O institucional e o seu contrário

01/09/2014
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Independentemente dos resultados que terão as eleições presidenciais de 2014, perca ou ganhe, o projeto do Partido dos Trabalhadores e aliados terá ainda duração; isto porque, a via institucional, enraizada no conceito limitado de democracia, por vezes, denominado de “revolução democrática” ou também de “projeto desenvolvimentista”, ganhou adeptos em todas as classes sociais e, qualquer governo que venha a ter o Brasil, será obrigado a manter, a assistência aos mais pobres e as regalias aos mais ricos que investem na produção ou especulam financeiramente.

Por sua vez, o “modo petista de governar” não é uma aventura espontânea, muito pelo contrário, (mesmo com alguns desvios), tem consistência e seriedade moralizadora que as elites dominantes nunca gozaram alcançar. Fundamenta-se esse aprendizado em longos, profundos e acalorados debates, iniciados nos núcleos de base do passado, na participação popular das reuniões do orçamento participativo, organizado pelas primeiras gestões do poder executivo; estudos e intercâmbios feitos pelas instâncias superiores do partido com experiências internacionais etc. e, principalmente, no desejo de ter um Estado instrumentalizado, mesmo que isto custe a professores, policiais, aposentados e outros, a perda de direitos adquiridos, não destituídos até então porque parte das forças ora no governo, atuavam como ferrenhas oposições ao governo neoliberal.

Todo esse processo foi capaz de reunir, ao longo de três décadas, as melhores energias populares e intelectuais da classe trabalhadora. À frente, as melhores cabeças do sujeito coletivo que costumeiramente se chamou de “esquerda brasileira”, formada por lideranças de diversas forças sociais e um profundo consenso em torno da estratégia de chegar à conquista da presidência da república. Tal intento foi ainda mais facilitado pelas virtudes individuais de Luiz Inácio Lula da Silva, uma unanimidade, com exceção daqueles que, por princípio de classe, se mantiveram na defesa da continuidade do projeto neoliberal ou outras forças que condicionaram o apoio e a participação, mas que em seguida romperam, sem contudo abrirem outras perspectivas inovadoras na luta de classes.

O consenso político que permitiu reunir um espectro amplo de forças, algumas de tradição antagônica, foi ajudado pelas décadas de estagnação econômica e social, fruto da crônica e subordinada dependência brasileira às principais potências capitalistas do mundo. Essas mesmas potências impuseram e transplantaram para cá durante décadas as suas diretrizes neoliberais, os programas de seus interesses e não os nossos, conforme bem interpretou Florestan Fernandes, em sua época, que “boa parte dos modelos econômicos transplantados não tinham por meta criar processos econômicos de desenvolvimento interno, análogos aos que eram produzidos pela integração das economias centrais”.1 E, além disso, ao contrário do que ocorreu com as burguesias de outros lugares, que no passado criaram as suas próprias instituições e somente usaram o Estado para os arranjos políticos mais complicados; no Brasil, a burguesia sempre convergiu para o Estado usado como um aparelho de unificação dos interesses da classe dominante, sem que ela tivesse a necessidade de fortalecer autonomamente as suas entidades e partidos políticos.

A engenharia histórica de ter o Estado como aparelho político não foi modificada quando o PT chegou com uma nova articulação de forças ao governo; ao contrário, a classe dominante, mesmo vendo a maioria das entidades da classe trabalhadora e dos movimentos populares aproximarem-se do poder, não se intimidou nem tampouco forçou uma oposição sanguinária, como ocorreu, por exemplo, na Venezuela; apenas tomou o cuidado de ocupar os assentos que mais lhe interessava e seguiu viagem no mesmo barco. Para citar um exemplo, podemos tomar como referência a pujança do agronegócio, carro chefe das exportações de commodities, que por tradição deveria ser oposição ao governo, mas não, tomou como instrumento de articulação das entidades de classe o Ministério da Agricultura e, com ele, implementou todas as medidas que eram e são do interesse do capital.

O Partido dos Trabalhadores compreendeu pela experiência das lutas, negociações e administrações particulares que, se estivesse do outro lado, poderia cumprir com algumas das obrigações que a burguesia havia deixado de cumprir em termos de melhorias econômicas e sociais. Uma vez no governo, as “dívidas históricas” se apresentaram como alavancas para impulsionar algumas ações. Dessa maneira, pela índole humanitária da força governante, o Estado passou a ser o instrumento da assistência, das políticas compensatórias e dos negócios.

