ALCA e comércio de serviços
17/01/2003
- Opinión
1. ALCA: uma proposta, nenhum compromisso
A adesão do Brasil a ALCA - Área de Livre Comércio das Américas,
acordo internacional proposto pelos Estados Unidos, tem sido objeto de
amplo noticiário e de muitas discussões, tendo merecido especial atenção do
governo Fernando Henrique Cardoso, que, de vários modos, manifestou o
desejo de levar o Brasil a aderir a essa proposta. Um ponto, entretanto,
deve ficar bem claro desde logo: as manifestações de membros do governo
brasileiro favoráveis a ALCA não implicam qualquer compromisso, jurídico ou
moral, pois o comprometimento do Brasil só poderá resultar de um processo
de negociações formais que culmine com a aprovação pelo Congresso Nacional.
A vontade de aderir a ALCA, eventualmente manifestada por membros do
governo brasileiro, terá refletido apenas uma opinião pessoal, que não se
confunde com decisões de órgãos do Estado e que, por isso mesmo, não
poderia acarretar e não acarretou qualquer compromisso a que o Brasil tenha
ficado vinculado. É importante esclarecer desde logo esse ponto, para
deixar fora de dúvida que, se assim o desejarem, os atuais governantes
brasileiros poderão, inclusive, considerar encerradas as discussões sobre
eventual adesão do Brasil à ALCA, sem que isso represente um desrespeito a
compromissos assumidos pelo governo anterior ou uma ofensa às regras
jurídicas e de cortesia que regem as relações internacionais.
Não há dúvida de que o tema é importante, não convindo ignorá-lo ou
tratá-lo como assunto de importância secundária, mas o presidente da
República deve estar bem informado de que só a ele cabe decidir, com
absoluta liberdade, que tratamento dar ao assunto. Parece de toda a
conveniência que se proceda a um exame cuidadoso e objetivo dos termos da
proposta da ALCA e de suas principais conseqüências, positivas e negativas,
deixando claro que a decisão do presidente poderá ser no sentido de
prosseguir nas discussões ou, ao contrário disso, no sentido de considerar
que as conseqüências danosas da adesão, já identificáveis, recomendam que
não se dê prosseguimento ao assunto, eliminando-se a hipótese de adesão do
Brasil a ALCA.
II. Necessidade de aprovação pelo Congresso Nacional
É tempo de restabelecer no Brasil o hábito do respeito à Constituição
e isso tem muito a ver com a celebração de acordos internacionais. Com
efeito, durante o governo Fernando Henrique Cardoso tornou-se comum a
celebração de acordos internacionais com a participação exclusiva de
membros do Poder Executivo -ou do Ministério de Relações Exteriores ou da
chamada "equipe econômica" -, como ficou muito evidente com a celebração de
vários acordos com o Fundo Monetário Internacional, onerando o Brasil
direta e indiretamente, como se verifica, por exemplo, pelo significativo
crescimento da dívida externa brasileira e do item "pagamento de juros".
Tudo isso foi discutido e decidido exclusivamente por membros do
Poder Executivo, só se apresentando ao Congresso Nacional o fato consumado.
Os termos da negociação e suas conclusões ficaram praticamente secretos e o
Parlamento ficou sabendo do assunto pelos jornais, ou às vezes por ter
recebido um simples comunicado do Executivo, só se tornando de conhecimento
geral aquilo que os participantes das negociações quiseram divulgar. E, no
entanto, os compromissos foram assumidos em nome do povo brasileiro, que,
no fim de tudo, teve que arcar com os ônus.
No entanto, diz a Constituição com toda a clareza:
"Artigo 49- É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
1. resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos
internacionais
2. que acarretem encargos ou compromisso gravosos ao patrimônio
nacional;"
É bem verdade que também merece crítica a passividade do Congresso
Nacional, que aceitou sem reação a anulação de sua competência. Entretanto,
é necessário corrigir essa distorção inconstitucional. O Executivo tem
competência legal para decidir se inicia ou não as negociações, mas uma vez
decidido que é oportuno negociar seria de toda a conveniência que já nesse
período houvesse a participação de membros do Congresso nacional, na
condição de observadores, para que mais tarde, se o assunto chegar a ser
objeto de deliberação pelo Congresso, eles possam dar aos membros do
Parlamento informações precisas sobre os termos das negociações. De
qualquer modo, com ou sem essa participação de congressistas na fase das
negociações, é fundamental respeitar a Constituição e submeter à
deliberação do Congresso Nacional qualquer proposta de acordo internacional
que acarrete encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.
No caso da ALCA é mais do que óbvia a obrigação de obter a
concordância do Congresso Nacional, pois, entre outras coisas, por sua
extraordinária abrangência o acordo da ALCA afetará seriamente muitos
setores da vida nacional, acarretando, inclusive, a necessidade de criar e
reaparelhar organismos públicos para aplicação e controle dos preceitos da
ALCA. Isso sem falar nas graves conseqüências sociais e econômicas, que
certamente resultarão da aplicação das regras da ALCA e que demandarão
providências onerosas, visando dar apoio aos setores mais atingidos.
Para deixar fora de qualquer dúvida que a ALCA acarretará encargos e
compromissos gravosos ao patrimônio nacional, basta lembrar o que dispõe a
própria minuta da ALCA, no capítulo sobre Serviços, no item 5 da parte
relativa ao "Tratamento especial e diferenciado': "As partes deverão
disponibilizar os recursos adequados, inclusive os financeiros, na medida
em que seus respectivos recursos e regulamentos assim o permitam, para
poder avançar o ajuste ao processo gradual de liberalização do comércio
hemisférico de serviços". Esse ajuste, como está expressamente reconhecido,
terá um custo social e financeiro, ou seja, acarretará encargos e
compromissos gravosos ao patrimônio nacional.
Assim, pois, o acordo internacional para ingresso do Brasil na ALCA
está entre aqueles que, segundo a Constituição, deverão ser submetidos ao
Congresso Nacional, que tem competência exclusiva para resolver
definitivamente sobre eles. Sem a aprovação pelo Congresso não há decisão
definitiva e o acordo, ainda que contenha a assinatura do presidente da
República, do Ministro das Relações Exteriores e de outros Ministros, não
estará formalmente perfeito e não implicará qualquer obrigação. Por esse
motivo, que é de fundamental importância, é absolutamente necessário que o
Congresso Nacional esteja preparado para a eventualidade de ter de decidir
definitivamente sobre a adesão do Brasil a ALCA. Na defesa de suas
prerrogativas constitucionais, que nos últimos anos não foram levadas a
sério, como o demonstra o número absurdamente elevado de medidas
provisórias, bem como para bem desempenhar suas atribuições, o Congresso
Nacional deverá participar ativamente do exame dos termos do acordo, ao
contrário do que fez nos últimos anos relativamente aos acordos com o Fundo
Monetário Internacional.
Além disso tudo, é muito importante assinalar que durante a fase de
discussão no Congresso Nacional haverá maior publicidade, o povo, no seu
conjunto e pelas organizações e entidades com mais conhecimento do assunto,
poderá ter efetiva participação no controle dos atos do governo e na
decisão a respeito de acordos internacionais que poderão ter conseqüências
muito graves sobre toda a vida nacional. Isso é exigência constitucional,
que mesmo que não tivesse previsão expressa já estaria implícita na
definição do Brasil como Estado Democrático de Direito. Assim, pois, muito
mais do que simples formalidade, o debate da proposta de acordo no
Congresso Nacional é garantia de governo democrático e meio de proteção dos
legítimos interesses do povo.
III. Princípios e normas constitucionais: observância
obrigatória
Uma das características do novo constitucionalismo, que começou a ser
definido na seqüência da proclamação da Declaração Universal de Direitos
Humanos, em 1948, é o reconhecimento do caráter obrigatório dos princípios
e normas constantes da Constituição. Corrigindo uma distorção introduzida
pelo constitucionalismo liberal-burguês, que dava a tais princípios e
normas o caráter em
obras teóricas de autores consagrados e em decisões jurisprudenciais de
forte repercussão, considera que todos os princípios e normas
constitucionais são vinculantes e imediatamente aplicáveis.
Assim sendo, é indispensável ter em conta, sobretudo, alguns princípios e normas da
Constituição brasileira que poderão ser afetados por um acordo internacional de tamanha
amplitude e com enorme repercussão na vida social, como é o acordo da ALCA.
Evidentemente, a verificação das limitações constitucionais interessa à análise de todo o
acordo da ALCA, havendo, entretanto, alguns pontos que interessam mais especificamente ao
exame do Capítulo sobre Serviços. Vejamos alguns dos princípios e normas que mais poderão
ser afetados, para em seguida promover à análise de pontos específicos.
