ALCA e comércio de serviços

17/01/2003
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1. ALCA: uma proposta, nenhum compromisso A adesão do Brasil a ALCA - Área de Livre Comércio das Américas, acordo internacional proposto pelos Estados Unidos, tem sido objeto de amplo noticiário e de muitas discussões, tendo merecido especial atenção do governo Fernando Henrique Cardoso, que, de vários modos, manifestou o desejo de levar o Brasil a aderir a essa proposta. Um ponto, entretanto, deve ficar bem claro desde logo: as manifestações de membros do governo brasileiro favoráveis a ALCA não implicam qualquer compromisso, jurídico ou moral, pois o comprometimento do Brasil só poderá resultar de um processo de negociações formais que culmine com a aprovação pelo Congresso Nacional. A vontade de aderir a ALCA, eventualmente manifestada por membros do governo brasileiro, terá refletido apenas uma opinião pessoal, que não se confunde com decisões de órgãos do Estado e que, por isso mesmo, não poderia acarretar e não acarretou qualquer compromisso a que o Brasil tenha ficado vinculado. É importante esclarecer desde logo esse ponto, para deixar fora de dúvida que, se assim o desejarem, os atuais governantes brasileiros poderão, inclusive, considerar encerradas as discussões sobre eventual adesão do Brasil à ALCA, sem que isso represente um desrespeito a compromissos assumidos pelo governo anterior ou uma ofensa às regras jurídicas e de cortesia que regem as relações internacionais. Não há dúvida de que o tema é importante, não convindo ignorá-lo ou tratá-lo como assunto de importância secundária, mas o presidente da República deve estar bem informado de que só a ele cabe decidir, com absoluta liberdade, que tratamento dar ao assunto. Parece de toda a conveniência que se proceda a um exame cuidadoso e objetivo dos termos da proposta da ALCA e de suas principais conseqüências, positivas e negativas, deixando claro que a decisão do presidente poderá ser no sentido de prosseguir nas discussões ou, ao contrário disso, no sentido de considerar que as conseqüências danosas da adesão, já identificáveis, recomendam que não se dê prosseguimento ao assunto, eliminando-se a hipótese de adesão do Brasil a ALCA. II. Necessidade de aprovação pelo Congresso Nacional É tempo de restabelecer no Brasil o hábito do respeito à Constituição e isso tem muito a ver com a celebração de acordos internacionais. Com efeito, durante o governo Fernando Henrique Cardoso tornou-se comum a celebração de acordos internacionais com a participação exclusiva de membros do Poder Executivo -ou do Ministério de Relações Exteriores ou da chamada "equipe econômica" -, como ficou muito evidente com a celebração de vários acordos com o Fundo Monetário Internacional, onerando o Brasil direta e indiretamente, como se verifica, por exemplo, pelo significativo crescimento da dívida externa brasileira e do item "pagamento de juros". Tudo isso foi discutido e decidido exclusivamente por membros do Poder Executivo, só se apresentando ao Congresso Nacional o fato consumado. Os termos da negociação e suas conclusões ficaram praticamente secretos e o Parlamento ficou sabendo do assunto pelos jornais, ou às vezes por ter recebido um simples comunicado do Executivo, só se tornando de conhecimento geral aquilo que os participantes das negociações quiseram divulgar. E, no entanto, os compromissos foram assumidos em nome do povo brasileiro, que, no fim de tudo, teve que arcar com os ônus. No entanto, diz a Constituição com toda a clareza: "Artigo 49- É da competência exclusiva do Congresso Nacional: 1. resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais 2. que acarretem encargos ou compromisso gravosos ao patrimônio nacional;" É bem verdade que também merece crítica a passividade do Congresso Nacional, que aceitou sem reação a anulação de sua competência. Entretanto, é necessário corrigir essa distorção inconstitucional. O Executivo tem competência legal para decidir se inicia ou não as negociações, mas uma vez decidido que é oportuno negociar seria de toda a conveniência que já nesse período houvesse a participação de membros do Congresso nacional, na condição de observadores, para que mais tarde, se o assunto chegar a ser objeto de deliberação pelo Congresso, eles possam dar aos membros do Parlamento informações precisas sobre os termos das negociações. De qualquer modo, com ou sem essa participação de congressistas na fase das negociações, é fundamental respeitar a Constituição e submeter à deliberação do Congresso Nacional qualquer proposta de acordo internacional que acarrete encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional. No caso da ALCA é mais do que óbvia a obrigação de obter a concordância do Congresso Nacional, pois, entre outras coisas, por sua extraordinária abrangência o acordo da ALCA afetará seriamente muitos setores da vida nacional, acarretando, inclusive, a necessidade de criar e reaparelhar organismos públicos para aplicação e controle dos preceitos da ALCA. Isso sem falar nas graves conseqüências sociais e econômicas, que certamente resultarão da aplicação das regras da ALCA e que demandarão providências onerosas, visando dar apoio aos setores mais atingidos. Para deixar fora de qualquer dúvida que a ALCA acarretará encargos e compromissos gravosos ao patrimônio nacional, basta lembrar o que dispõe a própria minuta da ALCA, no capítulo sobre Serviços, no item 5 da parte relativa ao "Tratamento especial e diferenciado': "As partes deverão disponibilizar os recursos adequados, inclusive os financeiros, na medida em que seus respectivos recursos e regulamentos assim o permitam, para poder avançar o ajuste ao processo gradual de liberalização do comércio hemisférico de serviços". Esse ajuste, como está expressamente reconhecido, terá um custo social e financeiro, ou seja, acarretará encargos e compromissos gravosos ao patrimônio nacional. Assim, pois, o acordo internacional para ingresso do Brasil na ALCA está entre aqueles que, segundo a Constituição, deverão ser submetidos ao Congresso Nacional, que tem competência exclusiva para resolver definitivamente sobre eles. Sem a aprovação pelo Congresso não há decisão definitiva e o acordo, ainda que contenha a assinatura do presidente da República, do Ministro das Relações Exteriores e de outros Ministros, não estará formalmente perfeito e não implicará qualquer obrigação. Por esse motivo, que é de fundamental importância, é absolutamente necessário que o Congresso Nacional esteja preparado para a eventualidade de ter de decidir definitivamente sobre a adesão do Brasil a ALCA. Na defesa de suas prerrogativas constitucionais, que nos últimos anos não foram levadas a sério, como o demonstra o número absurdamente elevado de medidas provisórias, bem como para bem desempenhar suas atribuições, o Congresso Nacional deverá participar ativamente do exame dos termos do acordo, ao contrário do que fez nos últimos anos relativamente aos acordos com o Fundo Monetário Internacional. Além disso tudo, é muito importante assinalar que durante a fase de discussão no Congresso Nacional haverá maior publicidade, o povo, no seu conjunto e pelas organizações e entidades com mais conhecimento do assunto, poderá ter efetiva participação no controle dos atos do governo e na decisão a respeito de acordos internacionais que poderão ter conseqüências muito graves sobre toda a vida nacional. Isso é exigência constitucional, que mesmo que não tivesse previsão expressa já estaria implícita na definição do Brasil como Estado Democrático de Direito. Assim, pois, muito mais do que simples formalidade, o debate da proposta de acordo no Congresso Nacional é garantia de governo democrático e meio de proteção dos legítimos interesses do povo. III. Princípios e normas constitucionais: observância obrigatória Uma das características do novo constitucionalismo, que começou a ser definido na seqüência da proclamação da Declaração Universal de Direitos Humanos, em 1948, é o reconhecimento do caráter obrigatório dos princípios e normas constantes da Constituição. Corrigindo uma distorção introduzida pelo constitucionalismo liberal-burguês, que dava a tais princípios e normas o caráter em obras teóricas de autores consagrados e em decisões jurisprudenciais de forte repercussão, considera que todos os princípios e normas constitucionais são vinculantes e imediatamente aplicáveis. Assim sendo, é indispensável ter em conta, sobretudo, alguns princípios e normas da Constituição brasileira que poderão ser afetados por um acordo internacional de tamanha amplitude e com enorme repercussão na vida social, como é o acordo da ALCA. Evidentemente, a verificação das limitações constitucionais interessa à análise de todo o acordo da ALCA, havendo, entretanto, alguns pontos que interessam mais especificamente ao exame do Capítulo sobre Serviços. Vejamos alguns dos princípios e normas que mais poderão ser afetados, para em seguida promover à análise de pontos específicos. Antes de tudo, por sua extraordinária importância para a independência