O estouro da bolha e o destino do Brasil

22/07/2002
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Nos últimos anos, o debate sobre o sistema econômico internacional girou em torno de duas posições extremas e antagônicas. De um lado estavam os que descreviam, com grande otimismo, a criação de uma “nova economia” capitalista, baseada em uma revolução científica e tecnológica que passara a permitir uma acumulação leve e flexível, sem grande imobilização de capital em plantas rígidas. Associada a políticas econômicas muito mais precisas e a ganhos crescentes de produtividade, essa nova economia havia colocado sob controle os ciclos tradicionais. Para consolidar a tendência a um desenvolvimento capitalista contínuo e sem sustos, era necessário tão-somente remover obstáculos políticos herdados da fase anterior (intervencionismo estatal, legislações trabalhistas e previdenciárias, sindicatos atuantes, etc.). Daí o papel atribuído às políticas neoliberais na construção dessa nova ordem. De outro lado, pensadores de inspiração marxista apontavam um cenário inverso: a acumulação de capital fictício tornara-se desproporcional em relação aos circuitos da produção real, o sistema apresentava crescente dificuldade de incorporar trabalho vivo, criador de valor, e as tendências à superprodução se acumulavam – tudo isso convergindo para uma grave crise iminente. Defendi, nesse debate, que as posições desse segundo grupo continham os elementos mais verdadeiros, mas eram insuficientes para descrever a dinâmica real do sistema. Pois o capitalismo assumira uma configuração que, ao lado de uma tendência à crise, repunha dinamicamente a possibilidade de adiamento dessa mesma crise. Essa configuração era marcada pela presença de três “anomalias”. A primeira: a economia mais importante do mundo passara a funcionar com déficits externos colossais e tornados permanentes. Há muitos anos, como se sabe, o déficit comercial norte-americano tem-se situado na casa dos US$ 400 bilhões por ano. Para perceber a enormidade desse número, basta lembrar que, quando o déficit comercial brasileiro atingiu “apenas” US$ 8 bilhões por ano, nosso país — que não é pequeno — mergulhou em crise aguda, que forçou a mudança de seu regime cambial. Só podíamos compreender esse padrão de funcionamento da economia norte- americana, aparentemente inviável, quando o observávamos junto com uma segunda anomalia do sistema: essa economia gigantesca e altamente deficitária emite, sem lastro e sem regras de emissão, a moeda do mundo. Por isso, sua capacidade de endividamento tem sido incrivelmente elástica, em uma escala quase impensável nos moldes tradicionais. Recordemos como chegamos a isso: ao transformar o dólar em moeda de referência internacional, a Conferência de Bretton Woods (1944) entregou o controle da emissão monetária da economia capitalista mundial aos Estados Unidos, mas impôs a este país duas regras de emissão: a conversibilidade dólar-ouro e a paridade fixa entre os dois. Ambas as regras foram garantidas em tratado internacional assinado pelo Estado norte-americano. Criou-se assim, no após-guerra, um sistema em que a reserva norte-americana de ouro lastreava o dólar, que por sua vez era a referência para as demais moedas, de acordo com taxas de câmbio fixas (ajustáveis segundo certas regras). Nesse contexto, o poder de emissão monetária do Estado norte-americano era contido e disciplinado, pois a fabricação de dólares representava a hipoteca de sua reserva de ouro e era limitada por ela. Em 1972, como se sabe, os Estados Unidos romperam unilateralmente o Tratado de Bretton Woods e se descomprometeram com as regras de emissão nele previstas. Desvincularam o dólar e o ouro, repudiando a conversibilidade, e em seguida desvalorizaram a moeda, abandonando a paridade, tendo em vista recuperar a competitividade de sua economia. Os demais países tiveram de seguir caminho semelhante, efetuando suas próprias desvalorizações competitivas, logo tornadas sucessivas. Assim, o sistema de Bretton Woods deixou de existir, dando lugar a um “não- sistema” de moedas sem lastro e câmbios flutuantes. Desenvolveram-se a partir de então, vigorosamente, os processos que viriam a formar o que mais tarde foi chamado “globalização”, especialmente a financeirização da riqueza, pois os mercados de câmbio (estreitamente vinculados aos de juros) tornaram-se fontes de receitas extraordinárias para empresas, fundos e bancos multinacionais, capazes de operar simultaneamente em diferentes moedas e praças financeiras. Como o sistema internacional não tinha substituto para o dólar, o Estado norte-americano reteve, na prática, o direito de emissão da moeda internacional, agora porém sem ser limitado por regras definidas em tratado. Não foi uma decisão técnica. Relacionou-se, antes de tudo, com um ambicioso projeto de retomada (ou reafirmação) da hegemonia norte-americana, àquela altura ameaçada pelo vigor das economias alemã e japonesa reconstruídas, o poderio político- militar soviético em aparente ascensão e as veleidades contestadoras de grande parte do então Terceiro Mundo. Sem compreender esse projeto, em todas as suas dimensões (econômica, militar, política, cultural, ideológica), nada se compreende da evolução da conjuntura internacional nas últimas décadas. (Reiteremos, de passagem, este aspecto da história: o chamado processo de globalização