Antes de tudo, por sua extraordinária importância para a
independência dos povos, a liberdade e a democracia, deve ser ressaltado o
princípio da soberania, com seus correlatos. Logo no artigo lo., ao
enunciar os fundamentos da República, a Constituição brasileira faz
expressa referência, em primeiro lugar, à "soberania". Mais adiante, no
artigo 170, ao enunciar os "Princípios da Ordem Econômica", é apontada, no
inciso 1, a "soberania nacional" como um desses princípios. Reforçando
essas afirmações, que já são suficientes para que fique bem claro que será
inconstitucional qualquer acordo que implique, direta ou indiretamente, a
redução da soberania nacional, o artigo 40 da Constituição, no qual são
enumerados os "Princípios que regem as relações internacionais do Brasil",
ressalta, em primeiro lugar, a "independência nacional".
É preciso fazer uma diferenciação entre os acordos internacionais que
implicam a submissão do Brasil a determinadas regras constantes de
tratados, pactos, convenções e acordos internacionais, mas sem obrigar os
órgãos do Poder Público a tomarem decisões contrariando algum interesse
público nacional relevante, e os acordos internacionais que, em sentido
contrário, entregam uma parcela do governo do País a entidades externas. No
primeiro caso não há inconstitucionalidade, tanto pelo alcance limitado das
restrições livremente aceitas, quanto pela circunstância de que, estando
inteiramente preservado o direito de autodeterminação, o Brasil poderá
denunciar o tratado ou acordo, retirando-se dele quando isso for necessário
ou conveniente para a preservação da soberania.
Já no segundo caso -a entrega de uma parcela do governo a entidade
externa- ocorre ofensa à Constituição por dois motivos. Um deles é que as
funções de governo são exercidas por delegação do povo, como está expresso
no parágrafo primeiro do artigo lo. da Constituição, segundo o qual "todo o
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente". Não pode, assim, o governante transferir a terceiro um poder
que só exerce por delegação, mas que pertence ao povo. Outro motivo é que a
transferência de funções de governo a entidade externa poderá dar a esta a
possibilidade de criar situações sociais, políticas e econômicas que tornem
o povo dependente daquela entidade externa em caráter permanente. Este,
aliás, é um ponto fundamental, que interessa diretamente à área de
Serviços: será sempre necessário verificar se, com a aparência de liberdade
e reciprocidade, não estará sendo aberto o caminho para a sufocação de um
setor nacional, com a conseqüente submissão, em caráter permanente, a um
prestador externo de serviços.
Outro princípio constitucional que deve ser lembrado neste momento é
o da "dignidade da pessoa humana", que também é expressamente enunciado no
artigo lo. da Constituição. Uma demonstração eloqüente das graves
conseqüências que o desrespeito a esse princípio pode acarretar está muito
evidente no aumento do desemprego, da marginalização, das discriminações
econômicas e sociais, resultantes da submissão do Brasil ás "metas do Fundo
Monetário lnternacional - FMI". O mais escandaloso efeito dessa entrega do
governo ao FMI foi à obsessão pelo pagamento regular dos juros da dívida
externa, uma das metas do FMI, às custas da saúde do povo brasileiro,
tendo-se chegado ao absurdo de promover a redução dos gastos públicos
mediante a dispensa de agentes de vigilância sanitária que atuavam no Rio
de Janeiro, num momento em que os próprios órgãos do governo federal já
tinham constatado a existência de uma epidemia de dengue naquela região. Um
serviço essencial, de necessidade mais do que óbvia, foi desestruturado e
deixou de ser prestado ao povo para atender às determinações dos
governantes externos. Esse é um claro exemplo de acordo ofensivo à
soberania e á dignidade da pessoa humana.
Além disso, é também importante lembrar que a Constituição determina
a adoção de políticas públicas que, em muitos casos, implicam a concessão
de tratamento privilegiado a certas áreas ou a determinados tipos de
atividades, visando o benefício geral do povo. Pode-se mesmo dizer que
muito antes de entrar na moda a expressão "discriminação positiva" o Brasil
já adotava essa prática, inspirado na busca de correção de injustiças
sociais ou de situações de marginalização. Assim, por exemplo, a obrigação
legal de assegurar que pelo menos dois terços dos postos de trabalho numa
empresa fossem ocupados por brasileiro não teve inspiração xenófoba nem
expressava resistência a qualquer estrangeiro mas, pura e simplesmente,
decorreu do reconhecimento de assegurar um mínimo de possibilidade de vida
digna e integração social ao trabalhador brasileiro.
Aliás, nesse mesmo sentido e já considerando possíveis conflitos com
a ALCA no Capitulo de Serviços, deve-se lembrar que a Constituição
brasileira enumera no artigo 30. os "Objetivos Fundamentais da República
Federativa do Brasil", entre os quais se incluem, segundo o inciso III,
"erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
e regionais". É óbvio que para atingir esses objetivos, que são da máxima
relevância para a construção de uma sociedade justa e democrática, será
necessária a concessão de benefícios especiais, dando tratamento
privilegiado a regiões e a setores sociais mais carentes. Não se poderá
admitir que, em nome da "liberdade no comércio e na venda de serviços" esse
tratamento diferenciado, previsto na Constituição, não possa ser adotado,
ficando o Brasil obrigado a garantir àqueles que só vêm à busca de mais
lucro os mesmos benefícios que dispensar aos brasileiros que estão à espera
de algum apoio para fugir de situações humilhantes e para preservar sua
dignidade humana.
Ainda em termos de exigências constitucionais, e neste caso lembrando
um dispositivo que será especialmente importante na consideração do
Capítulo de Serviços da ALCA, é necessário lembrar com bastante ênfase o
que ficou estabelecido no parágrafo único do artigo 30. da Constituição,
que se refere aos Objetivos Fundamentais da República:
"Parágrafo único - A República Federativa do Brasil buscará a
integração econômica, política, social e cultural dos povos da América
Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações."
A busca de integração latino-americana, pressupondo um tratamento
diferenciado em relação aos outros povos do mundo, é determinação
constitucional, é norma jurídica de máxima eficácia, vinculante, portanto,
não podendo ser ignorada, suprimida ou contrariada por qualquer acordo
internacional, devendo-se assinalar que tal determinação faz parte do
objetivo mais amplo de promoção da dignidade humana. Assim, portanto, será
contrário à Constituição pretender que uma orientação mais favorável ao
relacionamento internacional, adotada no âmbito da integração da América
Latina, tenha aplicação igual a outros Estados, situados fora desse âmbito
regional, pois se assim fosse estaria sendo anulado o esforço de
integração, exigido pela Constituição.
Aí está, portanto, um conjunto de princípios e normas constitucionais
que o acordo da ALCA não poderá contrariar. Em caso de conflito insuperável
prevalecem as determinações constitucionais, mesmo que isso tenha como
conseqüência final tornar inviável o acordo da ALCA.
IV. Capítulo sobre Serviços: incompatibilidades e dúvidas
1. Noção de serviço: solidariedade social ou comércio
Antes de tudo, há um ponto fundamental em que fica evidente a
divergência entre a concepção de trabalho acolhida pela Constituição
brasileira e a noção de serviço que embasa a proposta da ALCA no Capitulo
de Serviços. Sendo expressão de um trabalho humano, a atividade
classificada como serviço deve estar subordinada, segundo a Constituição,
aos objetivos da promoção da dignidade humana e da valorização social do
trabalho. Isso quer dizer que muitas vezes o serviço deverá ser prestado em
condições anti-econômicas, procurando assegurar ao trabalhador que o
executa o exercício da atividade em condições dignas e, ao mesmo tempo,
buscando proporcionar o serviço a pessoas que necessitam dele e não têm a
possibilidade de pagar o seu custo, ou apenas podem pagar uma parte.
Quando houver interesse social relevante o Brasil deverá assegurar
condições mais favoráveis aos prestadores de serviços, sejam eles nacionais
ou estrangeiros, como já vem ocorrendo na área de saúde, de educação, de
assessoria a movimentos sociais e em outras áreas. É oportuno lembrar,
aliás, que nos últimos anos cresceu muito a prestação de serviços por
Organizações Não-Governamentais, que utilizam trabalho voluntário mas
também, em muitas situações, trabalho remunerado. Muitos desses prestadores
de serviços suprem deficiências do Estado e por isso é razoável que tenham
alguns privilégios, como a dispensa de tributos, o recebimento de verbas
públicas ou a utilização de bens e meios do setor público para transporte
de material, equipamentos e pessoas que vão executar os serviços. Tudo isso
é compatível com os objetivos fixados na Constituição, mas está relacionado
com a noção de serviço como expressão de solidariedade e como dever social,
desligado do objetivo de lucro, ainda que possa proporcionar algum ganho
econômico.