dos povos, a liberdade e a democracia, deve ser ressaltado o princípio da soberania, com seus correlatos. Logo no artigo lo., ao enunciar os fundamentos da República, a Constituição brasileira faz expressa referência, em primeiro lugar, à "soberania". Mais adiante, no artigo 170, ao enunciar os "Princípios da Ordem Econômica", é apontada, no inciso 1, a "soberania nacional" como um desses princípios. Reforçando essas afirmações, que já são suficientes para que fique bem claro que será inconstitucional qualquer acordo que implique, direta ou indiretamente, a redução da soberania nacional, o artigo 40 da Constituição, no qual são enumerados os "Princípios que regem as relações internacionais do Brasil", ressalta, em primeiro lugar, a "independência nacional". É preciso fazer uma diferenciação entre os acordos internacionais que implicam a submissão do Brasil a determinadas regras constantes de tratados, pactos, convenções e acordos internacionais, mas sem obrigar os órgãos do Poder Público a tomarem decisões contrariando algum interesse público nacional relevante, e os acordos internacionais que, em sentido contrário, entregam uma parcela do governo do País a entidades externas. No primeiro caso não há inconstitucionalidade, tanto pelo alcance limitado das restrições livremente aceitas, quanto pela circunstância de que, estando inteiramente preservado o direito de autodeterminação, o Brasil poderá denunciar o tratado ou acordo, retirando-se dele quando isso for necessário ou conveniente para a preservação da soberania. Já no segundo caso -a entrega de uma parcela do governo a entidade externa- ocorre ofensa à Constituição por dois motivos. Um deles é que as funções de governo são exercidas por delegação do povo, como está expresso no parágrafo primeiro do artigo lo. da Constituição, segundo o qual "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente". Não pode, assim, o governante transferir a terceiro um poder que só exerce por delegação, mas que pertence ao povo. Outro motivo é que a transferência de funções de governo a entidade externa poderá dar a esta a possibilidade de criar situações sociais, políticas e econômicas que tornem o povo dependente daquela entidade externa em caráter permanente. Este, aliás, é um ponto fundamental, que interessa diretamente à área de Serviços: será sempre necessário verificar se, com a aparência de liberdade e reciprocidade, não estará sendo aberto o caminho para a sufocação de um setor nacional, com a conseqüente submissão, em caráter permanente, a um prestador externo de serviços. Outro princípio constitucional que deve ser lembrado neste momento é o da "dignidade da pessoa humana", que também é expressamente enunciado no artigo lo. da Constituição. Uma demonstração eloqüente das graves conseqüências que o desrespeito a esse princípio pode acarretar está muito evidente no aumento do desemprego, da marginalização, das discriminações econômicas e sociais, resultantes da submissão do Brasil ás "metas do Fundo Monetário lnternacional - FMI". O mais escandaloso efeito dessa entrega do governo ao FMI foi à obsessão pelo pagamento regular dos juros da dívida externa, uma das metas do FMI, às custas da saúde do povo brasileiro, tendo-se chegado ao absurdo de promover a redução dos gastos públicos mediante a dispensa de agentes de vigilância sanitária que atuavam no Rio de Janeiro, num momento em que os próprios órgãos do governo federal já tinham constatado a existência de uma epidemia de dengue naquela região. Um serviço essencial, de necessidade mais do que óbvia, foi desestruturado e deixou de ser prestado ao povo para atender às determinações dos governantes externos. Esse é um claro exemplo de acordo ofensivo à soberania e á dignidade da pessoa humana. Além disso, é também importante lembrar que a Constituição determina a adoção de políticas públicas que, em muitos casos, implicam a concessão de tratamento privilegiado a certas áreas ou a determinados tipos de atividades, visando o benefício geral do povo. Pode-se mesmo dizer que muito antes de entrar na moda a expressão "discriminação positiva" o Brasil já adotava essa prática, inspirado na busca de correção de injustiças sociais ou de situações de marginalização. Assim, por exemplo, a obrigação legal de assegurar que pelo menos dois terços dos postos de trabalho numa empresa fossem ocupados por brasileiro não teve inspiração xenófoba nem expressava resistência a qualquer estrangeiro mas, pura e simplesmente, decorreu do reconhecimento de assegurar um mínimo de possibilidade de vida digna e integração social ao trabalhador brasileiro. Aliás, nesse mesmo sentido e já considerando possíveis conflitos com a ALCA no Capitulo de Serviços, deve-se lembrar que a Constituição brasileira enumera no artigo 30. os "Objetivos Fundamentais da República Federativa do Brasil", entre os quais se incluem, segundo o inciso III, "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais". É óbvio que para atingir esses objetivos, que são da máxima relevância para a construção de uma sociedade justa e democrática, será necessária a concessão de benefícios especiais, dando tratamento privilegiado a regiões e a setores sociais mais carentes. Não se poderá admitir que, em nome da "liberdade no comércio e na venda de serviços" esse tratamento diferenciado, previsto na Constituição, não possa ser adotado, ficando o Brasil obrigado a garantir àqueles que só vêm à busca de mais lucro os mesmos benefícios que dispensar aos brasileiros que estão à espera de algum apoio para fugir de situações humilhantes e para preservar sua dignidade humana. Ainda em termos de exigências constitucionais, e neste caso lembrando um dispositivo que será especialmente importante na consideração do Capítulo de Serviços da ALCA, é necessário lembrar com bastante ênfase o que ficou estabelecido no parágrafo único do artigo 30. da Constituição, que se refere aos Objetivos Fundamentais da República: "Parágrafo único - A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações." A busca de integração latino-americana, pressupondo um tratamento diferenciado em relação aos outros povos do mundo, é determinação constitucional, é norma jurídica de máxima eficácia, vinculante, portanto, não podendo ser ignorada, suprimida ou contrariada por qualquer acordo internacional, devendo-se assinalar que tal determinação faz parte do objetivo mais amplo de promoção da dignidade humana. Assim, portanto, será contrário à Constituição pretender que uma orientação mais favorável ao relacionamento internacional, adotada no âmbito da integração da América Latina, tenha aplicação igual a outros Estados, situados fora desse âmbito regional, pois se assim fosse estaria sendo anulado o esforço de integração, exigido pela Constituição. Aí está, portanto, um conjunto de princípios e normas constitucionais que o acordo da ALCA não poderá contrariar. Em caso de conflito insuperável prevalecem as determinações constitucionais, mesmo que isso tenha como conseqüência final tornar inviável o acordo da ALCA. IV. Capítulo sobre Serviços: incompatibilidades e dúvidas 1. Noção de serviço: solidariedade social ou comércio Antes de tudo, há um ponto fundamental em que fica evidente a divergência entre a concepção de trabalho acolhida pela Constituição brasileira e a noção de serviço que embasa a proposta da ALCA no Capitulo de Serviços. Sendo expressão de um trabalho humano, a atividade classificada como serviço deve estar subordinada, segundo a Constituição, aos objetivos da promoção da dignidade humana e da valorização social do trabalho. Isso quer dizer que muitas vezes o serviço deverá ser prestado em condições anti-econômicas, procurando assegurar ao trabalhador que o executa o exercício da atividade em condições dignas e, ao mesmo tempo, buscando proporcionar o serviço a pessoas que necessitam dele e não têm a possibilidade de pagar o seu custo, ou apenas podem pagar uma parte. Quando houver interesse social relevante o Brasil deverá assegurar condições mais favoráveis aos prestadores de serviços, sejam eles nacionais ou estrangeiros, como já vem ocorrendo na área de saúde, de educação, de assessoria a movimentos sociais e em outras áreas. É oportuno lembrar, aliás, que nos últimos anos cresceu muito a prestação de serviços por Organizações Não-Governamentais, que utilizam trabalho voluntário mas também, em muitas situações, trabalho remunerado. Muitos desses prestadores de serviços suprem deficiências do Estado e por isso é razoável que tenham alguns privilégios, como a dispensa de tributos, o recebimento de verbas públicas ou a utilização de bens e meios do setor público para transporte de material, equipamentos e pessoas que vão executar os serviços. Tudo isso é compatível com os objetivos fixados na Constituição, mas está relacionado com a noção de serviço como expressão de solidariedade e como dever social, desligado do objetivo de lucro, ainda que possa proporcionar algum ganho econômico. Ora, na concepção que embasa a proposta da ALCA, o enfoque dos serviços é exclusivamente econômico. A