mundo sonhado, de justiça, de terras repartidas, de cuidado com as gentes, de democracia real. Um grande desafio, como afirma o relatório do congresso fundacional: “Pedimos perdão às vítimas do conflito, fizemos ações de reparação e continuaremos a fazê-lo. Acreditamos que a reconciliação é possível, ainda num contexto político de polarização instigada por aqueles que a repudiam, sim, persistimos na necessidade de estabelecer diálogos e outras ações que permitam compreender que a construção da paz é um propósito coletivo.

 

A paz tem que ver com todos: com os partidos políticos, com os governantes, com os diversos ramos do sector público, com os ex-contendores, com os empresários e os povos indígenas, os grandes meios de comunicação e as comunidades afro, com os habitantes das cidades e os camponeses, com os jovens e as mulheres, enfim com as pessoas comuns, com o povo. Chegar ao coração da população também significa compreender como, de facto, já o fizemos, que a solução dos problemas lancinantes da população não se encontra, exclusivamente, na implementação dos acordos e que estes, se bem que representam um indiscutível avanço democrático, têm que dialogar com o conjunto de iniciativas e propostas surgidas das mais variadas expressões organizativas políticas e sociais do campo popular”. 

 

E esse caminho para o coração dos colombianos já se mostrou fecundo no grande ato de lançamento do partido que aconteceu ao final do congresso, na Praça Bolívar, em Bogotá, ao qual compareceram mais de 15 mil pessoas, para ouvir as decisões do encontro, cantar, dançar e compartilhar do ritual sagrado oferecido pelos povos originários, no simbólico cachimbo da paz.  

 

Agora, a luta seguirá por outras vias. Existem ainda muitas pontas soltas para serem amarradas. Afinal, é uma mudança radical a que milhares de pessoas estão vivendo, saindo da guerrilha para a vida civil. A rotina na montanha não encontra similaridade num espaço onde já não existem as armas, nem a formação continuada, nem todas as atividades culturais e políticas comuns aos acampamentos. A integração será lenta e fatalmente sofrerá reveses, seja em função do não cumprimento das promessas feitas pelo governo, ou pela dificuldade de adaptação. 

 

O acordo de paz previu ações que também trarão conflitos, como a reforma agrária, por exemplo. Não será fácil fazer a distribuição das terras sem a intervenção das forças conservadoras. Tampouco será de fácil solução a questão do plantio da coca, o combate ao narcotráfico, a desarticulação do paramilitarismo e outras organizações criminosas. E, com certeza, a Comissão de Esclarecimento da Verdade, que deverá ressarcir as vítimas do conflito, também não será um espaço sem tensão. 

 

De qualquer forma, todos os envolvidos no processo sabem muito bem que a paz é uma longa e lenta construção, conhecem os pontos de tensão e estão dispostos a enfrentar. Já foi bem pior nas trincheiras, em luta armada, colombiano contra colombiano. 

 

Ainda assim, para boa parte dos que agora começam o caminho pela via institucional, uma coisa parece bem clara: a luta de classes é a que vai comandar o programa. A opção pela paz não significa que se vai iniciar uma ciranda onde todos dançarão de mãos dadas. A elite colombiana, que durante esses 53 anos dirigiu violenta ação contra as FARC, não será “parceira”. Será, como na montanha, uma adversária, e contra ela serão travadas batalhas. No parlamento, nas instituições democráticas, e nas ruas, sempre que necessário. A rosa vermelha que tremula na bandeira do partido tem perfume, tem beleza e tem espinhos. Para que ninguém esqueça que durante quase meio século, muita gente deu a vida pelo sonho de uma Colômbia soberana e livre. 

 

A esperança é de que os novos dirigentes não se deixem levar pelo canto da “democracia liberal”, eivado de acordos e conciliações de classe. Há que honrar o sangue derramado. 

 

11 de Setembro de 2017

https://www.alainet.org/pt/articulo/187966?language=es
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