Ora, na concepção que embasa a proposta da ALCA, o enfoque dos
serviços é exclusivamente econômico. A própria linguagem dos documentos
trai essa concepção, não havendo qualquer referência a condições
excepcionais que se justifiquem em face de objetivos sociais e humanos
relevantes. O serviço é sempre enfocado como parte do "comércio de
serviços", pressupondo-se que todos os prestadores de serviços estão em
busca de ampliação de mercados e aumento dos lucros. Assim sendo, na
perspectiva da ALCA não se pode admitir que alguns tenham tratamento
privilegiado, recebam vantagens e benefícios que não são assegurados
igualmente a todos, pois o pressuposto é que nenhum dos prestadores de
serviços tem outro objetivo que não seja o lucro. Se algum dos prestadores
de serviços tiver objetivos humanitários e for movido pelo espírito de
solidariedade terá que se sujeitar às condições da concorrência,
participando da vala comum do comércio de serviços. Essa é a orientação da
ALCA.
É claramente reveladora desse enfoque à parte do Capítulo sobre
Serviços que tem por subtítulo "Restrições para Proteger o Balanço de
Pagamentos". No parágrafo de número 1 é prevista uma exceção, permitindo
que uma Parte estabeleça restrições ao comércio de serviços no tocante às
medidas estipuladas nos artigos relativos ao tratamento de nação mais
favorecida, presença local, tratamento nacional e acesso a mercados. Com
aparente liberalidade, esse item termina com o reconhecimento de que
"determinadas pressões sobre o balanço de pagamentos podem tornar
necessária à utilização de restrições para conseguir, entre outras coisas,
a manutenção de um nível de reservas financeiras suficientes para
implementar seu programa de desenvolvimento econômico ou de transição
econômica".
Coroando essas disposições, que ignoram completamente as emergências
determinadas por necessidades sociais relevantes ou por exigências
relacionadas com o desenvolvimento humano, no parágrafo de número 5 se diz
que as partes que aplicarem esses dispositivos ficam obrigadas a "consultar
prontamente sobre as restrições adotadas". E no final desse parágrafo, no
item "e", está expresso o seguinte: "Nessas consultas, serão aceitos todos
os dados estatísticos ou fatos de outra natureza que o FMI apresentar sobre
questões cambiais, de reservas monetárias e de balança de pagamentos e as
conclusões se basearão na avaliação feita pelo FMI da situação financeira
externa e da balança de pagamentos da Parte objeto das consultas".
Como fica evidente, são duas concepções, duas linguagens, dois
objetivos, frontalmente opostos, o que torna muito difícil admitir a
compatibilização. Note-se a absurda interferência do FMI, como um super-
governo, ditando regras para os governos nacionais e decidindo
soberanamente sobre a dispensa de aplicação dessas regras em casos
especiais. Nenhum governo democrático, sério e responsável poderá aceitar
essa interferência. Além disso, os serviços são enfocados numa perspectiva
exclusivamente econômica e financeira, ignorando totalmente a realidade
social das grandes áreas sociais e regionais pobres e marginalizadas,
desesperadamente necessitadas de serviços essenciais para garantia da
sobrevivência física e da dignidade da pessoa humana.
É o mais arrematado absurdo imaginar uma consulta ao FMI para saber
se o governo brasileiro pode conceder condições mais favoráveis a um grupo
de brasileiros que, com espírito de solidariedade e consciência de seus
deveres de cidadania, se disponha a prestar tais serviços em troca de uma
remuneração mais do que modesta. Essa hipótese está longe de ser
fantasiosa, pois já são muitas, em várias partes do Brasil, as entidades
criadas por universitários e jovens profissionais que prestam serviços de
grande relevância às camadas mais pobres da população, ministrando cursos e
transmitindo conhecimentos básicos de direito, educação, saúde, economia,
política, antropologia e outras áreas, prestando tais serviços
gratuitamente ou mediante pequena remuneração. Se forem levadas adiante as
discussões sobre a proposta da ALCA esses casos devem ser claramente
ressaltados, para que interesses comerciais de prestadores de serviços não
impeçam ou perturbem essas atividades que são do mais alto valor ético e
social.
2. Serviços públicos delegados a particulares
Uma vez que o objetivo da ALCA é a abertura máxima dos mercados, toda
atividade que possa proporcionar lucro a alguém deverá ser possibilitada a
qualquer pessoa ou entidade de um país signatário da ALCA. Isso tem
aplicação ao Capitulo sobre Serviços, o que, entretanto, se for aplicado
como pretendem os proponentes da ALCA, acabará obrigando o Brasil a admitir
a igual participação de empresas estrangeiras, públicas ou privadas, na
execução de serviços de natureza pública, com ofensa manifesta à soberania
brasileira.
Nos termos do artigo 196 da Constituição brasileira, a saúde é
direito de todos e dever do Estado, o que já revela a natureza especial dos
serviços prestados nessa área. Isso é ainda reforçado pelo disposto no
artigo 197, segundo o qual "são de relevância pública as ações e serviços
de saúde", cabendo ao Poder Público efetuar sua regulamentação,
fiscalização e controle. Assim, portanto, uma vez que correspondem a um
direito de todos, tais serviços podem ser exigidos, inclusive por via
judicial, por quem deles necessite e não possa pagar. Além disso, por sua
relevância pública, expressamente proclamada na própria Constituição, os
serviços de saúde não podem ficar à mercê do livre jogo do comércio,
estando implícito, pelo que afirmam esses dispositivos constitucionais, que
o Poder Público deverá ter sempre a possibilidade de interferir nessa área,
ou para implantar ou melhorar seus próprios serviços ou para estabelecer
novas condições obrigando os prestadores dos serviços a se adaptarem a
aquilo que for mais necessário ou conveniente em determinado local ou num
certo momento.
Bastaria isso para se concluir que os serviços de saúde, por sua
relevância pública e por corresponderem a direitos de todo o povo
brasileiro, não podem ficar sujeitos aos caprichos e às incertezas das
competições comerciais. Imagine-se a hipótese, que já tem ocorrido em
outras áreas, de uma grande empresa estrangeira prestadora de serviços de
saúde que assume absoluto predomínio relativamente ao tratamento de certas
moléstias ou numa determinada região
do País e assim coloca a população sob sua dependência. Muitos
profissionais da área de saúde deixarão suas atividades particulares ou
públicas para se engajarem nessa empresa, que terá a possibilidade de
oferecer instrumental mais moderno e melhor remuneração. E assim esse
serviço de relevância pública e o direito à saúde do povo ficam, em grande
parte, nas mãos dessa prestadora de serviços. Entretanto, de um momento
para outro essa empresa decide transferir suas atividades para outra parte
do mundo, porque será mais lucrativo. Afinal, ela participa do livre
comércio de serviços e essa possibilidade de transferir-se para outro local
faz parte do jogo do comércio.
Fatos como esse já ocorreram e continuam a ocorrer no Brasil e em
outros países, em áreas de atividades que não são da mesma relevância mas,
mesmo assim, causando graves problemas sociais. Imagine-se o que poderia
ocorrer se os serviços de saúde fossem tratados numa perspectiva puramente
comercial, como pretende a proposta da ALCA. Basta imaginar essa hipótese
para se concluir que no Brasil existe absolutamente incompatibilidade entre
a proposta da ALCA e as definições e determinações constitucionais sobre os
serviços de saúde.
Caso prossigam as discussões sobre a proposta da ALCA, será
indispensável reformular o artigo 7 do Capítulo sobre Serviços, onde se
trata do "Acesso aos Mercados". Eventualmente, poderiam ser introduzidas
modificações na proposta, para que o Brasil possa estabelecer
condicionamentos e limitações (que a proposta proíbe, falando em "quotas
numéricas" ou limitações quanto ao volume total de serviços), visando
impedir o estabelecimento de monopólios ou quase-monopólios e também
buscando assegurar a extensão dos serviços a todo território nacional, para
que eles não se limitem às regiões mais ricas. Mais uma vez é oportuno
lembrar que a ALCA é apenas uma proposta, que poderá ser aceita ou
rejeitada, no todo ou em parte, com ou sem modificações. No caso da área de
saúde, existem no Brasil princípios e normas constitucionais que devem
prevalecer sobre qualquer acordo. Em caso de incompatibilidade não se há de
pretender o absurdo de modificar a Constituição para ajustá-la à proposta
de acordo. Esta é que deverá ser modificada para que se torne compatível
com as exigências constitucionais.
Na mesma linha das considerações feitas quanto à prestação de
serviços na área de saúde, podem ser analisados também os serviços na área
de educação. Esta, de acordo com o disposto no artigo 205 da Constituição,
é "direito de todos e dever do Estado e da família", estabelecendo ainda o
mesmo dispositivo constitucional que ela será "promovida e incentivada com
a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".
Embora não se use aí a expressão "relevância social", ela decorre
expressamente dos objetivos da educação, ligados ao desenvolvimento humano,
ao exercício da cidadania e ao preparo para o trabalho.