própria linguagem dos documentos trai essa concepção, não havendo qualquer referência a condições excepcionais que se justifiquem em face de objetivos sociais e humanos relevantes. O serviço é sempre enfocado como parte do "comércio de serviços", pressupondo-se que todos os prestadores de serviços estão em busca de ampliação de mercados e aumento dos lucros. Assim sendo, na perspectiva da ALCA não se pode admitir que alguns tenham tratamento privilegiado, recebam vantagens e benefícios que não são assegurados igualmente a todos, pois o pressuposto é que nenhum dos prestadores de serviços tem outro objetivo que não seja o lucro. Se algum dos prestadores de serviços tiver objetivos humanitários e for movido pelo espírito de solidariedade terá que se sujeitar às condições da concorrência, participando da vala comum do comércio de serviços. Essa é a orientação da ALCA. É claramente reveladora desse enfoque à parte do Capítulo sobre Serviços que tem por subtítulo "Restrições para Proteger o Balanço de Pagamentos". No parágrafo de número 1 é prevista uma exceção, permitindo que uma Parte estabeleça restrições ao comércio de serviços no tocante às medidas estipuladas nos artigos relativos ao tratamento de nação mais favorecida, presença local, tratamento nacional e acesso a mercados. Com aparente liberalidade, esse item termina com o reconhecimento de que "determinadas pressões sobre o balanço de pagamentos podem tornar necessária à utilização de restrições para conseguir, entre outras coisas, a manutenção de um nível de reservas financeiras suficientes para implementar seu programa de desenvolvimento econômico ou de transição econômica". Coroando essas disposições, que ignoram completamente as emergências determinadas por necessidades sociais relevantes ou por exigências relacionadas com o desenvolvimento humano, no parágrafo de número 5 se diz que as partes que aplicarem esses dispositivos ficam obrigadas a "consultar prontamente sobre as restrições adotadas". E no final desse parágrafo, no item "e", está expresso o seguinte: "Nessas consultas, serão aceitos todos os dados estatísticos ou fatos de outra natureza que o FMI apresentar sobre questões cambiais, de reservas monetárias e de balança de pagamentos e as conclusões se basearão na avaliação feita pelo FMI da situação financeira externa e da balança de pagamentos da Parte objeto das consultas". Como fica evidente, são duas concepções, duas linguagens, dois objetivos, frontalmente opostos, o que torna muito difícil admitir a compatibilização. Note-se a absurda interferência do FMI, como um super- governo, ditando regras para os governos nacionais e decidindo soberanamente sobre a dispensa de aplicação dessas regras em casos especiais. Nenhum governo democrático, sério e responsável poderá aceitar essa interferência. Além disso, os serviços são enfocados numa perspectiva exclusivamente econômica e financeira, ignorando totalmente a realidade social das grandes áreas sociais e regionais pobres e marginalizadas, desesperadamente necessitadas de serviços essenciais para garantia da sobrevivência física e da dignidade da pessoa humana. É o mais arrematado absurdo imaginar uma consulta ao FMI para saber se o governo brasileiro pode conceder condições mais favoráveis a um grupo de brasileiros que, com espírito de solidariedade e consciência de seus deveres de cidadania, se disponha a prestar tais serviços em troca de uma remuneração mais do que modesta. Essa hipótese está longe de ser fantasiosa, pois já são muitas, em várias partes do Brasil, as entidades criadas por universitários e jovens profissionais que prestam serviços de grande relevância às camadas mais pobres da população, ministrando cursos e transmitindo conhecimentos básicos de direito, educação, saúde, economia, política, antropologia e outras áreas, prestando tais serviços gratuitamente ou mediante pequena remuneração. Se forem levadas adiante as discussões sobre a proposta da ALCA esses casos devem ser claramente ressaltados, para que interesses comerciais de prestadores de serviços não impeçam ou perturbem essas atividades que são do mais alto valor ético e social. 2. Serviços públicos delegados a particulares Uma vez que o objetivo da ALCA é a abertura máxima dos mercados, toda atividade que possa proporcionar lucro a alguém deverá ser possibilitada a qualquer pessoa ou entidade de um país signatário da ALCA. Isso tem aplicação ao Capitulo sobre Serviços, o que, entretanto, se for aplicado como pretendem os proponentes da ALCA, acabará obrigando o Brasil a admitir a igual participação de empresas estrangeiras, públicas ou privadas, na execução de serviços de natureza pública, com ofensa manifesta à soberania brasileira. Nos termos do artigo 196 da Constituição brasileira, a saúde é direito de todos e dever do Estado, o que já revela a natureza especial dos serviços prestados nessa área. Isso é ainda reforçado pelo disposto no artigo 197, segundo o qual "são de relevância pública as ações e serviços de saúde", cabendo ao Poder Público efetuar sua regulamentação, fiscalização e controle. Assim, portanto, uma vez que correspondem a um direito de todos, tais serviços podem ser exigidos, inclusive por via judicial, por quem deles necessite e não possa pagar. Além disso, por sua relevância pública, expressamente proclamada na própria Constituição, os serviços de saúde não podem ficar à mercê do livre jogo do comércio, estando implícito, pelo que afirmam esses dispositivos constitucionais, que o Poder Público deverá ter sempre a possibilidade de interferir nessa área, ou para implantar ou melhorar seus próprios serviços ou para estabelecer novas condições obrigando os prestadores dos serviços a se adaptarem a aquilo que for mais necessário ou conveniente em determinado local ou num certo momento. Bastaria isso para se concluir que os serviços de saúde, por sua relevância pública e por corresponderem a direitos de todo o povo brasileiro, não podem ficar sujeitos aos caprichos e às incertezas das competições comerciais. Imagine-se a hipótese, que já tem ocorrido em outras áreas, de uma grande empresa estrangeira prestadora de serviços de saúde que assume absoluto predomínio relativamente ao tratamento de certas moléstias ou numa determinada região do País e assim coloca a população sob sua dependência. Muitos profissionais da área de saúde deixarão suas atividades particulares ou públicas para se engajarem nessa empresa, que terá a possibilidade de oferecer instrumental mais moderno e melhor remuneração. E assim esse serviço de relevância pública e o direito à saúde do povo ficam, em grande parte, nas mãos dessa prestadora de serviços. Entretanto, de um momento para outro essa empresa decide transferir suas atividades para outra parte do mundo, porque será mais lucrativo. Afinal, ela participa do livre comércio de serviços e essa possibilidade de transferir-se para outro local faz parte do jogo do comércio. Fatos como esse já ocorreram e continuam a ocorrer no Brasil e em outros países, em áreas de atividades que não são da mesma relevância mas, mesmo assim, causando graves problemas sociais. Imagine-se o que poderia ocorrer se os serviços de saúde fossem tratados numa perspectiva puramente comercial, como pretende a proposta da ALCA. Basta imaginar essa hipótese para se concluir que no Brasil existe absolutamente incompatibilidade entre a proposta da ALCA e as definições e determinações constitucionais sobre os serviços de saúde. Caso prossigam as discussões sobre a proposta da ALCA, será indispensável reformular o artigo 7 do Capítulo sobre Serviços, onde se trata do "Acesso aos Mercados". Eventualmente, poderiam ser introduzidas modificações na proposta, para que o Brasil possa estabelecer condicionamentos e limitações (que a proposta proíbe, falando em "quotas numéricas" ou limitações quanto ao volume total de serviços), visando impedir o estabelecimento de monopólios ou quase-monopólios e também buscando assegurar a extensão dos serviços a todo território nacional, para que eles não se limitem às regiões mais ricas. Mais uma vez é oportuno lembrar que a ALCA é apenas uma proposta, que poderá ser aceita ou rejeitada, no todo ou em parte, com ou sem modificações. No caso da área de saúde, existem no Brasil princípios e normas constitucionais que devem prevalecer sobre qualquer acordo. Em caso de incompatibilidade não se há de pretender o absurdo de modificar a Constituição para ajustá-la à proposta de acordo. Esta é que deverá ser modificada para que se torne compatível com as exigências constitucionais. Na mesma linha das considerações feitas quanto à prestação de serviços na área de saúde, podem ser analisados também os serviços na área de educação. Esta, de acordo com o disposto no artigo 205 da Constituição, é "direito de todos e dever do Estado e da família", estabelecendo ainda o mesmo dispositivo constitucional que ela será "promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho". Embora não se use aí a expressão "relevância social", ela decorre expressamente dos objetivos da educação, ligados