Armado de tais propósitos, o governo nascente em 2003, vendo que a burguesia não havia cumprido com o seu papel histórico, como ocorrera em outros países, convocou-a para sustentar os programas do “crescimento econômico”, de “combate à fome”; da “distribuição de renda”, da “geração de emprego”; do “melhoramento da prestação de serviços” etc.; portanto, nada que afetasse os interesses dos capitalistas e, aquela que deveria ser considerada como a força inimiga, por ter condenado o país à estagnação, econômica, política, social, cultural e educacional, virou o seu contrário, tornando-se a maior força aliada para contribuir com o governo, recebendo em troca pelo apoio, ministérios, cargos de destaque e muito dinheiro. Essa pedagogia política reeducou para a institucionalidade, grande parte das forças de esquerda, do movimento sindical e dos movimentos populares da cidade e do campo e confluiu para a formação de uma nova hegemonia entre as diversas forças, com poucas possibilidades para qualquer tipo de oposição.

Se por um lado, até então, o sentimento anti-imperialista era intransferível, começou a ficar sem espaço e sem lugar para ser colocado o descontentamento histórico. O desejo de melhoria de vida baseado em mais investimentos econômicos, mais emprego, mais créditos e financiamentos para todos os negócios, seja para a aquisição de bens, como a casa própria, produtos de consumo etc., encheram os olhos daqueles que passaram a ver equivocadamente, que no capitalismo era possível alcançar uma vida melhor para todos e os cegaram para as mudanças estruturais. Com isso, o sonho anterior de ir sempre rumo ao socialismo, como o final de um pesadelo, com sangue, lutas, manutenção de princípios, coerência ética e moral, também virou no seu contrário, a vez agora era dos acordos, das vantagens e da conciliação. O Estado que antes devia ser tomado pela revolução, desmontado e transformado em poder popular e democrático, de uma eleição para outra, pela esperteza política da vanguarda, foi absorvido pacificamente pelas consciências delicadas e, sem quebrar o consenso nem romper com ninguém, a militância acordou no dia seguinte da vitória eleitoral, apaixonada pela via institucional.

Os programas citados acima como parte da política da “emergência de soluções burguesas” são, conforme a conceituação de Florestan Fernandes, possível de serem efetivados, em certos períodos, mesmo em meio a crises, devido a certos fatores históricos que se combinam, como: a) a presença de países retardatários com potencial de desenvolvimento retido; b) devido ao desenvolvimento do modo de produção capitalista não ser homogêneo em todos os lugares2 e; c) porque, as burguesias também mudam com o tempo e passam a se preocupar mais com o desenvolvimento do que com a simples especulação.

Os três requisitos apontados acima são facilmente percebidos ainda hoje. Somos um país com potencial de desenvolvimento, no entanto, do ponto de vista do capitalismo estamos atrasados em relação às grandes potências econômicas mundiais; os avanços conseguidos, mesmo em tempos de crise se devem ao desenvolvimento não homogêneo; por isso também se explica porque é que as crises não ocorrem com a mesma intensidade ao mesmo tempo em todos os lugares. Por fim, as burguesias também evoluem, vide o que ocorre na agricultura onde, em poucos anos, a figura do latifundiário, violento e atrasado deu lugar ao moderno investidor, sujeito da agricultura comercial que tem no governo as mais diversas garantias de propriedade e de liberdade para realizar negócios rentáveis.

No entanto, as diversas soluções emergenciais, vindas com atraso, que tomaram o lugar da luta pelo socialismo, encaixam-se com justeza no modelo “neo- desenvolvimentista” que satisfaz as forças de direita e a maioria das forças e indivíduos que acreditam na conciliação ou naquilo que defende o filósofo Jürgen Habermas, o consenso que leva à “vontade comum”,3 pela qual, todas as ideias expressas no seio da coletividade são consideradas e, a melhor delas prevalece. Para quem acredita que o capitalismo não é o destino da humanidade e que é preciso atuar sobre as contradições, as ideias também se contradizem, por isso, nem o ufanismo dado pelas melhorias nem a melancolia política podem ser toleradas.

