Nossa crise no contexto mundial da geoeconomia e da geopolítica

12/02/2015
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A crise econômica e política brasileira não pode ser entendida fora de uma avaliação mais ampla do seu contexto geoeconômico e geopolítico. Em termos geoeconômicos, a questão central no mundo atual é a estagnação da zona do euro e do Japão, e a pouca consistência da recuperação americana. Esta, no ano de 2014 em que cresceu 2,4%, teve dois trimestres iniciais de contração. Portanto, mesmo a economia norte-americana continua na balança, e ainda não deu sinal claro de que superou a crise iniciada em 2008 e agravada em 2010, a despeito de políticas monetária e fiscal extremamente expansivas.
 
A crise nos países capitalistas centrais, iniciada com a explosão financeira de 2008, revelou-se uma crise de baixa do ciclo econômico na qual a redução estrutural da demanda constitui um bloqueio à retomada do investimento e do emprego. Pode ser atenuada, como se vê nos EUA, mas não eliminada por políticas macroeconômicas de estilo keynesiano. Contudo, na Europa, nem políticas keynesianas tem sido aplicadas em razão da ditadura econômica alemã, o que torna a crise peculiarmente aguda. Veremos, a propósito, como vai evoluir a posição desafiadora da Grécia que já não suporta a política dos ajustes fiscais.
 
A falta de perspectivas de investimentos nos países centrais torna imperativo para suas classes dirigentes ampliar sua fronteira de penetração no mundo dos emergentes e dos países em desenvolvimento em espaços ainda dominados pelo capital estatal. É aí que entramos nós. Temos ainda um espaço relativamente virgem para a entrada de capitais estrangeiros em busca de valorização: o setor do petróleo, o setor da eletricidade, o setor das águas, o setor bancário estatal. Num certo sentido, também outros setores de serviços onde o Estado tem grande presença: educação e saúde.
 
Não se trata de permitir a entrada de capitais privados estrangeiros nesses setores. Em grande medida, eles já participam deles. O que se pretende é eliminar completamente a presença reguladora e operadora do Estado a fim de colocá-los inteiramente sob a lógica do mercado privado. Bem ou mal, conseguimos um certo estágio de afirmação de um Estado social-desenvolvimentista, com importantes braços operacionais como Petrobrás, Eletrobrás, BNDES, Caixa Econômica, Banco do Brasil. Todos estão na linha de tiro, já que todos ocupam espaços que podem ser dominados pelo capital privado estrangeiro.
 
O jogo geoeconômico dos países centrais consiste, portanto, em penetrar nessa zona que ainda está sob controle estatal e nacional. E não se trata de defender os interesses das empresas privadas em geral, mas, sim, das empresas privadas deles. Um dos riscos da Operação Lava Jato é justamente a liquidação de grandes empresas nacionais que tem contratos com a Petrobrás: destruí-las significa criar centenas de milhares de desempregados e queimar tecnologia nacional acumulada por décadas abrindo o mercado às construtoras estrangeiras, que há anos pressionam o Brasil nesse sentido nas negociações da Organização Mundial do Comércio, por enquanto sem resultado.
 
Estamos extremamente vulneráveis a esses ataques externos, especialmente quando se levanta a bandeira da corrupção do Estado, e não no Estado. A rigor, perdemos grande parte de nossa soberania econômica. Tivemos, no ano passado, um déficit em conta corrente de 91 bilhões de dólares, ou 4% do PIB, crescente. É para fechar essa conta, e não para combater a inflação, que o Banco Central eleva às nuvens a taxa básica de juros. Caso queiramos baixar significativamente essas taxas corremos o risco de um ataque cambial, esgotando nossas reservas – altas, mas vulneráveis a ataques especulativos.
 
Num momento de recessão, como o que vivemos, seria importante ter uma política fiscal ativa, isto é, ampliar os gastos públicos para aumentar a demanda agregada, o investimento e o emprego. Não podemos fazer isso porque significaria fazer déficit fiscal, ou eliminar o superávit primário (como se fez em 2014), o que, de novo, nos exporia a ataques especulativos desencadeados por desclassificação das agências de risco e à propaganda histérica da mídia entreguista acusando o Governo de descontrole fiscal. Em uma palavra, não temos real autonomia na macroeconomia no curto prazo.
 