ao desenvolvimento humano, ao exercício da cidadania e ao preparo para o trabalho. Por essa extraordinária relevância para a vida presente e futura do pais, a jurisprudência brasileira considera os serviços de educação, quando prestados por particulares, como atividade delegada do Estado. Prova disso é que já são muitos os casos de concessão de Mandado de Segurança contra atos de dirigentes de escolas privadas, embora essa garantia constitucional esteja expressamente prevista para proteger direitos ameaçados ou ofendidos por ato ilegal de "autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público". Desse modo, mesmo quando prestados por particulares os serviços de educação devem ser considerados de natureza pública, o que, em principio, elimina a possibilidade de sua delegação a estrangeiros. Mas relativamente à educação, que é também direito de todo o povo brasileiro, deve-se acrescentar ainda que é o meio para o desenvolvimento moral e intelectual dos brasileiros, é o instrumento para a preservação, a transmissão e o enriquecimento da cultura nacional, sendo também um fator de fortalecimento da consciência de cidadania. Esses valores, que são fundamentais, não podem ser objeto de comércio nem podem ficar na dependência das conveniências de quem não participa deles e não tem interesse em sua preservação, enriquecimento e transmissão a gerações futuras. Poderá alguém querer argumentar com o fato de que foram muitas, na história brasileira, as instituições de ensino vindas do exterior e dirigidas por estrangeiros que exerceram enorme e benéfica influência na formação de muitas gerações de brasileiros, ou proporcionando educação mais refinada aos jovens das camadas sociais superiores ou, através da preparação para a vida religiosa, dando possibilidade a que jovens de origem pobre e modesta recebessem melhor educação. Isso é verdade, mas de modo algum se poderá confundir essa participação na educação brasileira, inspirada em altos propósitos de caráter moral ou religioso, com a disputa pelo comércio dos serviços de educação. É oportuno, aliás, lembrar que existe hoje o reconhecimento geral de que nos últimos tempos houve significativo decréscimo da qualidade do ensino no Brasil. Como tem sido assinalado, isso é devido, em grande parte, à forte influência de fatores de ordem econômica na destinação de recursos para a educação. As escolas públicas, de todos os níveis, passaram a ser tratadas como itens da despesa, não reprodutiva do ponto de vista econômico, quase como gastos supérfluos. Em conseqüência, além do decréscimo na remuneração dos professores, que é um importante fator de desestimulo, os equipamentos escolares passaram a denunciar a insuficiência de recursos, não sendo raras as noticias sobre escolas com instalações deterioradas, registrando-se inúmeros casos, noticiados pela imprensa, de alunos tendo aulas em galpões improvisados, ou porque ocorreu o desabamento de um teto, ou porque com a chuva há infiltração de água pelo teto esburacado, além de ocorrer também à deficiência de vagas em escolas de primeiro grau. Esse é o resultado da submissão da educação a critérios prioritariamente econômicos, como pretende a proposta da ALCA sobre Serviços. Ainda como fato bastante ilustrativo, para que se veja que os graves malefícios do enfoque econômico não são meras suposições mas têm comprovação nos fatos, é importante lembrar o que ocorreu na Universidade Federal do Rio de Janeiro, a maior Universidade Federal brasileira, no final do ano de 2002. Com a preocupação de cumprimento rigoroso das metas do Fundo Monetário Internacional, o governo brasileiro reduziu substancialmente a destinação de recursos às Universidades públicas. Uma das conseqüências foi que a Universidade Federal do Rio de Janeiro ficou sem meios para pagar as despesas relativas ao consumo de energia elétrica e por esse motivo sofreu o corte no fornecimento da energia. Durante vários dias tiveram que ser suspensas praticamente todas as atividades da Universidade, com evidente prejuízo para o ensino e a pesquisa, chegando-se ao extremo de interromper a prestação de serviços de emergência no Hospital Universitário, pela falta de energia elétrica. Esse fato, de extrema gravidade, não pôde ser escamoteado, por sua enorme repercussão e pela indignação que causou nos meios universitários e entre as pessoas conscientes da importância de uma instituição educacional daquele porte e com aquelas tradições, tendo sido escancarada pela imprensa à situação de penúria e humilhação da maior Universidade Federal brasileira, de importância mais do que óbvia para a educação no Brasil. Na perspectiva do mercado de serviços esse seria um fato rotineiro. Por tudo isso, e na mesma linha das observações feitas quanto aos serviços de saúde, não existe qualquer possibilidade de compatibilizar as exigências constitucionais quanto aos serviços de educação com a entrega de tais serviços ao livre jogo do comércio, devendo-se, portanto, considerá- los excluídos da hipótese de fazerem parte de um eventual acordo sobre livre-comércio de serviços. Só se deverá cogitar da inclusão de serviços de educação num acordo como a proposta da ALCA se for admitida à introdução de ressalvas e limitações na proposta, considerando as peculiaridades da educação. As áreas básicas, de todos os níveis, não poderão ser incluídas no comércio de serviços, uma vez que são fundamentais para a formação das consciências, para a preparação e o estímulo para o exercício da cidadania, assim como, no caso do ensino superior, para a formação de especialistas e dirigentes preocupados com o desenvolvimento humano e cultural dos brasileiros e com a superação da extrema dependência em matéria de ciência e tecnologia. As regras constitucionais estão fixadas e devem ser totalmente respeitadas, porque correspondem à vontade, às necessidades e às aspirações do povo brasileiro. Os objetivos da educação, assim como os da saúde, estão fixados na Constituição e determinam a prioridade de valores que estão fora do comércio. Uma eventual proposta de acordo sobre Serviços nessas áreas é que deverá adaptar-se a essas regras e aceitar as limitações necessárias, para que seja possível discutir tal proposta. 3. Serviços públicos terceirizados Outro ponto de grande relevância, que deve ser analisado com o máximo cuidado, é o que se refere aos serviços públicos terceirizados. Como é amplamente sabido, na linha das propostas neo-liberais de privatização e de esvaziamento do Estado passou-se a praticar amplamente a terceirização no setor público, mediante a contratação de particulares para a realização de serviços de que o Poder Público necessita para o desempenho de suas atribuições. Assim, por exemplo, atividades como a segurança, o fornecimento de alimentação, a limpeza e outras atividades em hospitais, escolas, Universidades e repartições de modo geral foram transferidas a organizações privadas de prestação de serviços. É importante observar que essa terceirização de parte das atividades não retira das instituições seu caráter público e os serviços nelas prestados, no seu conjunto, incluindo as partes terceirizadas ou não, continuam a ter a natureza de serviços públicos. Prossigamos. De acordo com o previsto no artigo 1 do Capitulo sobre Serviços da ALCA, mais especificamente na cláusula 1.5, todos os serviços devem ser incluídos no acordo e, portanto, na disputa do comércio de serviços, sendo admitida uma única exceção: os serviços prestados no exercício de poderes governamentais. Ora, os exemplos há pouco citados já mostram que, aceitando-se a proposta da ALCA nesses termos, muitos serviços públicos brasileiros, que são serviços prestados por agentes públicos para o povo, deixarão de ser geridos e executados dando prioridade ao interesse público, pois lançados na vala comum do comércio dos serviços eles serão oferecidos como atividades comerciais, cujo objetivo maior é o lucro. Isso, em principio, é contraditório, pois são mantidos como serviços públicos àquelas atividades que, por uma série de circunstâncias, o legislador brasileiro entendeu que será necessário ou conveniente que fiquem a cargo dos Poderes Públicos. Na onda das privatizações promovidas no Brasil nos últimos anos, aqueles setores que se considerou sem justificativa para permanecerem na área pública foram privatizados, continuando a manter o caráter público aqueles que foram julgados especialmente comprometidos com o interesse público. Assim, pois, o que faz parte de um serviço público não deve ser entregue à área do comércio de serviços, pois no caso de conflito, que pode facilmente ocorrer, entre o interesse do público usuário e o do prestador comercial do serviço, deverá prevalecer, obviamente, o interesse público, contrariando o previsto na minuta de acordo da ALCA. Considerando um dado da realidade que pode tornar ainda mais grave essa hipótese de conflito, é oportuno lembrar que já existe hoje no Brasil uma discussão sobre a terceirização de setores de relevante interesse público, como o serviço informatizado dos Tribunais e a