Portanto, não se trata de brigar pelos resultados do percurso feito pelo governo, mas se dar conta e acordar para enfrentar as perspectivas porque elas não são nada animadoras. Por que se pode dizer isto? Pelo cenário de como as forças estão colocadas. Se com a chegada do PT ao governo as diversas forças de esquerda, centrais sindicais e movimentos populares reduziram o potencial e a criatividade de suas táticas; relaxaram na formulação das ideias, enfraqueceram e desconstruíram a estrutura orgânica, como também, abandonaram a formação política, a disciplina consciente e muitos valores éticos, a direita que, embora não conseguindo fazer oposição política consistente e se somou no plano econômico para ganhar dinheiro, não se deteriorou, dispersou ou desapareceu. Na medida em que a disputa eleitoral tornou-se a tática única e, manter-se no governo é a estratégia maior, qualquer um dos lados pode vir a ganhar e governar. Quando a direita lograr tal intento, encontrará uma esquerda mais fraca, menos unida e menos capaz.

A luta de classes e as ações institucionais

As diversas táticas de natureza reivindicatória, utilizadas dentro da ordem capitalista podem funcionar nos períodos das supostas aberturas democráticas, como mediações para o acúmulo de forças, pois se trata da necessidade real de obter determinadas conquistas democráticas; no entanto, o cuidado que se deve ter é o de perceber se elas, quando forjam a conciliação, não desviam as energias do verdadeiro sentido de combate às forças contrárias. Será que repetir constantemente a mesma tática, com o mesmo conteúdo, não estamos fazendo da política eleitoral um mero espetáculo com velhas encenações que abrem e fecham as cortinas em cada ato, mas induzem a plateia a apenas divertir-se sem nunca se preocupar em produzir uma reação?

Os equívocos em busca das poucas melhorias podem levar a paralisia o movimento social e político e, rapidamente enfraquecer a luta de classes. Marx enfrentou essa polêmica no Programa de Gotha, quando Lassale propôs que o Partido Operário deveria criar cooperativas de produção com a ajuda do Estado. Marx então respondeu:

“Depois da ‘lei de Bronze do salário’ de Lassale, vem a panaceia do profeta. E se ‘prepara o caminho’ de um modo digno. A luta de classes existente é substituída por uma frase de jornalista ‘o problema social’, para ‘cuja solução’ se ‘prepara o caminho’. A ‘Organização socialista do trabalho’ não resulta do processo revolucionário de transformação da sociedade, mas sim da ‘ajuda do Estado’”.4

Fica claro que naquela época os mesmos dilemas permeavam os debates. Os dois

processos capitalista e socialista se cruzam, ao mesmo tempo que confundem as ideias das forças que estão em movimento. O processo de continuação do capitalismo tem na pacificação da luta de classes e no Estado, as referências de dominação, sejam elas vindas pelo incentivo à produção ou pela conciliação para o aumento do salário. O outro proceso é o da construção da alternativa revolucionária, da transformação da sociedade que, conforme Marx, não pode ser feita com a ajuda do Estado. Como a linha que diferencia uma da outra é muito tênue, é natural que em certos períodos, na ansiedade de obter algumas conquistas materiais, as forças em luta substituam a radicalidade pela tolerância e, aqueles que outrora apareciam como inimigos apresentem-se como fieis aliados. Daí que, facilmente se confunde a visão da “organização socialista”, não pelo processo revolucionário, mas pela “ajuda do Estado”. É muito do que vemos nas posições políticas de dirigentes que aceitam seguir o modelo brasileiro atual; sem deixar de fazer do socialismo uma “frase jornalística”, acham que não se pode mais fazer política sem estar no governo e sem o aparelho do Estado em suas mãos.

Pelas experiências revolucionárias do passado e pelas três décadas de organização popular e política no Brasil, deveríamos concluir que, quanto mais as relações oficiais mantidas com o Estado aumentam, menos autonomia os movimentos sociais mantêm. É corriqueira a sensação, principalmente nas eleições locais e estaduais, que logo após a uma vitória, se acorde no dia seguinte vendo que não passou de um engano ou de uma grande derrota.

A autonomia do governo faz com que as forças sociais organizadas tenham a liberdade de praticar ações que vão, desde a solidariedade até a desobediência civil, quando se propuserem a enfrentar as leis impostas que sonegam os direitos sociais e políticos dos trabalhadores e das massas populares; isso já consta da tese do “direito à rebelião” de John Locke no início da formação do Estado Moderno. No entanto, no intuito de polemizar as discussões usam inadvertidamente o pensamento de Antônio Gramsci, quando propõe a organizar a contra-hegemonia, ao invés de entrar na hegemonia da classe dominante. Buscam entrar na ordem para, com o auxílio das forças dominantes fazer as mudanças necessárias, sem perceber que as forças dominadas servem apenas de auxílio para a manutenção do projeto dominante. Neste sentido, as forças que deveriam combater o Estado capitalista, atolam-se cada vez mais no pântano das disputas eleitorais, propondo-se ganhar financiados pelo dinheiro das empresas e governar para todos.