Ao lado dessas questões geoeconômicas, temos a geopolítica. Qualquer pessoa familiarizada com a estratégia americana de dominação no mundo sabe que sua prioridade é impedir a emergência de um novo rival em escala global como foi a União Soviética. A Rússia, mesmo na situação de potência nuclear de primeira linha, foi encarada durante algum tempo, depois do fim da União Soviética, como apenas uma potência regional. De qualquer modo, a fim de contê-la, foi submetida a um verdadeiro cerco da OTAN, porém longe de suas fronteiras, com a incorporação de nada menos que 12 países do Leste da Europa. Esse processo parou na Ucrânia e na Geórgia.
 
É que nenhuma dessas incorporações correspondeu a países fronteiriços da Rússia, exceto os pequenos países bálticos, sem maior importância estratégica. É justamente aí que se cruza a linha vermelha. Segundo a insuspeita revista norte-americana Foreign Affairs, a Rússia deu a entender à OTAN, várias vezes, que não toleraria uma força hostil nas suas costas, seja na Geórgia, seja na Ucrânia, países com que faz fronteira. A OTAN não apenas insistiu em avançar sobre a Ucrânia como, mediante articulações diretas do Departamento de Estado e da CIA, derrubou o legítimo governo ucraniano para permitir que um novo governo aderisse a ela e à União Europeia.
 
A Rússia respondeu com a habilidosa incorporação da Crimeia, um porto estratégico para ela, ancorada na vontade popular da península. Os EUA reagiram com sanções. Os russos tem o suporte dos descendentes russos e russófilos do Leste da Ucrania. O país está em guerra civil. Não se sabe exatamente que tipo de proposta Merckel e Hollande levaram a Putin, mas o fato óbvio é que aos EUA não interessa um acordo, já que seu objetivo estratégico é atrair a Rússia para uma guerra na Ucrânia de forma a esgotá-la economicamente e eliminá-la como um rival de escala global.
 
É nesse contexto geoeconômico que estamos nós. Talvez alguém se esqueça, mas somos BRICS. E BRICS significa uma aproximação brasileira com o inimigo estratégico central dos EUA, a Rússia. Nos mesmos BRICS está a China, que já se posicionou como aliado estratégico da Rússia. A Índia faz um jogo dúbio, enquanto a África do Sul não conta muito. Nós somos o risco mais imediato. Embora não tenhamos nenhum interesse direto na crise da Ucrânia, os americanos podem querer exigir lealdade de nós num eventual conflito com a Rússia. Infelizmente, muitos brasileiros já estão fazendo esse jogo.
 
O que fazer? Embora haja pessoas pouco patriotas, como os dirigentes da FIESP, que acham que nosso futuro se encontra em relações mais próximas com Estados Unidos e Europa Ocidental, através de tratados de livre comércio, não é difícil demonstrar que isso seria simplesmente suicídio do ponto de vista econômico. Nossa indústria não tem nenhum condição de competir com empresas europeias e americanas, as primeiras num ambiente de deflação. Já estamos com um cavalar déficit comercial com os EUA e Europa. EUA e Europa estão empenhados sobretudo em ampliar exportações, e não aumentar importações. Isso é essencial na sua estratégia de retomada. Abrir nosso mercado para eles num acordo de livre comércio seria condenar à morte nossa indústria, em especial a indústria de bens de capital.
 
Se as pessoas refletissem com mais objetividade econômica e menos ideologia veriam que não temos nenhuma alternativa real fora do aprofundamento de nossas relações econômicas dentro dos BRICS e da Unasul. É o que nos impõe a geoeconomia a despeito da geopolítica. Os BRICS, e principalmente a China, que puxa a Ásia como única região de alto crescimento do mundo, tem um tremendo potencial de financiamento, de integração produtiva e de mercado – tal como expus no artigo anterior anunciando o Projeto Transul. Já os demais países da UNASUL tem grande potencial de mercado de bens de capital (em parte já é), principalmente se o Projeto Transul estender-se a eles, como espero.
 
É claro que os EUA não gostariam do Projeto Transul, como não gostam de nada que represente um embaraço à expansão de seus investimentos num momento de crise de oportunidades da economia real dos países centrais, e num momento em que preparam a guerra contra a Rússia. Paciência. Temos que buscar nosso destino, mesmo sabendo que, afirmando seus próprios interesses, os EUA concorrerão para nos desestabilizar dentro de nossa crise interna, usando o pretexto da corrupção – como fizeram com a Líbia, o Egito e o Yemen. Entendo que não devemos tê-los como rivais, mas como um vizinho perigoso. De qualquer modo, dadas nossas relações históricas, não precisamos de ser inimigos deles.

- J. Carlos de Assis é jornalista, economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional da UEPB.
 
12/02/2015
 
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