administração dos presídios. Em ambos os casos trata-se de setores do Poder Público diretamente relacionados com o exercício da soberania, setores que, por sua própria natureza, são reservados com exclusividade ao Estado, como está previsto na Constituição. A terceirização de serviços em tais setores, embora esteja encontrando sérias resistências, poderá entretanto ocorrer, devendo-se lembrar que o sistema prisional brasileiro inclui estabelecimentos federais e estaduais, havendo entre estes grande diversidade. Nesse caso, será fundamental estabelecer limitações estritas sobre o âmbito das terceirizações, que só poderão ser parciais, bem como assegurar o controle estrito e permanente sobre a execução dos serviços terceirizados, para que em nenhuma hipótese deixe de ser prioridade o interesse público ou haja desvios de qualquer espécie que acarretem prejuízo aos objetivos e à qualidade dos serviços, bem como ao resguardo do sigilo sobre dados que não devam ser dados à publicidade. E obviamente, por se tratar de serviços públicos essenciais, ligados à manutenção da ordem e ao cumprimento de objetivos constitucionais, não é admissível que tais serviços sejam entregues a estrangeiros participantes do comércio de serviços, como se tratasse de mais uma atividade comercial. Essas restrições e esse resguardo poderão conflitar com a proposta da ALCA, uma vez que os interessados na contratação para a execução de tais serviços poderão tentar argumentar que no caso das terceirizações de determinadas partes dos serviços não se estará efetuando a transferência de "poderes governamentais". Além disso, de acordo com o disposto no item "b" da cláusula 1.5, não se considera "serviço prestado no exercício de poderes governamentais" aquele que não seja prestado em condições comerciais "nem em concorrência com um ou vários fornecedores de serviços". Ora, conforme exigência expressa do artigo 37, inciso XXI, da Constituição brasileira, os serviços cuja execução o Poder Público decidir contratar com terceiros "serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes". Estará sempre aberta, necessariamente, a possibilidade de participação de vários concorrentes ao fornecimento dos serviços e isso, segundo a proposta da ALCA, tira o caráter de serviço prestado no exercício de poder governamental. Em conseqüência, torna-se obrigatório o seu enquadramento no âmbito do livre comércio dos serviços que é objeto da ALCA, devendo ser assegurada igual possibilidade de participação a todos os fornecedores de serviços dos países que fizerem parte do acordo. Assim, portanto, por tudo o que acaba de ser exposto, verifica-se a necessidade do cuidadoso estabelecimento de regras especiais, visando à hipótese da terceirização de serviços públicos. Os termos da proposta da ALCA são inaceitáveis, pois se eles forem mantidos estará sendo concedido a estrangeiros o direito de participar da execução de serviços públicos essenciais, que, ainda que sejam terceirizados, deverão ser executados mediante estrito e permanente controle de autoridades governamentais brasileiras, fazendo parte do exercício da soberania. 4. Serviços prestados por profissionais qualificados Um problema grave, que já vem suscitando sérias controvérsias e que exige especial cuidado, uma vez que já se formulou a pretensão de que o Brasil abra mão de exigências legais, as quais foram estabelecidas com prudente critério e segundo o interesse público, é O dos serviços prestados por profissionais especialmente qualificados. O exemplo mais claro da existência de graves divergências e que será muito bom analisar, porque já deu margem a discussões públicas e ao aprofundamento das reflexões, é o dos Serviços de Advocacia. Na seqüência das novas investidas das empresas multinacionais a partir do desmoronamento da União Soviética, na última década do século vinte, divulgou-se o pretexto da existência de uma nova realidade rotulada de globalização, que uns aceitaram por convir aos seus interesses econômicos e outros adotaram por ingenuidade ou ignorância. Nunca definida ou conceituada, a globalização passou a ser entendida mais ou menos como sendo a extensão dos negócios para âmbito mundial, como se isso já não tivesse ocorrido há pelo menos quinhentos anos, com as grandes navegações, a rota da seda, os grandes empreendimentos comerciais holandeses denominados Companhia das índias Orientais e Companhia das Índias Ocidentais, esta com presença marcante no Brasil do século dezessete e com sinais concretos visíveis ainda hoje na cidade do Recife. A partir do argumento da globalização, muitos governos, como o brasileiro, promoveram a transferência de atividades públicas para o setor privado, em condições muito vantajosas para os que receberam o patrimônio e o direito de fornecer bens e prestar serviços, além do que, para favorecer os empreendedores privados, o governo promoveu a redução dos direitos dos trabalhadores e flexibilizou as regras sobre a participação econômica de estrangeiros. Com isso intensificou-se a presença de investimentos e parcerias de empresas multinacionais no Brasil, ampliando-se uma participação que já tem muitas décadas. Uma conseqüência dessa expansão foi à necessidade de contar com o serviços de advogados conhecedores das leis, da jurisprudência e dos costumes comerciais, não só do Brasil mas também dos países de origem dos investidores, sobretudo dos Estados Unidos. Um sinal bem visível dessa nova prática foi o considerável aumento do número de sociedades de advogados no Brasil, especialmente a ampliação do número de grandes escritórios de advocacia, que passaram a se preocupar em ter nos seus quadros profissionais conhecedores do direito e das práticas jurídicas externas. Isso, entretanto, parece não ter sido considerado suficiente por muitas empresas multinacionais, que preferem ter no Brasil um advogado formado e treinado em seu país de origem e que tenha também conhecimento do direito brasileiro ou atue junto com colegas brasileiros. Aqui começa o problema, pois há muitos anos o exercício da advocacia no Brasil tem regulamentação legal, que não impede o estrangeiro de prestar serviços de advocacia mas faz exigências perfeitamente razoáveis, para defesa dos direitos e interesses dos que recorrerem aos serviços do advogado e para que tais serviços sejam prestados com estrita observância dos princípios e normas constitucionais e da legislação vigente no Brasil. Como tem sido noticiado, empresas e advogados estrangeiros, sobretudo dos Estados Unidos e da Europa, pretendem que o Brasil reduza as exigências para que profissionais estrangeiros prestem serviços no Brasil, tendo havido sinais evidentes de que o governo Fernando Henrique Cardoso dava apoio a essa pretensão, que, no entanto, vem encontrando forte resistência da Ordem dos Advogados do Brasil, com o argumento, que mais adiante se verá que é verdadeiro, de que as exigências são absolutamente razoáveis e compatíveis com a necessidade de defesa da ordem jurídica brasileira. Conforme noticiou a "Folha do Instituto dos Advogados do Brasil" (Número 52, de Novembro de 2002), foi realizado no mês de Agosto de 2002, com discreta divulgação, o lo. Encontro Nacional ltamaraty-Escritórios de Advocacia, com a participação de representantes de 123 escritórios de advocacia. Naquela oportunidade o Diretor Geral do Departamento econômico do ltamaraty, embaixador Valdemar Carneiro Leão, afirmou que nenhum compromisso foi assumido até agora envolvendo serviços de advocacia, nos diversos encontros internacionais sobre Serviços. Entretanto, como foi observado pelo Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e presidente da Comissão de Sociedades de Advogados, o advogado Sérgio Ferraz, presente ao encontro -e a publicação do Instituto dos Advogados do Brasil registrou esse fato - na mesma oportunidade aquele órgão do Ministério de Relações Exteriores distribuiu aos participantes um documento muito significativo: um extenso relatório da OMC, intitulado Legal Services, posicionando-se frontalmente contra as regras legais que disciplinam o assunto no Brasil. Foi também distribuída uma Declaração originária da OMC, firmada em reunião realizada em Doha em novembro de 2001, preconizando a livre circulação de serviços no mundo. Como fica evidente, a única justificativa para a distribuição de tais documentos naquela reunião era a intenção de que eles fossem conhecidos e considerados, sendo surpreendente e devendo servir de advertência o fato de que eles foram distribuídos pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Note-se, ainda, como assinala o órgão noticioso do Instituto dos Advogados do Brasil, que a Ordem dos Advogados do Brasil não foi convidada para o encontro, embora seja dela a responsabilidade pela fixação das regras sobre a prestação de serviços de advocacia no Brasil. Teria sido pelo menos razoável ouvir naquela oportunidade um representante da Ordem dos Advogados, conhecer a justificativa para as regras por ela estabelecidas e, eventualmente, discutir a hipótese de modificação. Esses fatos relacionados com os