Por essa extraordinária relevância para a vida presente e futura do
pais, a jurisprudência brasileira considera os serviços de educação, quando
prestados por particulares, como atividade delegada do Estado. Prova disso
é que já são muitos os casos de concessão de Mandado de Segurança contra
atos de dirigentes de escolas privadas, embora essa garantia constitucional
esteja expressamente prevista para proteger direitos ameaçados ou ofendidos
por ato ilegal de "autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no
exercício de atribuições do Poder Público". Desse modo, mesmo quando
prestados por particulares os serviços de educação devem ser considerados
de natureza pública, o que, em principio, elimina a possibilidade de sua
delegação a estrangeiros.
Mas relativamente à educação, que é também direito de todo o povo
brasileiro, deve-se acrescentar ainda que é o meio para o desenvolvimento
moral e intelectual dos brasileiros, é o instrumento para a preservação, a
transmissão e o enriquecimento da cultura nacional, sendo também um fator
de fortalecimento da consciência de cidadania. Esses valores, que são
fundamentais, não podem ser objeto de comércio nem podem ficar na
dependência das conveniências de quem não participa deles e não tem
interesse em sua preservação, enriquecimento e transmissão a gerações
futuras.
Poderá alguém querer argumentar com o fato de que foram muitas, na
história brasileira, as instituições de ensino vindas do exterior e
dirigidas por estrangeiros que exerceram enorme e benéfica influência na
formação de muitas gerações de brasileiros, ou proporcionando educação mais
refinada aos jovens das camadas sociais superiores ou, através da
preparação para a vida religiosa, dando possibilidade a que jovens de
origem pobre e modesta recebessem melhor educação. Isso é verdade, mas de
modo algum se poderá confundir essa participação na educação brasileira,
inspirada em altos propósitos de caráter moral ou religioso, com a disputa
pelo comércio dos serviços de educação.
É oportuno, aliás, lembrar que existe hoje o reconhecimento geral de
que nos últimos tempos houve significativo decréscimo da qualidade do
ensino no Brasil. Como tem sido assinalado, isso é devido, em grande parte,
à forte influência de fatores de ordem econômica na destinação de recursos
para a educação. As escolas públicas, de todos os níveis, passaram a ser
tratadas como itens da despesa, não reprodutiva do ponto de vista
econômico, quase como gastos supérfluos. Em conseqüência, além do
decréscimo na remuneração dos professores, que é um importante fator de
desestimulo, os equipamentos escolares passaram a denunciar a insuficiência
de recursos, não sendo raras as noticias sobre escolas com instalações
deterioradas, registrando-se inúmeros casos, noticiados pela imprensa, de
alunos tendo aulas em galpões improvisados, ou porque ocorreu o desabamento
de um teto, ou porque com a chuva há infiltração de água pelo teto
esburacado, além de ocorrer também à deficiência de vagas em escolas de
primeiro grau. Esse é o resultado da submissão da educação a critérios
prioritariamente econômicos, como pretende a proposta da ALCA sobre
Serviços.
Ainda como fato bastante ilustrativo, para que se veja que os graves
malefícios do enfoque econômico não são meras suposições mas têm
comprovação nos fatos, é importante lembrar o que ocorreu na Universidade
Federal do Rio de Janeiro, a maior Universidade Federal brasileira, no
final do ano de 2002. Com a preocupação de cumprimento rigoroso das metas
do Fundo Monetário Internacional, o governo brasileiro reduziu
substancialmente a destinação de recursos às Universidades públicas. Uma
das conseqüências foi que a Universidade Federal do Rio de Janeiro ficou
sem meios para pagar as despesas relativas ao consumo de energia elétrica e
por esse motivo sofreu o corte no fornecimento da energia.
Durante vários dias tiveram que ser suspensas praticamente todas as
atividades da Universidade, com evidente prejuízo para o ensino e a
pesquisa, chegando-se ao extremo de interromper a prestação de serviços de
emergência no Hospital Universitário, pela falta de energia elétrica. Esse
fato, de extrema gravidade, não pôde ser escamoteado, por sua enorme
repercussão e pela indignação que causou nos meios universitários e entre
as pessoas conscientes da importância de uma instituição educacional
daquele porte e com aquelas tradições, tendo sido escancarada pela imprensa
à situação de penúria e humilhação da maior Universidade Federal
brasileira, de importância mais do que óbvia para a educação no Brasil. Na
perspectiva do mercado de serviços esse seria um fato rotineiro.
Por tudo isso, e na mesma linha das observações feitas quanto aos
serviços de saúde, não existe qualquer possibilidade de compatibilizar as
exigências constitucionais quanto aos serviços de educação com a entrega de
tais serviços ao livre jogo do comércio, devendo-se, portanto, considerá-
los excluídos da hipótese de fazerem parte de um eventual acordo sobre
livre-comércio de serviços. Só se deverá cogitar da inclusão de serviços de
educação num acordo como a proposta da ALCA se for admitida à introdução de
ressalvas e limitações na proposta, considerando as peculiaridades da
educação. As áreas básicas, de todos os níveis, não poderão ser incluídas
no comércio de serviços, uma vez que são fundamentais para a formação das
consciências, para a preparação e o estímulo para o exercício da cidadania,
assim como, no caso do ensino superior, para a formação de especialistas e
dirigentes preocupados com o desenvolvimento humano e cultural dos
brasileiros e com a superação da extrema dependência em matéria de ciência
e tecnologia.
As regras constitucionais estão fixadas e devem ser totalmente
respeitadas, porque correspondem à vontade, às necessidades e às aspirações
do povo brasileiro. Os objetivos da educação, assim como os da saúde, estão
fixados na Constituição e determinam a prioridade de valores que estão fora
do comércio. Uma eventual proposta de acordo sobre Serviços nessas áreas é
que deverá adaptar-se a essas regras e aceitar as limitações necessárias,
para que seja possível discutir tal proposta.
3. Serviços públicos terceirizados
Outro ponto de grande relevância, que deve ser analisado com o máximo
cuidado, é o que se refere aos serviços públicos terceirizados. Como é
amplamente sabido, na linha das propostas neo-liberais de privatização e de
esvaziamento do Estado passou-se a praticar amplamente a terceirização no
setor público, mediante a contratação de particulares para a realização de
serviços de que o Poder Público necessita para o desempenho de suas
atribuições. Assim, por exemplo, atividades como a segurança, o
fornecimento de alimentação, a limpeza e outras atividades em hospitais,
escolas, Universidades e repartições de modo geral foram transferidas a
organizações privadas de prestação de serviços. É importante observar que
essa terceirização de parte das atividades não retira das instituições seu
caráter público e os serviços nelas prestados, no seu conjunto, incluindo
as partes terceirizadas ou não, continuam a ter a natureza de serviços
públicos.
Prossigamos. De acordo com o previsto no artigo 1 do Capitulo sobre
Serviços da ALCA, mais especificamente na cláusula 1.5, todos os serviços
devem ser incluídos no acordo e, portanto, na disputa do comércio de
serviços, sendo admitida uma única exceção: os serviços prestados no
exercício de poderes governamentais. Ora, os exemplos há pouco citados já
mostram que, aceitando-se a proposta da ALCA nesses termos, muitos serviços
públicos brasileiros, que são serviços prestados por agentes públicos para
o povo, deixarão de ser geridos e executados dando prioridade ao interesse
público, pois lançados na vala comum do comércio dos serviços eles serão
oferecidos como atividades comerciais, cujo objetivo maior é o lucro.
Isso, em principio, é contraditório, pois são mantidos como serviços
públicos àquelas atividades que, por uma série de circunstâncias, o
legislador brasileiro entendeu que será necessário ou conveniente que
fiquem a cargo dos Poderes Públicos. Na onda das privatizações promovidas
no Brasil nos últimos anos, aqueles setores que se considerou sem
justificativa para permanecerem na área pública foram privatizados,
continuando a manter o caráter público aqueles que foram julgados
especialmente comprometidos com o interesse público. Assim, pois, o que faz
parte de um serviço público não deve ser entregue à área do comércio de
serviços, pois no caso de conflito, que pode facilmente ocorrer, entre o
interesse do público usuário e o do prestador comercial do serviço, deverá
prevalecer, obviamente, o interesse público, contrariando o previsto na
minuta de acordo da ALCA.
Considerando um dado da realidade que pode tornar ainda mais grave
essa hipótese de conflito, é oportuno lembrar que já existe hoje no Brasil
uma discussão sobre a terceirização de setores de relevante interesse
público, como o serviço informatizado dos Tribunais e a administração dos
presídios. Em ambos os casos trata-se de setores do Poder Público
diretamente relacionados com o exercício da soberania, setores que, por sua
própria natureza, são reservados com exclusividade ao Estado, como está
previsto na Constituição.