Os trabalhadores nada têm a ver nem são responsáveis pelo bom funcionamento do Estado capitalista. A função da classe trabalhadora e das massas populares é organizar- se para enfrentar a classe dominante e desencadear o processo revolucionário que leve à transformação da sociedade e do Estado. Mesmo quando muitos defendem que para chegarmos ao socialismo é preciso desenvolver as forças produtivas juntamente com as relações sociais de produção, temos que afirmar que, o processo de desenvolvimento do capitalismo, em nosso tempo, não precisa das ideias nem do empenho dos movimentos populares e da organização dos trabalhadores para que ele alcance seu intento. O que temos visto é que, esse alinhamento ao governo em favor do desenvolvimentismo, tem enfraquecido ainda mais os movimentos de contestação, mas que agora santificam os instrumentos que antes amaldiçoavam.

É importante reconhecer que há um movimento dialético também na política, e isto deve nos mostrar que não podemos nos responsabilizar pela ordem jurídica e moral do capitalismo, nem imaginar que entrando nela possamos lutar contra ela. Seria o mesmo que entrar mar adentro para destruir o barco no qual estamos a bordo. Vemos que as ideias e as práticas equivocadas têm levado à subordinação às iniciativas da contrarrevolução, em troca de benefícios parciais que a ordem burguesa proporciona. Assim, rapidamente, as organizações perdem a autonomia, pois tornam-se dependentes dos recursos públicos. Invertem a pressão por aquilo que é vital pelo esforço de apoiar e manter no governo as forças que os domina. A ilusão de que o governo é um eterno aliado para alcançar conquistas pontuais, leva a ter tolerância quando o mesmo governo não cumpre com os acordos firmados e leva ao enfraquecimento político e à diminuição da intensidade dos conflitos e da luta de classes.

As disputas eleitorais

Em qualquer época, o grande perigo da organização das massas populares ou da organização sindical é, nos períodos de dificuldades de acúmulo de forças, fecharem-se em si mesmas, caírem no corporativismo ou buscarem saídas fáceis pela conciliação. Não se trata de ter como obrigação permanente que lutar pela conquista do poder ou pela transformação da sociedade a qualquer custo, mas ignorar que as soluções definitivas estão além da luta por melhorias econômicas ou acreditar que o processo de transformação da sociedade passa pelas disputas eleitorais apenas, é um grande equívoco.

Antônio Gramsci, em 1919, ao escrever sobre “A conquista do Estado”, afirmou:
“O erro mais grave do movimento socialista foi semelhante ao dos sindicalistas. Participando da atividade geral da sociedade humana no Estado, os socialistas esqueceram que a sua posição deveria manter-se essencialmente crítica, contrária à ordem existente. Deixaram-se absorver pela realidade, em vez de dominá-la”.5

Poderíamos ponderar que a política sindical ou o movimento voltado para as práticas reivindicatórias, diferem das práticas e da coerência política que deve ter o movimento socialista. No entanto, mesmo as pautas sindicais que as lutas levam a obter conquistas pontuais por um período, com o tempo, podem se tornar fórmulas inofensivas. “A dominação da realidade”, poderíamos assegurar que seria a capacidade de definir em cada época, pela organização política, as táticas corretas que não permitem a perda da capacidade crítica, nem a cooptação pelos instrumentos que se deve combater. Segundo o mesmo Antônio Gramsci, a história é um contínuo fazer-se e, por isto, ela é, ao mesmo tempo, “liberdade e necessidade”, e as instituições que através das atividades a história se encarna, surgem e se mantém porque possuem uma tarefa e uma missão a realizar.6

Temos no Brasil a experiência de três décadas de disputas eleitorais praticadas com entidades que surgiram e se desenvolveram realizando tarefas também de contraposição à ordem dominante, mas esqueceram essa missão. Ao esquecer esta missão, deixou-se de acumular forças. Com as mudanças objetivas, muitas destas entidades que surgiram para responder a certas necessidades, debilitaram-se e passaram a fazer mudanças subjetivas em si mesmas e a não responder mais as perguntas da realidade do tempo presente. Na incapacidade de recolocarem as forças em ações ofensivas, as entidades, na sua grande maioria, fizeram dois movimentos restritivos: primeiro, retrocederam ao corporativismo e, segundo, optaram prioritariamente pelas disputas eleitorais, deixando-se absorver pela única tática eleitoral, que aceita, após realizado o pleito, a entregar o destino político do país, a algumas dezenas de representantes.