serviços de advocacia são muito importantes, pois dão margem à conclusão de que os órgãos do governo brasileiro que até agora participaram das discussões sobre o comércio de serviços estão propensos a defender a mais ampla liberalização, que, aliás, já tem sido proposta como reivindicação de escritórios de advocacia dos Estados Unidos. Assim, pois, convém conhecer um pouco mais sobre o assunto, pois através do debate sobre serviços de advocacia pode-se verificar como vem sendo conduzido até aqui o assunto, por órgãos do governo brasileiro, verificando-se também em que medida podem ser aceitas, ou não, as alegações de excesso de restrições à prestação de serviços por estrangeiros. Serão realmente exageradas e discriminatórias, como alegam os estadunidenses, as exigências formuladas na legislação brasileira para a prestação de serviços de advocacia por estrangeiros ? Mais ainda: supondo- se que essas regras possam ser eliminadas por serem injustificáveis, haverá a certeza de reciprocidade, para que brasileiros tenham ampla liberdade para prestar serviços de advocacia em todos os participantes do acordo da ALCA? O exame dessas questões, relativamente aos serviços de advocacia, será de grande utilidade para uma reflexão sobre o mesmo problema, ou seja, a pretensão do estabelecimento do livre comércio de serviços, em relação a outras áreas profissionais em que a lei exige dos prestadores de serviços uma qualificação especial, como ocorre, por exemplo, nas áreas de saúde. Em relação aos serviços de advocacia, a regra máxima e basilar é o inciso XIII do artigo 50. da Constituição. Segundo esse dispositivo, "é livre o exercício de qualquer trabalho, oficio ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". Tendo recebido, por meio da lei federal número 8906, de 1994, a competência para disciplinar o exercício da profissão de Advogado, inclusive fixando as regras para ingresso na profissão e o exercício profissional, a Ordem dos Advogados do Brasil estabeleceu que só podem prestar serviços de advocacia no Brasil os profissionais que tenham obtido aprovação num curso jurídico e estejam inscritos nos quadros da Ordem dos Advogados. Alertada pelo considerável aumento do número de consultores jurídicos, inclusive estrangeiros, ocorrido nos últimos anos em decorrência da expansão das atividades empresariais, aquela entidade legalmente incumbida de disciplinar o exercício da advocacia no Brasil editou o Provimento número 91, de 13 de março de 2000, tratando especificamente da prestação dos serviços de consultoria. Em relação aos estrangeiros, existem duas exigências: uma delas, de ordem geral, é que se inscrevam na Ordem dos Advogados, exatamente como se exige de todos os brasileiros; a par disso, o Provimento em questão exige que o consultor jurídico seja "profissional em Direito, regularmente admitido em seu país para exercer a advocacia". Para a inscrição de profissional nos quadros da Ordem dos Advogados exige-se a conclusão de um curso de Direito, o que é absolutamente razoável, pois o profissional irá influir sobre direitos que envolvem a vida, a liberdade, a intimidade, a família, o patrimônio e outros bens fundamentais da pessoa humana, sendo necessário que ele disponha de conhecimentos jurídicos básicos que lhe permitam conhecer e proteger os direitos confiados ao seu patrocínio. Além disso o profissional do Direito tem o dever de respeitar, preservar e defender a ordem jurídica vigente no Brasil, o que também exige que ele tenha conhecimento básicos, sobretudo do direito brasileiro. O brasileiro ou estrangeiro que tenha concluído fora do Brasil seu curso de Direito ficam na mesma situação. Ambos devem, primeiro, promover a revalidação de seu diploma, o que deverá ser feito numa escola de Direito, de Universidade legalmente autorizada para tanto. Fazendo-se o exame do currículo do curso concluído pelo interessado, verifica-se quais disciplinas, do currículo básico das escolas de Direito brasileiras, o interessado não cursou. Ele será, então, obrigado a cursar tais disciplinas ou a submeter-se a exame sobre elas. Assim, por exemplo, quem tiver feito um curso de Direito fora do Brasil não terá estudado Direito Constitucional brasileiro, que é disciplina básica e cujo conhecimento é absolutamente indispensável para quem pretenda prestar serviços na área jurídica em nosso País. Assim sendo, tanto o estrangeiro quanto o brasileiro que estiver nas mesmas condições têm que satisfazer o mesmo requisito, não havendo como falar em discriminação. A queixa mais freqüente quanto ao processo de revalidação refere-se à lentidão dos procedimentos, pois há escolas que, ou por serem mais minuciosas ou por terem um sistema burocrático menos eficiente, são extremamente demoradas na conclusão do processo de revalidação. Assim, por exemplo, no final do ano de 2001 constatou-se, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que um pedido de revalidação já estava tramitando na Universidade fazia cerca de quatro anos. Por coincidência, a interessada, que havia cursado uma tradicional escola de Direito dos Estados Unidos, era filha de um professor da própria Faculdade de Direito de São Paulo. A demora, naquele caso, era resultante de embaraços burocráticos absurdos, criados no âmbito da administração central da Universidade. Como se vê, era uma brasileira a interessada e também ai não se pode falar em discriminação, sendo natural e absolutamente razoável pretender-se a simplificação ou aceleração dos procedimentos, em benefício de todos os interessados. Mas seria discriminatório, isto sim, dispensar o estrangeiro dessa tramitação, para livrá-lo dos percalços da demora, continuando o brasileiro a sujeitar-se a ela. O problema da eventual demora na revalidação dos diplomas é interno e de interesse geral, não cabendo tomá- lo como justificativa para criar uma regra mais favorável ao estrangeiro, no momento de fixar as normas de um acordo internacional sobre o comércio de Serviços. Obtida a revalidação do diploma, o interessado poderá solicitar sua inscrição na Ordem dos Advogados, devendo submeter-se a uma prova de conhecimentos básicos, tanto teóricos quanto relacionados com a aplicação quanto relacionados com a aplicação das normas jurídicas, sendo absolutamente igual essa prova para todos os candidatos inscritos, sejam eles brasileiros ou estrangeiros. A dificuldade maior para o estrangeiro poderá resultar do maior ou menor domínio que ele tiver da língua portuguesa, dificuldade que será equivalente à do brasileiro que pretenda atuar profissionalmente fora do Brasil, o que não se pode dizer que seja a expressão de uma discriminação. Assim, pois, são absolutamente razoáveis as exigências legais brasileiras para a prestação dos serviços de advocacia, não se justificando a pretensão de eliminá-las para favorecer o acordo sobre comércio de Serviços. Ainda em relação aos serviços prestados por Advogado, existe mais um aspecto, muito grave, que é lembrado por Sérgio Ferraz num excelente artigo denominado "Exercício da Advocacia no Brasil por Profissional Estrangeiro", publicado na Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, no. 73, edição de Julho/Dezembro de 2001. Pela minuta do Acordo Geral sobre Serviços da ALCA, somente são excluídos do livre comércio sobre Serviços àqueles prestados no exercício de autoridade governamental, conforme já observamos anteriormente. Ora, lembra bem Sérgio Ferraz que, de acordo com disposição expressa do artigo 133 da Constituição brasileira, "o advogado é indispensável à administração da justiça", o que lhe dá a condição de complemento necessário do aparato judiciário, associando-o ao exercício do Poder Judiciário, que é uma das expressões do poder soberano do Estado brasileiro. Assim, portanto, ainda que se admita a prestação de serviços por advogado estrangeiro, é perfeitamente razoável a exigência de inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil e de submissão ao poder disciplinar dessa instituição, pois na prestação desses serviços estará envolvida a preservação da ordem jurídica brasileira, sendo necessário exigir muito mais do que a simples obediência a regras gerais do comércio. Embora alguns dos pontos ai considerados sejam específicos da área jurídica, a questão geral e mais ampla que se coloca, e para a qual a experiência dos advogados será de grande utilidade, é a da prestação de serviços em áreas que exigem especial qualificação profissional, como está previsto no artigo 5o., inciso XIII, da Constituição, e está complementado na legislação que trata dos Conselhos que disciplinam o exercício de determinadas profissões. É o que acontece, por exemplo, com médicos, farmacêuticos, enfermeiros, nutricionistas e outros profissionais da área de saúde, mas ocorre igualmente em outras áreas profissionais, nas quais se considera necessário um controle mais rigoroso da preparação e do desempenho dos prestadores de serviços, em vista dos graves efeitos negativos que poderão resultar, para as pessoas e a sociedade, do mau desempenho. Tudo isso recomenda que sejam cuidadosamente