A terceirização de serviços em tais setores, embora esteja
encontrando sérias resistências, poderá entretanto ocorrer, devendo-se
lembrar que o sistema prisional brasileiro inclui estabelecimentos federais
e estaduais, havendo entre estes grande diversidade. Nesse caso, será
fundamental estabelecer limitações estritas sobre o âmbito das
terceirizações, que só poderão ser parciais, bem como assegurar o controle
estrito e permanente sobre a execução dos serviços terceirizados, para que
em nenhuma hipótese deixe de ser prioridade o interesse público ou haja
desvios de qualquer espécie que acarretem prejuízo aos objetivos e à
qualidade dos serviços, bem como ao resguardo do sigilo sobre dados que não
devam ser dados à publicidade. E obviamente, por se tratar de serviços
públicos essenciais, ligados à manutenção da ordem e ao cumprimento de
objetivos constitucionais, não é admissível que tais serviços sejam
entregues a estrangeiros participantes do comércio de serviços, como se
tratasse de mais uma atividade comercial.
Essas restrições e esse resguardo poderão conflitar com a proposta da
ALCA, uma vez que os interessados na contratação para a execução de tais
serviços poderão tentar argumentar que no caso das terceirizações de
determinadas partes dos serviços não se estará efetuando a transferência de
"poderes governamentais". Além disso, de acordo com o disposto no item "b"
da cláusula 1.5, não se considera "serviço prestado no exercício de poderes
governamentais" aquele que não seja prestado em condições comerciais "nem
em concorrência com um ou vários fornecedores de serviços".
Ora, conforme exigência expressa do artigo 37, inciso XXI, da
Constituição brasileira, os serviços cuja execução o Poder Público decidir
contratar com terceiros "serão contratados mediante processo de licitação
pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes".
Estará sempre aberta, necessariamente, a possibilidade de participação de
vários concorrentes ao fornecimento dos serviços e isso, segundo a proposta
da ALCA, tira o caráter de serviço prestado no exercício de poder
governamental. Em conseqüência, torna-se obrigatório o seu enquadramento no
âmbito do livre comércio dos serviços que é objeto da ALCA, devendo ser
assegurada igual possibilidade de participação a todos os fornecedores de
serviços dos países que fizerem parte do acordo.
Assim, portanto, por tudo o que acaba de ser exposto, verifica-se a
necessidade do cuidadoso estabelecimento de regras especiais, visando à
hipótese da terceirização de serviços públicos. Os termos da proposta da
ALCA são inaceitáveis, pois se eles forem mantidos estará sendo concedido a
estrangeiros o direito de participar da execução de serviços públicos
essenciais, que, ainda que sejam terceirizados, deverão ser executados
mediante estrito e permanente controle de autoridades governamentais
brasileiras, fazendo parte do exercício da soberania.
4. Serviços prestados por profissionais qualificados
Um problema grave, que já vem suscitando sérias controvérsias e que
exige especial cuidado, uma vez que já se formulou a pretensão de que o
Brasil abra mão de exigências legais, as quais foram estabelecidas com
prudente critério e segundo o interesse público, é O dos serviços prestados
por profissionais especialmente qualificados. O exemplo mais claro da
existência de graves divergências e que será muito bom analisar, porque já
deu margem a discussões públicas e ao aprofundamento das reflexões, é o dos
Serviços de Advocacia.
Na seqüência das novas investidas das empresas multinacionais a
partir do desmoronamento da União Soviética, na última década do século
vinte, divulgou-se o pretexto da existência de uma nova realidade rotulada
de globalização, que uns aceitaram por convir aos seus interesses
econômicos e outros adotaram por ingenuidade ou ignorância. Nunca definida
ou conceituada, a globalização passou a ser entendida mais ou menos como
sendo a extensão dos negócios para âmbito mundial, como se isso já não
tivesse ocorrido há pelo menos quinhentos anos, com as grandes navegações,
a rota da seda, os grandes empreendimentos comerciais holandeses
denominados Companhia das índias Orientais e Companhia das Índias
Ocidentais, esta com presença marcante no Brasil do século dezessete e com
sinais concretos visíveis ainda hoje na cidade do Recife.
A partir do argumento da globalização, muitos governos, como o
brasileiro, promoveram a transferência de atividades públicas para o setor
privado, em condições muito vantajosas para os que receberam o patrimônio e
o direito de fornecer bens e prestar serviços, além do que, para favorecer
os empreendedores privados, o governo promoveu a redução dos direitos dos
trabalhadores e flexibilizou as regras sobre a participação econômica de
estrangeiros. Com isso intensificou-se a presença de investimentos e
parcerias de empresas multinacionais no Brasil, ampliando-se uma
participação que já tem muitas décadas. Uma conseqüência dessa expansão foi
à necessidade de contar com o serviços de advogados conhecedores das leis,
da jurisprudência e dos costumes comerciais, não só do Brasil mas também
dos países de origem dos investidores, sobretudo dos Estados Unidos.
Um sinal bem visível dessa nova prática foi o considerável aumento do
número de sociedades de advogados no Brasil, especialmente a ampliação do
número de grandes escritórios de advocacia, que passaram a se preocupar em
ter nos seus quadros profissionais conhecedores do direito e das práticas
jurídicas externas. Isso, entretanto, parece não ter sido considerado
suficiente por muitas empresas multinacionais, que preferem ter no Brasil
um advogado formado e treinado em seu país de origem e que tenha também
conhecimento do direito brasileiro ou atue junto com colegas brasileiros.
Aqui começa o problema, pois há muitos anos o exercício da advocacia
no Brasil tem regulamentação legal, que não impede o estrangeiro de prestar
serviços de advocacia mas faz exigências perfeitamente razoáveis, para
defesa dos direitos e interesses dos que recorrerem aos serviços do
advogado e para que tais serviços sejam prestados com estrita observância
dos princípios e normas constitucionais e da legislação vigente no Brasil.
Como tem sido noticiado, empresas e advogados estrangeiros, sobretudo dos
Estados Unidos e da Europa, pretendem que o Brasil reduza as exigências
para que profissionais estrangeiros prestem serviços no Brasil, tendo
havido sinais evidentes de que o governo Fernando Henrique Cardoso dava
apoio a essa pretensão, que, no entanto, vem encontrando forte resistência
da Ordem dos Advogados do Brasil, com o argumento, que mais adiante se verá
que é verdadeiro, de que as exigências são absolutamente razoáveis e
compatíveis com a necessidade de defesa da ordem jurídica brasileira.
Conforme noticiou a "Folha do Instituto dos Advogados do Brasil"
(Número 52, de Novembro de 2002), foi realizado no mês de Agosto de 2002,
com discreta divulgação, o lo. Encontro Nacional ltamaraty-Escritórios de
Advocacia, com a participação de representantes de 123 escritórios de
advocacia. Naquela oportunidade o Diretor Geral do Departamento econômico
do ltamaraty, embaixador Valdemar Carneiro Leão, afirmou que nenhum
compromisso foi assumido até agora envolvendo serviços de advocacia, nos
diversos encontros internacionais sobre Serviços.
Entretanto, como foi observado pelo Conselheiro Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil e presidente da Comissão de Sociedades de Advogados, o
advogado Sérgio Ferraz, presente ao encontro -e a publicação do Instituto
dos Advogados do Brasil registrou esse fato - na mesma oportunidade aquele
órgão do Ministério de Relações Exteriores distribuiu aos participantes um
documento muito significativo: um extenso relatório da OMC, intitulado
Legal Services, posicionando-se frontalmente contra as regras legais que
disciplinam o assunto no Brasil. Foi também distribuída uma Declaração
originária da OMC, firmada em reunião realizada em Doha em novembro de
2001, preconizando a livre circulação de serviços no mundo.
Como fica evidente, a única justificativa para a distribuição de tais
documentos naquela reunião era a intenção de que eles fossem conhecidos e
considerados, sendo surpreendente e devendo servir de advertência o fato de
que eles foram distribuídos pelo Ministério das Relações Exteriores do
Brasil. Note-se, ainda, como assinala o órgão noticioso do Instituto dos
Advogados do Brasil, que a Ordem dos Advogados do Brasil não foi convidada
para o encontro, embora seja dela a responsabilidade pela fixação das
regras sobre a prestação de serviços de advocacia no Brasil. Teria sido
pelo menos razoável ouvir naquela oportunidade um representante da Ordem
dos Advogados, conhecer a justificativa para as regras por ela
estabelecidas e, eventualmente, discutir a hipótese de modificação.
Esses fatos relacionados com os serviços de advocacia são muito
importantes, pois dão margem à conclusão de que os órgãos do governo
brasileiro que até agora participaram das discussões sobre o comércio de
serviços estão propensos a defender a mais ampla liberalização, que, aliás,
já tem sido proposta como reivindicação de escritórios de advocacia dos
Estados Unidos. Assim, pois, convém conhecer um pouco mais sobre o assunto,
pois através do debate sobre serviços de advocacia pode-se verificar como
vem sendo conduzido até aqui o assunto, por órgãos do governo brasileiro,
verificando-se também em que medida podem ser aceitas, ou não, as alegações
de excesso de restrições à prestação de serviços por estrangeiros.