deslancha a partir do momento em que é impulsionado pelo Estado nacional hegemônico, em defesa de seus interesses; confundir “globalização” e “fim da ação dos Estados” não passa de um contra-senso.) Ora, um Estado nacional que emite, sem regras, a moeda do mundo é uma situação que não pode perdurar indefinidamente, pois introduz uma assimetria profunda e estrutural nas relações internacionais. Imaginá-la como uma situação normal é admitir que os demais componentes do sistema aceitarão passivamente uma posição subordinada, o que contraria toda a experiência histórica. O problema central da conjuntura mundial era, portanto, a meu ver, identificar como e quando seria quebrada essa regalia do Estado norte-americano, que era o verdadeiro fundamento da ordem mundial unipolar, inviável no longo prazo. A criação do euro colocava um dado novo, mas não resolvia a questão. Por que essa segunda anomalia se prolongava tanto? A resposta, a meu ver, remetia a uma terceira anomalia: o pólo ascendente do sistema – o Leste da Ásia – é estruturalmente superavitário, e não poderia funcionar se não tivesse para onde escoar seu enorme superávit. O déficit norte-americano – ou seja, a necessidade de financiamento da economia norte-americana – é que abria espaço para a reciclagem do capital asiático sobrante e, mais do que isso, criava o mais importante pólo de demanda efetiva para toda a economia internacional. Em artigo publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, em junho de 2001, escrevi: “O que mantém em funcionamento a ordem mundial atual, chamada de neoliberal, não é o que ela anuncia com sendo seu grande trunfo (o desenvolvimento tecnológico e a formação de uma “nova economia”), mas sim um mecanismo tipicamente keynesiano: a sustentação da demanda efetiva por meio da emissão de dívidas. Emissão incrivelmente elástica porque o mesmo agente, de um lado, se endivida e, de outro, fabrica a moeda (não lastreada) em que sua dívida deve ser paga. Este precário arranjo produz conflito no núcleo do poder mundial: a posição especial do Estado norte- americano é mal tolerada, pois sua hegemonia está inscrita na lógica de funcionamento do sistema, nas próprias regras do jogo. Mas, além de conflito, também há cooperação, pois se o dólar desabar todos desabam, a começar pelo Japão, o grande credor. Eis o paradoxo: o mecanismo que mantém a economia mundial funcionando (a capacidade de endividamento da sociedade norte-americana) depende da posição especial do dólar; porém, enquanto essa posição perdurar, os Estados Unidos manterão um grau de hegemonia que não é aceitável para os demais participantes do grande jogo de poder mundial. Em outras circunstâncias históricas, isso se resolveria pela guerra entre os integrantes do núcleo do sistema, mas hoje esta possibilidade está afastada. Assim, a atual configuração se modifica com mais lentidão, espremida por tendências contraditórias — tendências de conflito e de cooperação no núcleo — que não permitem uma solução rápida e radical. A posição do dólar é o elemento-chave para o desenlace da crise latente.” Como se vê, minha posição continha uma crítica à visão catastrofista, que anunciava sempre uma crise sistêmica iminente. Ao mesmo tempo, descrevia uma ordem intrinsecamente instável, que nada tinha a ver com as visões idílicas sobre o capitalismo contemporâneo. Por uma questão de coerência, devo emitir agora uma opinião arriscada: a revelação dos artifícios contábeis que mantiveram sobrevalorizada a Bolsa de Nova York nos últimos anos coloca em risco toda a engrenagem que produzia o adiamento da crise sistêmica. A capacidade de endividamento da sociedade norte- americana e a posição especial do dólar estavam lastreadas principalmente nesses ativos que estão desaparecendo. Ainda não podemos dizer se será uma crise fulminante ou prolongada, com muitas idas e vindas, mas podemos dizer que ela é profunda e cheia de conseqüências. Representará uma inflexão importante na conjuntura internacional, dando início a um rearranjo de longo fôlego, que ao fim e ao cabo conduzirá a uma nova multipolaridade, com a Europa e a China como centros emergentes. Quanto a nós, os periféricos, estaremos diante de novos riscos (imensos) e novas oportunidades. Os riscos decorrem do aumento da propensão do Estado norte- americano à guerra – ameaça que atualmente se restringe à sua relação com países periféricos – e, no caso específico da América Latina, do apressamento na formalização da “área americana”, ou “área do dólar”, tendo a Alca como proposta articuladora. Porém, oportunidades também surgirão. A transição da unipolaridade para uma outra configuração multipolar aumentará os espaços de manobra daqueles países intermediários que conseguirem preservar significativos graus de liberdade. O jogo se tornará mais pesado. Nosso posicionamento deve partir de uma premissa: é preciso impedir a todo custo que, nos estertores da ordem unipolar, Brasil e América Latina sejam tragados pela área regional americana. Que os nossos candidatos a presidente e os partidos que lhes dão sustentação não hesitem a se posicionar sobre isso. * César Benjamin é autor de A opção brasileira (Contraponto Editora, 1998, nona edição) e integra a coordenação nacional do Movimento Consulta Popular.
https://www.alainet.org/pt/node/106157?language=en
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