discutidas as regras relativas ao Comércio de Serviços, não se podendo abrir mão de cautelas especiais que já constam da legislação brasileira e que nada têm de exageradas ou discriminatórias. Haverá muitas áreas que poderão ser tratadas de modo uniforme, com regras amplas e exigências mínimas, sem que isso crie riscos ou acarrete conseqüências negativas previsíveis. Isso, entretanto, não justifica a total liberdade de comércio, para todas as áreas de prestação de Serviços, ignorando-se os riscos e prejuízos que foram aqui assinalados com base em experiências e não apenas em suposições. V. Efeitos práticos negativos previsíveis 1. Anulação de acordos regionais Não é necessário um exame muito minucioso dos termos da minuta do Capítulo sobre Serviços do acordo da ALCA para se concluir que se for celebrado esse acordo nos termos propostos estarão praticamente anulados outros acordos já celebrados pelo Brasil. Além disso, estará impossibilitado o estabelecimento de regras diferenciadas, mais benéficas, visando dar cumprimento à determinação constitucional sobre a busca de integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina. Com efeito, o Artigo 3 do Capitulo sobre Serviços contém uma regra de excepcional amplitude: Cada Parte deverá conceder, imediata e incondicionalmente, aos serviços e prestadores ou fornecedores de serviços de outro Parte, um tratamento não menos favorável do que aquele que concede aos serviços semelhantes e prestadores ou fornecedores de serviços semelhantes, de qualquer Parte ou país que não seja Parte no acordo da ALCA. Desse modo, se o Brasil tiver celebrado ou vier a celebrar acordos com os países integrantes do MERCOSUL haverá duas hipóteses: ou esses países também farão parte do acordo da ALCA e desse modo tudo o que for concedido a eles se aplicará automaticamente a todos os integrantes da ALCA; ou, diferentemente disso, esses integrantes do MERCOSUL não serão Partes na ALCA e neste caso, por força do disposto no Artigo 3 acima referido, o que for concedido a eles deverá ser imediatamente assegurado também a todos os integrantes da ALCA. Existe, aparentemente, uma exceção a essa regra, que deveria preservar os acordos do MERCOSUL. É o que dispõe o parágrafo 3.2 do Capitulo sobre Serviços, dizendo que as disposições desse Capítulo não deverão ser interpretadas no sentido de impedir que uma Parte proporcione ou conceda vantagem a países adjacentes para facilitar intercâmbios, limitados às zonas fronteiriças contíguas, de serviços que sejam produzidos e consumidos localmente. A leitura atenta desse dispositivo revela que seu alcance é extremamente limitado, pois a exceção só se aplica a "zonas fronteiriças contíguas", e não a todo o pais vizinho, e a serviços que sejam "produzidos e consumidos localmente", ou seja, somente aqueles produzidos e consumidos em municípios vizinhos, ou seja, um volume insignificante de serviços. Essas disposições estão, aparentemente, em contradição com o parágrafo 3.6 do Capitulo sobre Serviços, segundo o qual o acordo da ALCA não deverá impedir nenhuma das Partes de participar de acordos que busquem a liberalização do comércio de serviços ou uma integração econômica mais ampla no nível sub-hemisférico. De fato, os integrantes da ALCA não estarão impedidos de celebrar acordos regionais, mas se o fizerem deverão estender a todos os demais participantes da ALCA os mesmos benefícios concedidos a terceiros, conforme dispõe o Artigo 3. Essa restrição, que, na realidade, inutiliza os acordos regionais, é confirmada pelo parágrafo 3.4, que dispõe incisivamente: "A ALCA pode coexistir com acordos bilaterais e sub-regionais na medida em que os direitos e obrigações constantes desses acordos não estiverem cobertos ou superem os direitos e obrigações da ALCA". Isso quer dizer que os acordos regionais só podem conceder aos seus integrantes menos do que aquilo que for concedido aos que forem Partes na ALCA. Se concederem mais será imediatamente estendido a todos os signatários do acordo da ALCA. E aquilo que constar de um acordo regional e que já estiver previsto num dos dispositivos da ALCA, ainda que com alcance diferente e em outra conotação, não terá validade, prevalecendo a ALCA. Em última análise, não há exagero em concluir que se for mantida a redação do artigo 3 e seus parágrafos estarão praticamente anulados o MERCOSUL e outros acordos regionais, o que dá a ALCA os poderes de um super-acordo, que anula a possibilidade de solidariedade e apoio recíproco em âmbito regional. E no entanto é mais do que necessário que se apóie e estimule a solidariedade regional, para que se possa promover um desenvolvimento independente e fugir à situação de extrema submissão e dependência em relação às superpotências econômicas, como existe atualmente. No caso brasileiro, a aceitação dessas tremendas limitações impostas pela ALCA seria contrária a uma determinação constitucional. Assim, pois, caso se prossiga nas discussões a respeito de uma possível adesão do Brasil a ALCA será absolutamente necessário promover a alteração substancial do Artigo 3 do Capitulo sobre Serviços, de modo a conciliar interesses preservando a independência e soberania do Brasil. Em termos específicos e tendo em vista que na hipótese de divergências futuras será fortíssima a pressão para o prevalecimento da ALCA, será indispensável assegurar expressamente às Partes o direito de celebração de acordos regionais, que possam prever a concessão de benefícios e privilégios recíprocos aos integrantes desses acordos sem a obrigação de estendê-los a todos os participantes da ALCA. Sem essa ressalva expressa o Capitulo sobre Serviços será inaceitável. 2. Atenção à falsa reciprocidade Em principio, as normas constantes do Capitulo sobre Serviços da ALCA deverão ser aplicadas de modo igual a todos os participantes de acordo. Na prática, entretanto, já existem elementos concretos que permitem concluir, com base em dados bem precisos, que em muitas situações não haverá reciprocidade. Esse risco, que poderá existir em relação a qualquer acordo, é muito maior e de conseqüências muito mais graves quando se tem uma proposta de extraordinária amplitude como é a da ALCA. Além disso, existe um fato concreto que não deve ser ignorado nem deve ser omitido pelo temor de ferir suscetibilidades: o proponente da ALCA será um parceiro muito mais forte que, além disso, tem dado mostras de que não se submete a regras jurídicas internacionais quando isso contraria seus interesses. Como se sabe, no ano de 2002 o Congresso dos Estados Unidos concedeu poderes ao presidente da República para realizar negociações e celebrar acordos comerciais sem a prévia aprovação do Legislativo. Entretanto, ao conceder tais poderes o Congresso fez uma ressalva muito importante, estabelecendo que tais poderes conferidos ao Presidente não autorizam a celebração de acordos que contrariem as salvaguardas dos interesses dos Estados Unidos, ou seja, as regras limitadoras da liberdade julgadas necessárias para a proteção dos interesses estadunidenses. Segundo foi ressaltado pela própria imprensa dos Estados Unidos, são mais de quinhentas salvaguardas, que incluem leis de imigração, cautelas fitosanitárias e outras alegações, sendo importante lembrar que as salvaguardas foram consideravelmente ampliadas pela obsessão ou pelo pretexto do combate ao terrorismo. Um fato muito ilustrativo das restrições que podem ser impostas nos Estados Unidos aconteceu no ano de 2002 e foi noticiada pelos jornais brasileiros, infelizmente de modo muito discreto e sem a indignação que deveria estar presente. Um eminente professor de medicina brasileiro, Professor Titular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, viajou para os Estados Unidos a fim de participar de um congresso científico. Ali chegando foi impedido de ingressar nos Estados Unidos e teve que regressar ao Brasil pelo simples fato de que seu nome revelava sua origem árabe. Esse caso retrata bem a extensão que pode ser dada às salvaguardas e a inutilidade dos acordos internacionais quando elas são invocadas. A propósito dessas salvaguardas vem, ainda, muito a propósito lembrar uma queixa dos advogados mexicanos, relacionada justamente com a área de Serviços. Nos quadros do acordo do NAFTA, ou seja, do acordo de livre comércio dos países da América do Norte, deverá haver ampla liberdade para o comércio dos serviços, inclusive na área jurídica. Valendo-se dessa abertura e para assessoramento de empresas dos Estados Unidos que atuam no México, já é bem grande o número de advogados estadunidenses prestando serviços no México, em caráter permanente, a empresas multinacionais que fizeram investimentos ou parcerias no território mexicano. Em termos de reciprocidade deveriam estar abertas as fronteiras dos Estados Unidos para os advogados mexicanos que desejassem transferir-se para aquele Pais, a fim de prestarem serviços em caráter permanente, como fazem no México muitos advogados vindos dos Estados Unidos. No entanto, com base numa das salvaguardas isso não vem acontecendo: embora o acordo do NAFTA não estabeleça restrições aos advogados mexicanos, estas vêm sendo impostas com base nas quotas de imigração. Esse exemplo é uma séria advertência, pois no momento da invocação da liberdade no comércio de Serviços e da reciprocidade nas relações internacionais poderão ser lembradas as numerosíssimas salvaguardas e o acordo só terá efetiva aplicação num dos sentidos. 