Serão realmente exageradas e discriminatórias, como alegam os
estadunidenses, as exigências formuladas na legislação brasileira para a
prestação de serviços de advocacia por estrangeiros ? Mais ainda: supondo-
se que essas regras possam ser eliminadas por serem injustificáveis, haverá
a certeza de reciprocidade, para que brasileiros tenham ampla liberdade
para prestar serviços de advocacia em todos os participantes do acordo da
ALCA? O exame dessas questões, relativamente aos serviços de advocacia,
será de grande utilidade para uma reflexão sobre o mesmo problema, ou seja,
a pretensão do estabelecimento do livre comércio de serviços, em relação a
outras áreas profissionais em que a lei exige dos prestadores de serviços
uma qualificação especial, como ocorre, por exemplo, nas áreas de saúde.
Em relação aos serviços de advocacia, a regra máxima e basilar é o
inciso XIII do artigo 50. da Constituição. Segundo esse dispositivo, "é
livre o exercício de qualquer trabalho, oficio ou profissão, atendidas as
qualificações profissionais que a lei estabelecer". Tendo recebido, por
meio da lei federal número 8906, de 1994, a competência para disciplinar o
exercício da profissão de Advogado, inclusive fixando as regras para
ingresso na profissão e o exercício profissional, a Ordem dos Advogados do
Brasil estabeleceu que só podem prestar serviços de advocacia no Brasil os
profissionais que tenham obtido aprovação num curso jurídico e estejam
inscritos nos quadros da Ordem dos Advogados.
Alertada pelo considerável aumento do número de consultores
jurídicos, inclusive estrangeiros, ocorrido nos últimos anos em decorrência
da expansão das atividades empresariais, aquela entidade legalmente
incumbida de disciplinar o exercício da advocacia no Brasil editou o
Provimento número 91, de 13 de março de 2000, tratando especificamente da
prestação dos serviços de consultoria. Em relação aos estrangeiros, existem
duas exigências:
uma delas, de ordem geral, é que se inscrevam na Ordem dos Advogados,
exatamente como se exige de todos os brasileiros; a par disso, o Provimento
em questão exige que o consultor jurídico seja "profissional em Direito,
regularmente admitido em seu país para exercer a advocacia".
Para a inscrição de profissional nos quadros da Ordem dos Advogados
exige-se a conclusão de um curso de Direito, o que é absolutamente
razoável, pois o profissional irá influir sobre direitos que envolvem a
vida, a liberdade, a intimidade, a família, o patrimônio e outros bens
fundamentais da pessoa humana, sendo necessário que ele disponha de
conhecimentos jurídicos básicos que lhe permitam conhecer e proteger os
direitos confiados ao seu patrocínio.
Além disso o profissional do Direito tem o dever de respeitar,
preservar e defender a ordem jurídica vigente no Brasil, o que também exige
que ele tenha conhecimento básicos, sobretudo do direito brasileiro.
O brasileiro ou estrangeiro que tenha concluído fora do Brasil seu
curso de Direito ficam na mesma situação. Ambos devem, primeiro, promover a
revalidação de seu diploma, o que deverá ser feito numa escola de Direito,
de Universidade legalmente autorizada para tanto. Fazendo-se o exame do
currículo do curso concluído pelo interessado, verifica-se quais
disciplinas, do currículo básico das escolas de Direito brasileiras, o
interessado não cursou. Ele será, então, obrigado a cursar tais disciplinas
ou a submeter-se a exame sobre elas. Assim, por exemplo, quem tiver feito
um curso de Direito fora do Brasil não terá estudado Direito Constitucional
brasileiro, que é disciplina básica e cujo conhecimento é absolutamente
indispensável para quem pretenda prestar serviços na área jurídica em nosso
País. Assim sendo, tanto o estrangeiro quanto o brasileiro que estiver nas
mesmas condições têm que satisfazer o mesmo requisito, não havendo como
falar em discriminação.
A queixa mais freqüente quanto ao processo de revalidação refere-se à
lentidão dos procedimentos, pois há escolas que, ou por serem mais
minuciosas ou por terem um sistema burocrático menos eficiente, são
extremamente demoradas na conclusão do processo de revalidação. Assim, por
exemplo, no final do ano de 2001 constatou-se, na Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, que um pedido de revalidação já estava
tramitando na Universidade fazia cerca de quatro anos. Por coincidência, a
interessada, que havia cursado uma tradicional escola de Direito dos
Estados Unidos, era filha de um professor da própria Faculdade de Direito
de São Paulo. A demora, naquele caso, era resultante de embaraços
burocráticos absurdos, criados no âmbito da administração central da
Universidade.
Como se vê, era uma brasileira a interessada e também ai não se pode
falar em discriminação, sendo natural e absolutamente razoável pretender-se
a simplificação ou aceleração dos procedimentos, em benefício de todos os
interessados. Mas seria discriminatório, isto sim, dispensar o estrangeiro
dessa tramitação, para livrá-lo dos percalços da demora, continuando o
brasileiro a sujeitar-se a ela. O problema da eventual demora na
revalidação dos diplomas é interno e de interesse geral, não cabendo tomá-
lo como justificativa para criar uma regra mais favorável ao estrangeiro,
no momento de fixar as normas de um acordo internacional sobre o comércio
de Serviços.
Obtida a revalidação do diploma, o interessado poderá solicitar sua
inscrição na Ordem dos Advogados, devendo submeter-se a uma prova de
conhecimentos básicos, tanto teóricos quanto relacionados com a aplicação
quanto relacionados com a aplicação das normas jurídicas, sendo
absolutamente igual essa prova para todos os candidatos inscritos, sejam
eles brasileiros ou estrangeiros. A dificuldade maior para o estrangeiro
poderá resultar do maior ou menor domínio que ele tiver da língua
portuguesa, dificuldade que será equivalente à do brasileiro que pretenda
atuar profissionalmente fora do Brasil, o que não se pode dizer que seja a
expressão de uma discriminação. Assim, pois, são absolutamente razoáveis as
exigências legais brasileiras para a prestação dos serviços de advocacia,
não se justificando a pretensão de eliminá-las para favorecer o acordo
sobre comércio de Serviços.
Ainda em relação aos serviços prestados por Advogado, existe mais um
aspecto, muito grave, que é lembrado por Sérgio Ferraz num excelente artigo
denominado "Exercício da Advocacia no Brasil por Profissional Estrangeiro",
publicado na Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, no. 73, edição de
Julho/Dezembro de 2001. Pela minuta do Acordo Geral sobre Serviços da ALCA,
somente são excluídos do livre comércio sobre Serviços àqueles prestados no
exercício de autoridade governamental, conforme já observamos
anteriormente. Ora, lembra bem Sérgio Ferraz que, de acordo com disposição
expressa do artigo 133 da Constituição brasileira, "o advogado é
indispensável à administração da justiça", o que lhe dá a condição de
complemento necessário do aparato judiciário, associando-o ao exercício do
Poder Judiciário, que é uma das expressões do poder soberano do Estado
brasileiro. Assim, portanto, ainda que se admita a prestação de serviços
por advogado estrangeiro, é perfeitamente razoável a exigência de inscrição
na Ordem dos Advogados do Brasil e de submissão ao poder disciplinar dessa
instituição, pois na prestação desses serviços estará envolvida a
preservação da ordem jurídica brasileira, sendo necessário exigir muito
mais do que a simples obediência a regras gerais do comércio.
Embora alguns dos pontos ai considerados sejam específicos da área
jurídica, a questão geral e mais ampla que se coloca, e para a qual a
experiência dos advogados será de grande utilidade, é a da prestação de
serviços em áreas que exigem especial qualificação profissional, como está
previsto no artigo 5o., inciso XIII, da Constituição, e está complementado
na legislação que trata dos Conselhos que disciplinam o exercício de
determinadas profissões. É o que acontece, por exemplo, com médicos,
farmacêuticos, enfermeiros, nutricionistas e outros profissionais da área
de saúde, mas ocorre igualmente em outras áreas profissionais, nas quais se
considera necessário um controle mais rigoroso da preparação e do
desempenho dos prestadores de serviços, em vista dos graves efeitos
negativos que poderão resultar, para as pessoas e a sociedade, do mau
desempenho.
Tudo isso recomenda que sejam cuidadosamente discutidas as regras
relativas ao Comércio de Serviços, não se podendo abrir mão de cautelas
especiais que já constam da legislação brasileira e que nada têm de
exageradas ou discriminatórias. Haverá muitas áreas que poderão ser
tratadas de modo uniforme, com regras amplas e exigências mínimas, sem que
isso crie riscos ou acarrete conseqüências negativas previsíveis. Isso,
entretanto, não justifica a total liberdade de comércio, para todas as
áreas de prestação de Serviços, ignorando-se os riscos e prejuízos que
foram aqui assinalados com base em experiências e não apenas em suposições.