Neste sentido, o parlamento na situação em que o temos no Brasil, integrado por partidos que aparelham entidades de classe e movimentos populares, é um instrumento defensivo, isto porque, por dentro dele não é possível evoluir na formulação de novas táticas, nem defender abertamente o conteúdo da causa revolucionária. Ele, acima de tudo, obriga a cuidar da própria sobrevivência dos seus membros que são obrigados a fazer composições incabíveis, contradizendo todas as expectativas.

Uma explicação esclarecedora sobre a situação do parlamento no tempo presente, encontramos em Mészáros. O autor após dizer que o parlamento, em particular, tem sido objeto de uma crítica muito justificada, e até hoje não há teoria socialista satisfatória sobre o que fazer com ele, afirma: “Ele permite iludir as massas e leva a iludir-se ao iludi-las.”7

Não sabemos o que fazer com ele, porque o parlamento e o parlamentar na correlação de forças atuais, além de estarem comprometidos com a ordem, gozam de extremada autonomia dos partidos, dos cidadãos e militantes. São eles que controlam e dirigem os partidos. Podemos considerá-los, individualmente, como entidades ou aparelhos particulares do sujeito eleito. O parlamentar goza de autonomia porque tem um programa próprio a defender. Forma seus comitês de articulação nas campanhas eleitorais; monta uma infraestrutura de transporte e comunicação, às vezes superior à dos movimentos sociais e diretórios municipais; possui recursos financeiros regulares; tem para si um grupo de militantes liberados; produz o próprio jornal de seu mandato e organiza a própria agenda de atividades. Mas o agravante maior está em que, após eleito, as decisões que toma, os projetos que apresenta e ajuda a aprovar, não passam pela discussão daqueles que considera ser a sua base.

As eleições, no conjunto das táticas, poderiam ser um instrumento válido se a luta de classes e populares estivesse à frente dele. Por esta razão, a centralidade da crítica não deve ser se o governo atual faz muito ou pouco; se é bom ou ruim, porque, em certos aspectos, mesmo querendo não conseguiria fazer; mas é à esquerda que devemos criticar, porque ela, por estar completamente envolvida e submetida a agenda institucional, fica cada vez pior.

O problema fica maior ainda quando o movimento social perde a sua autonomia e começa a depender da disputa parlamentar para obter evidência ou sustentação financeira para alguns de seus membros. Ou ainda, anima-se enquanto força, com a via da “transformação pacífica” e generaliza a disputa eleitoral em todos os níveis e em todos os lugares, o tempo inteiro. Ao deslocar os esforços de sua militância e empenhar a estrutura física e financeira para as disputas eleitorais e não para a luta de classes, não acumula forças e penaliza ainda mais a base que se ilude com a ilusão das lideranças. Os movimentos sociais embarcam, de alguma maneira, na política aparelhadora, quando lançam pelos partidos os seus próprios militantes a cargos eletivos que, quando eleitos, passam a comprometer mais o movimento do que o partido e a ocupar o tempo dos debates internos para discutirem questões secundárias, transformando assim as análises de conjuntura em relatos do que os candidatos dizem ou as medidas que o governo toma, mas nunca para compreender as contradições do próprio movimento.

Por sua vez, de acordo como observamos, é importante perceber que, ao mesmo tempo em que o capital reinventa as formas de acumulação, a sociedade civil se modifica e o Estado ganha maior dinamicidade e desempenha um papel de exagerada influência sobre a autonomia dos movimentos populares e dos partidos políticos. Isto deve instigar a saber qual é o lugar das forças cujo papel é lutar pela transformação da sociedade mas se envolvem unicamente com a tática eleitoral há décadas? Ao não perceberem corretamente a substância do processo, nem compreenderem o conteúdo alienante da tática eleitoral, as forças contra-hegemônicas, desarticuladas e deslocadas de seus objetivos, iludidas de que assim estão incluídas nas disputas, estão perdendo a identidade política, ficando de fora das verdadeiras dos processos e para trás do seu próprio tempo histórico. O papel das forças contra-hegemônicas é escolher e estabelecer a centralidade das batalhas e preparar-se para realizá-las com a diversificação das formas de luta, envolvendo as forças sociais que estão próximas das classes, categorias e dos movimentos sociais.