2. Redução da soberania por via indireta Há alguns anos a Organização Mundial do Comércio vem pressionando os países-membros para que reduzam ou mesmo anulem a possibilidade de interferência do Poder Judiciário no mundo dos negócios. Quando o governo Fernando Henrique Cardoso, através do Ministério da Justiça, resolveu empenhar-se pela reforma do Judiciário não estava revelando qualquer preocupação com a proteção dos direitos dos brasileiros ou com o acesso das camadas mais pobres da população à proteção judicial. Na realidade, foi a partir de uma cartacircular da OMC que o processo foi desencadeado e somente não teve êxito porque, graças à vigilância de alguns brasileiros conhecedores do assunto, foi estimulada a participação ativa da comunidade jurídica na discussão do problema, com o que se evitou a redução da independência do Poder Judiciário, preconizada pela OMC. Existe, aliás, um antecedente, que remonta ao período da ditadura militar no Brasil., após 1964, especialmente à década de setenta. Naquele período foi fortemente estimulada, a partir do exterior e com participação ativa da equipe econômica do governo brasileiro, a obtenção de empréstimos externos, mediante o pagamento de juros altíssimos. Uma das particularidades dos contratos de empréstimo então celebrados era a fixação da competência de um tribunal de primeira instância dos Estados Unidos, para a decisão de dúvidas e conflitos suscitados por aqueles contratos, embora em muitos casos o próprio governo brasileiro participasse do contrato na condição de avalista. Isso era evidentemente inconstitucional, pois o Estado brasileiro não poderia ser réu perante um tribunal distrital de Nova York, por exemplo. Mais recentemente, já no governo Fernando Henrique, a ênfase passou para a arbitragem. Utilizando o argumento da lentidão dos tribunais, mas sem atacar as causas dessa lentidão e procurando disfarçar as restrições impostas ao Poder Judiciário, inclusive em termos da destinação insuficiente de recursos financeiros, o governo passou a dar grande ênfase à arbitragem. Com a colaboração de alguns juristas, que faziam restrições ao Poder Judiciário por vários motivos e que, a par disso, ficaram deslumbrados com a perspectiva de modernidade que aparentemente acompanhava a proposta da adoção ampla da arbitragem, passou-se a preconizar a substituição das decisões judiciais por soluções arbitrais. Apenas como informação, é interessante saber que o processo arbitral, descoberto agora por alguns juristas e tido como grande novidade, já estava expressamente previsto na primeira Constituição imperial brasileira, de 1824. Um dado bastante revelador, que é importante conhecer e que deve servir de advertência, é que o recurso à arbitragem, substituindo as decisões judiciais, tem grande ênfase no acordo do NAFTA. Se forem transpostas para a ALCA, no Capitulo de Serviços, as regras constantes do NAFTA, como vem sendo preconizado, uma das conseqüências será a submissão de órgãos públicos brasileiros a tribunais arbitrais, de natureza privada, instalados no Brasil ou no exterior. Essa opção pela arbitragem, com o afastamento do Poder Judiciário, seria duplamente inconstitucional no Brasil. Em primeiro lugar porque, como já foi amplamente ressaltado, a aceitação do Capitulo sobre Serviços da ALCA implicaria o estabelecimento de livre comércio sobre Serviços em áreas de relevante interesse público e, por isso mesmo, de responsabilidade de órgãos públicos. Na hipótese de dúvidas ou conflitos envolvendo tais prestações de serviços, órgãos públicos brasileiros poderiam ser obrigados a submeter-se à decisão de tribunais arbitrais privados nacionais ou estrangeiros, contrariando as disposições da Constituição brasileira que estabelecem as competências dos órgãos judiciários para o conhecimento de controvérsias que envolvam órgãos ou autoridades públicos. A submissão das controvérsias sobre Serviços a tribunais arbitrais, com afastamento do Poder Judiciário, seria inconstitucional por afrontar diretamente a disposição do inciso XXXV do artigo 5o. da Constituição, segundo o qual "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Ressalte-se, aliás, que nenhum Estado contemporâneo poderá ser considerado democrático se não der essa garantia aos seus cidadãos. E se nem o Congresso Nacional, por meio de lei, pode impedir o acesso ao Judiciário, com maior razão impõe-se o reconhecimento de que um acordo comercial não poderá chegar ao absurdo de pretender impedir o acesso ao Judiciário, anulando o primado da Constituição. 3. ALCA: submissão certa e vantagem ilusória Quando surgiu a proposta de criação da ALCA houve quem aderisse rapidamente, pensando exclusivamente nos resultados econômicos que poderiam ser obtidos com a abertura de acesso ao riquíssimo mercado consumidor dos Estados Unidos. Com o passar do tempo e o amadurecimento das discussões vários pontos negativos foram sendo lembrados e fatos significativos foram sendo revelados, verificando-se que, além de muitos obstáculos de natureza constitucional e legal, muitos problemas de ordem prática deveriam ser considerados. Um aspecto importante, envolvendo considerações de ordem econômica, é a existência das numerosíssimas salvaguardas que fazem dos Estados Unidos um dos campeões do protecionismo mundial. O Brasil mesmo já foi várias vezes a OMC tentando eliminar ou reduzir barreiras impostas pelos Estados Unidos às exportações brasileiras. A par disso, e em sentido contrário, é preciso ter em conta que a abertura ampla e incondicionada à presença de fornecedores e prestadores de serviços dos Estados Unidos poderá significar a sufocação de organizações e profissionais brasileiros, como já vem ocorrendo em outras partes do mundo. Um exemplo significativo dessa interferência altamente prejudicial vem ocorrendo na Espanha, um país de economia forte, e se refere à prestação de serviços na área da advocacia e consultoria jurídica. Aí está um fato contemporâneo, que merece séria reflexão. Nenhuma área de serviços estará isenta da possibilidade de ocorrência de fenômeno semelhante, que significa, praticamente, a anulação de um setor nacional de Serviços, com a criação de uma dependência que não será fácil anular e que, em muitas circunstâncias, sobretudo em países mais vulneráveis como o Brasil, poderá implicar, e certamente implicará, gravíssimos prejuízos de ordem social e cultural. A ânsia na busca de vantagens econômicas rápidas não deverá reduzir o espírito crítico, nem deverá obscurecer a percepção dos riscos e prejuízos que decorrerão das limitações à soberania nacional e da renúncia ao desenvolvimento humano e cultural com a defesa da supremacia dos valores fundamentais da nacionalidade. VI. Conclusão Como último ponto para reflexão, sobretudo para quem ainda se deixa levar pela perspectiva de crescimento junto com os Estados Unidos, é oportuno lembrar, uma vez mais, um dos muitos argumentos que têm sido invocados pelo ilustre embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, quando ressalta os inconvenientes da adesão do Brasil a ALCA e a falácia dos que dizem que sem essa adesão o Brasil não terá condições de acesso ao mercado estadunidense: Brasil e Estados Unidos têm muitos acordos bilaterais e isso deverá continuar existindo, pois interessa a ambas as partes. A diferença é que ao aderir a ALCA o Brasil terá um poder de negociação muito menor, pois se trata de um acordo multilateral, em que não é possível estabelecer condições especiais para contemplar prioritariamente os interesses de dois dos participantes. Isso poderá ser feito, e sempre foi feito, na realidade, nos acordos bilaterais, em que cada uma das partes procura a promoção e a defesa de seus interesses. Obviamente, nem aí se tem total segurança, com a certeza de que não haverá surpresas como a invocação das salvaguardas. Mas, sem dúvida alguma, os riscos serão menores e, por outro lado, será maior a possibilidade de resguardar a soberania brasileira. Não convém ao Brasil, nem seria possível, o isolamento do resto do mundo ou a obtenção de vantagens em acordos internacionais sem fazer qualquer concessão em beneficio das outras Partes contratantes. Mas a integração do Brasil na comunidade internacional deve ser feita com o resguardo dos interesses fundamentais do povo brasileiro, buscando-se a realização de transações e trocas de Serviços sem abandonar o espírito de solidariedade e a busca de promoção humana, devendo-se ter a constante preocupação de assegurar a participação de todos os brasileiros nos benefícios que puderem resultar das relações internacionais. Paris, 17 de Janeiro de 2003
https://www.alainet.org/de/node/106931
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