V. Efeitos práticos negativos previsíveis
1. Anulação de acordos regionais
Não é necessário um exame muito minucioso dos termos da minuta do
Capítulo sobre Serviços do acordo da ALCA para se concluir que se for
celebrado esse acordo nos termos propostos estarão praticamente anulados
outros acordos já celebrados pelo Brasil. Além disso, estará
impossibilitado o estabelecimento de regras diferenciadas, mais benéficas,
visando dar cumprimento à determinação constitucional sobre a busca de
integração econômica, política, social e cultural dos povos da América
Latina.
Com efeito, o Artigo 3 do Capitulo sobre Serviços contém uma regra de
excepcional amplitude: Cada Parte deverá conceder, imediata e
incondicionalmente, aos serviços e prestadores ou fornecedores de serviços
de outro Parte, um tratamento não menos favorável do que aquele que concede
aos serviços semelhantes e prestadores ou fornecedores de serviços
semelhantes, de qualquer Parte ou país que não seja Parte no acordo da
ALCA. Desse modo, se o Brasil tiver celebrado ou vier a celebrar acordos
com os países integrantes do MERCOSUL haverá duas hipóteses: ou esses
países também farão parte do acordo da ALCA e desse modo tudo o que for
concedido a eles se aplicará automaticamente a todos os integrantes da
ALCA; ou, diferentemente disso, esses integrantes do MERCOSUL não serão
Partes na ALCA e neste caso, por força do disposto no Artigo 3 acima
referido, o que for concedido a eles deverá ser imediatamente assegurado
também a todos os integrantes da ALCA.
Existe, aparentemente, uma exceção a essa regra, que deveria
preservar os acordos do MERCOSUL. É o que dispõe o parágrafo 3.2 do
Capitulo sobre Serviços, dizendo que as disposições desse Capítulo não
deverão ser interpretadas no sentido de impedir que uma Parte proporcione
ou conceda vantagem a países adjacentes para facilitar intercâmbios,
limitados às zonas fronteiriças contíguas, de serviços que sejam produzidos
e consumidos localmente. A leitura atenta desse dispositivo revela que seu
alcance é extremamente limitado, pois a exceção só se aplica a "zonas
fronteiriças contíguas", e não a todo o pais vizinho, e a serviços que
sejam "produzidos e consumidos localmente", ou seja, somente aqueles
produzidos e consumidos em municípios vizinhos, ou seja, um volume
insignificante de serviços.
Essas disposições estão, aparentemente, em contradição com o
parágrafo 3.6 do Capitulo sobre Serviços, segundo o qual o acordo da ALCA
não deverá impedir nenhuma das Partes de participar de acordos que busquem
a liberalização do comércio de serviços ou uma integração econômica mais
ampla no nível sub-hemisférico. De fato, os integrantes da ALCA não estarão
impedidos de celebrar acordos regionais, mas se o fizerem deverão estender
a todos os demais participantes da ALCA os mesmos benefícios concedidos a
terceiros, conforme dispõe o Artigo 3.
Essa restrição, que, na realidade, inutiliza os acordos regionais, é
confirmada pelo parágrafo 3.4, que dispõe incisivamente: "A ALCA pode
coexistir com acordos bilaterais e sub-regionais na medida em que os
direitos e obrigações constantes desses acordos não estiverem cobertos ou
superem os direitos e obrigações da ALCA". Isso quer dizer que os acordos
regionais só podem conceder aos seus integrantes menos do que aquilo que
for concedido aos que forem Partes na ALCA. Se concederem mais será
imediatamente estendido a todos os signatários do acordo da ALCA. E aquilo
que constar de um acordo regional e que já estiver previsto num dos
dispositivos da ALCA, ainda que com alcance diferente e em outra conotação,
não terá validade, prevalecendo a ALCA.
Em última análise, não há exagero em concluir que se for mantida a
redação do artigo 3 e seus parágrafos estarão praticamente anulados o
MERCOSUL e outros acordos regionais, o que dá a ALCA os poderes de um
super-acordo, que anula a possibilidade de solidariedade e apoio recíproco
em âmbito regional. E no entanto é mais do que necessário que se apóie e
estimule a solidariedade regional, para que se possa promover um
desenvolvimento independente e fugir à situação de extrema submissão e
dependência em relação às superpotências econômicas, como existe
atualmente.
No caso brasileiro, a aceitação dessas tremendas limitações impostas
pela ALCA seria contrária a uma determinação constitucional. Assim, pois,
caso se prossiga nas discussões a respeito de uma possível adesão do Brasil
a ALCA será absolutamente necessário promover a alteração substancial do
Artigo 3 do Capitulo sobre Serviços, de modo a conciliar interesses
preservando a independência e soberania do Brasil. Em termos específicos e
tendo em vista que na hipótese de divergências futuras será fortíssima a
pressão para o prevalecimento da ALCA, será indispensável assegurar
expressamente às Partes o direito de celebração de acordos regionais, que
possam prever a concessão de benefícios e privilégios recíprocos aos
integrantes desses acordos sem a obrigação de estendê-los a todos os
participantes da ALCA. Sem essa ressalva expressa o Capitulo sobre Serviços
será inaceitável.
2. Atenção à falsa reciprocidade
Em principio, as normas constantes do Capitulo sobre Serviços da ALCA
deverão ser aplicadas de modo igual a todos os participantes de acordo. Na
prática, entretanto, já existem elementos concretos que permitem concluir,
com base em dados bem precisos, que em muitas situações não haverá
reciprocidade. Esse risco, que poderá existir em relação a qualquer acordo,
é muito maior e de conseqüências muito mais graves quando se tem uma
proposta de extraordinária amplitude como é a da ALCA. Além disso, existe
um fato concreto que não deve ser ignorado nem deve ser omitido pelo temor
de ferir suscetibilidades: o proponente da ALCA será um parceiro muito mais
forte que, além disso, tem dado mostras de que não se submete a regras
jurídicas internacionais quando isso contraria seus interesses.
Como se sabe, no ano de 2002 o Congresso dos Estados Unidos concedeu
poderes ao presidente da República para realizar negociações e celebrar
acordos comerciais sem a prévia aprovação do Legislativo. Entretanto, ao
conceder tais poderes o Congresso fez uma ressalva muito importante,
estabelecendo que tais poderes conferidos ao Presidente não autorizam a
celebração de acordos que contrariem as salvaguardas dos interesses dos
Estados Unidos, ou seja, as regras limitadoras da liberdade julgadas
necessárias para a proteção dos interesses estadunidenses. Segundo foi
ressaltado pela própria imprensa dos Estados Unidos, são mais de quinhentas
salvaguardas, que incluem leis de imigração, cautelas fitosanitárias e
outras alegações, sendo importante lembrar que as salvaguardas foram
consideravelmente ampliadas pela obsessão ou pelo pretexto do combate ao
terrorismo.
Um fato muito ilustrativo das restrições que podem ser impostas nos
Estados Unidos aconteceu no ano de 2002 e foi noticiada pelos jornais
brasileiros, infelizmente de modo muito discreto e sem a indignação que
deveria estar presente. Um eminente professor de medicina brasileiro,
Professor Titular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo,
viajou para os Estados Unidos a fim de participar de um congresso
científico. Ali chegando foi impedido de ingressar nos Estados Unidos e
teve que regressar ao Brasil pelo simples fato de que seu nome revelava sua
origem árabe. Esse caso retrata bem a extensão que pode ser dada às
salvaguardas e a inutilidade dos acordos internacionais quando elas são
invocadas.
A propósito dessas salvaguardas vem, ainda, muito a propósito lembrar
uma queixa dos advogados mexicanos, relacionada justamente com a área de
Serviços. Nos quadros do acordo do NAFTA, ou seja, do acordo de livre
comércio dos países da América do Norte, deverá haver ampla liberdade para
o comércio dos serviços, inclusive na área jurídica. Valendo-se dessa
abertura e para assessoramento de empresas dos Estados Unidos que atuam no
México, já é bem grande o número de advogados estadunidenses prestando
serviços no México, em caráter permanente, a empresas multinacionais que
fizeram investimentos ou parcerias no território mexicano.
Em termos de reciprocidade deveriam estar abertas as fronteiras dos
Estados Unidos para os advogados mexicanos que desejassem transferir-se
para aquele Pais, a fim de prestarem serviços em caráter permanente, como
fazem no México muitos advogados vindos dos Estados Unidos. No entanto, com
base numa das salvaguardas isso não vem acontecendo:
embora o acordo do NAFTA não estabeleça restrições aos advogados mexicanos,
estas vêm sendo impostas com base nas quotas de imigração. Esse exemplo é
uma séria advertência, pois no momento da invocação da liberdade no
comércio de Serviços e da reciprocidade nas relações internacionais poderão
ser lembradas as numerosíssimas salvaguardas e o acordo só terá efetiva
aplicação num dos sentidos.