Para concluir podemos tomar como referência a carta de Marx e Engels escrita em março de 1850, como mensagem à direção central da Liga dos comunistas, qualificando o papel e a substância das ações que deveriam ser desencadeadas:

“Levar ao extremo as propostas dos democratas, os quais não se comportarão em todo o caso como revolucionários, mas como simples reformistas, e transformá-las em ataques diretos contra a propriedade privada; por exemplo, se os pequeno- burgueses propuserem comprar as ferrovias e as fábricas, têm os trabalhadores de exigir que essas ferrovias e fábricas, como propriedade dos reacionários, sejam confiscados simplesmente e sem indenização pelo Estado. Se os democratas propuserem o imposto proporcional, os trabalhadores exigirão o progressivo; se os próprios democratas avançarem a proposta de um [imposto] progressivo moderado, os trabalhadores insistirão num imposto cujas taxas subam tão depressa que o grande capital seja com isso arruinado; se os democratas exigirem a regularização da dívida pública, os trabalhadores exigirão a bancarrota do Estado. As reivindicações dos trabalhadores terão, pois, de se orientar por toda a parte segundo as concessões e medidas dos democratas”.8

Fica claro que as tarefas concretas surgem das contradições concretas. Logo, seguindo a formulação acima, se o capital e o Estado oferecem algo, a luta deve exigir sempre mais, fazendo com que as suas próprias proposições sejam contradições voltadas contra eles mesmos. Seja no campo da distribuição de renda, moradia, terra etc.

Para além disso, três considerações práticas parecem ser fundamentais levar em conta neste momento em que se desencadeia um novo processo eleitoral: primeira; ligar- se à força do conflito, expressá-lo claramente com toda a autonomia possível para que a sua presença não deixe dúvidas, mesmo que atualmente impossibilitada, a alternativa revolucionária é a única solução. Segunda, educar-se para as mudanças. Não há como alcançar um objetivo se ele não for assimilado enquanto conteúdo e perspectiva. A formação da consciência exige exercícios: práticos, intelectuais e morais. Terceira, acentuar a autodeterminação do projeto popular e socialista. Este elemento é fundamental para evitar que as mobilizações se tornem exibições teatrais, que ao invés de protestos terminam por apoiar candidatos, ou seja, evitar que o esforço coletivo seja asfixiado por interesses individualistas e projetos mesquinhos.

Mesmo em meio aos dilemas, os movimentos organizados que, de alguma forma são portadores da consciência das massas populares e de setores de classe, devem cumprir o seu papel de inserirem-se e emprestarem o seu aprendizado para ajudar a mobilizar, organizar e conscientizar as forças da sociedade civil que estão céticas e desativadas. Contribuir com o aprendizado organizativo e motivar o surgimento de formas organizativas adaptadas aos meios populares, seja com a juventude ou com a população em geral; criar formas de lutas e de pressão que avancem para além da ideologia do melhorismo. Levar para as forças embriagadas de propagandas eleitoreiras, ideias de otimismo e motivação para as mudanças das quais todos devem participar o tempo todo e não apenas em um dia a cada pleito para depositar o voto.

Agosto de 2014

1 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: Ensaio de interpretação sociológica. 3 ed. Rio de Janeiro: editora Guanabara, 1987, p. 89.

2 Idem p. 224.

3 HABERMAS, Jürgen. O pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2002.

4 MARX, Karl. Crítica Del programa de Gotha. Moscou: Progresso, 1969, p. 26.

5 COUTINHO, Carlos Nelson. Antonio Gramsci. Rio de Janeiro: civilização brasileira, 2004, p.260.

6 Idem, p,260

7 MÉSZÁROS, István. Atualidade histórica da ofensiva socialista. São Paulo: Boitempo, 2010, p.66.

8 MARX e ENGELS. Mensagem do comitê central à liga dos comunistas (março de 1850). In BOGO, Ademar. Teoria da organização política. São Paulo: expressão popular, 2013, p. 53.


- Ademar Bogo é escritor e filósofo.

https://www.alainet.org/de/node/102960

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