2. Redução da soberania por via indireta
Há alguns anos a Organização Mundial do Comércio vem pressionando os
países-membros para que reduzam ou mesmo anulem a possibilidade de
interferência do Poder Judiciário no mundo dos negócios. Quando o governo
Fernando Henrique Cardoso, através do Ministério da Justiça, resolveu
empenhar-se pela reforma do Judiciário não estava revelando qualquer
preocupação com a proteção dos direitos dos brasileiros ou com o acesso das
camadas mais pobres da população à proteção judicial. Na realidade, foi a
partir de uma cartacircular da OMC que o processo foi desencadeado e
somente não teve êxito porque, graças à vigilância de alguns brasileiros
conhecedores do assunto, foi estimulada a participação ativa da comunidade
jurídica na discussão do problema, com o que se evitou a redução da
independência do Poder Judiciário, preconizada pela OMC.
Existe, aliás, um antecedente, que remonta ao período da ditadura
militar no Brasil., após 1964, especialmente à década de setenta. Naquele
período foi fortemente estimulada, a partir do exterior e com participação
ativa da equipe econômica do governo brasileiro, a obtenção de empréstimos
externos, mediante o pagamento de juros altíssimos. Uma das
particularidades dos contratos de empréstimo então celebrados era a fixação
da competência de um tribunal de primeira instância dos Estados Unidos,
para a decisão de dúvidas e conflitos suscitados por aqueles contratos,
embora em muitos casos o próprio governo brasileiro participasse do
contrato na condição de avalista. Isso era evidentemente inconstitucional,
pois o Estado brasileiro não poderia ser réu perante um tribunal distrital
de Nova York, por exemplo.
Mais recentemente, já no governo Fernando Henrique, a ênfase passou
para a arbitragem. Utilizando o argumento da lentidão dos tribunais, mas
sem atacar as causas dessa lentidão e procurando disfarçar as restrições
impostas ao Poder Judiciário, inclusive em termos da destinação
insuficiente de recursos financeiros, o governo passou a dar grande ênfase
à arbitragem. Com a colaboração de alguns juristas, que faziam restrições
ao Poder Judiciário por vários motivos e que, a par disso, ficaram
deslumbrados com a perspectiva de modernidade que aparentemente acompanhava
a proposta da adoção ampla da arbitragem, passou-se a preconizar a
substituição das decisões judiciais por soluções arbitrais. Apenas como
informação, é interessante saber que o processo arbitral, descoberto agora
por alguns juristas e tido como grande novidade, já estava expressamente
previsto na primeira Constituição imperial brasileira, de 1824.
Um dado bastante revelador, que é importante conhecer e que deve
servir de advertência, é que o recurso à arbitragem, substituindo as
decisões judiciais, tem grande ênfase no acordo do NAFTA. Se forem
transpostas para a ALCA, no Capitulo de Serviços, as regras constantes do
NAFTA, como vem sendo preconizado, uma das conseqüências será a submissão
de órgãos públicos brasileiros a tribunais arbitrais, de natureza privada,
instalados no Brasil ou no exterior. Essa opção pela arbitragem, com o
afastamento do Poder Judiciário, seria duplamente inconstitucional no
Brasil. Em primeiro lugar porque, como já foi amplamente ressaltado, a
aceitação do Capitulo sobre Serviços da ALCA implicaria o estabelecimento
de livre comércio sobre Serviços em áreas de relevante interesse público e,
por isso mesmo, de responsabilidade de órgãos públicos. Na hipótese de
dúvidas ou conflitos envolvendo tais prestações de serviços, órgãos
públicos brasileiros poderiam ser obrigados a submeter-se à decisão de
tribunais arbitrais privados nacionais ou estrangeiros, contrariando as
disposições da Constituição brasileira que estabelecem as competências dos
órgãos judiciários para o conhecimento de controvérsias que envolvam órgãos
ou autoridades públicos.
A submissão das controvérsias sobre Serviços a tribunais arbitrais,
com afastamento do Poder Judiciário, seria inconstitucional por afrontar
diretamente a disposição do inciso XXXV do artigo 5o. da Constituição,
segundo o qual "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão
ou ameaça a direito". Ressalte-se, aliás, que nenhum Estado contemporâneo
poderá ser considerado democrático se não der essa garantia aos seus
cidadãos. E se nem o Congresso Nacional, por meio de lei, pode impedir o
acesso ao Judiciário, com maior razão impõe-se o reconhecimento de que um
acordo comercial não poderá chegar ao absurdo de pretender impedir o acesso
ao Judiciário, anulando o primado da Constituição.
3. ALCA: submissão certa e vantagem ilusória
Quando surgiu a proposta de criação da ALCA houve quem aderisse
rapidamente, pensando exclusivamente nos resultados econômicos que poderiam
ser obtidos com a abertura de acesso ao riquíssimo mercado consumidor dos
Estados Unidos. Com o passar do tempo e o amadurecimento das discussões
vários pontos negativos foram sendo lembrados e fatos significativos foram
sendo revelados, verificando-se que, além de muitos obstáculos de natureza
constitucional e legal, muitos problemas de ordem prática deveriam ser
considerados.
Um aspecto importante, envolvendo considerações de ordem econômica, é
a existência das numerosíssimas salvaguardas que fazem dos Estados Unidos
um dos campeões do protecionismo mundial. O Brasil mesmo já foi várias
vezes a OMC tentando eliminar ou reduzir barreiras impostas pelos Estados
Unidos às exportações brasileiras. A par disso, e em sentido contrário, é
preciso ter em conta que a abertura ampla e incondicionada à presença de
fornecedores e prestadores de serviços dos Estados Unidos poderá significar
a sufocação de organizações e profissionais brasileiros, como já vem
ocorrendo em outras partes do mundo. Um exemplo significativo dessa
interferência altamente prejudicial vem ocorrendo na Espanha, um país de
economia forte, e se refere à prestação de serviços na área da advocacia e
consultoria jurídica.
Aí está um fato contemporâneo, que merece séria reflexão. Nenhuma
área de serviços estará isenta da possibilidade de ocorrência de fenômeno
semelhante, que significa, praticamente, a anulação de um setor nacional de
Serviços, com a criação de uma dependência que não será fácil anular e que,
em muitas circunstâncias, sobretudo em países mais vulneráveis como o
Brasil, poderá implicar, e certamente implicará, gravíssimos prejuízos de
ordem social e cultural. A ânsia na busca de vantagens econômicas rápidas
não deverá reduzir o espírito crítico, nem deverá obscurecer a percepção
dos riscos e prejuízos que decorrerão das limitações à soberania nacional e
da renúncia ao desenvolvimento humano e cultural com a defesa da supremacia
dos valores fundamentais da nacionalidade.
VI. Conclusão
Como último ponto para reflexão, sobretudo para quem ainda se deixa
levar pela perspectiva de crescimento junto com os Estados Unidos, é
oportuno lembrar, uma vez mais, um dos muitos argumentos que têm sido
invocados pelo ilustre embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, quando
ressalta os inconvenientes da adesão do Brasil a ALCA e a falácia dos que
dizem que sem essa adesão o Brasil não terá condições de acesso ao mercado
estadunidense:
Brasil e Estados Unidos têm muitos acordos bilaterais e isso deverá
continuar existindo, pois interessa a ambas as partes. A diferença é que ao
aderir a ALCA o Brasil terá um poder de negociação muito menor, pois se
trata de um acordo multilateral, em que não é possível estabelecer
condições especiais para contemplar prioritariamente os interesses de dois
dos participantes. Isso poderá ser feito, e sempre foi feito, na realidade,
nos acordos bilaterais, em que cada uma das partes procura a promoção e a
defesa de seus interesses.
Obviamente, nem aí se tem total segurança, com a certeza de que não
haverá surpresas como a invocação das salvaguardas. Mas, sem dúvida alguma,
os riscos serão menores e, por outro lado, será maior a possibilidade de
resguardar a soberania brasileira. Não convém ao Brasil, nem seria
possível, o isolamento do resto do mundo ou a obtenção de vantagens em
acordos internacionais sem fazer qualquer concessão em beneficio das outras
Partes contratantes. Mas a integração do Brasil na comunidade internacional
deve ser feita com o resguardo dos interesses fundamentais do povo
brasileiro, buscando-se a realização de transações e trocas de Serviços sem
abandonar o espírito de solidariedade e a busca de promoção humana,
devendo-se ter a constante preocupação de assegurar a participação de todos
os brasileiros nos benefícios que puderem resultar das relações
internacionais.
Paris, 17 de Janeiro de 2003
https://www.alainet.org/de/node/106931
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