A crise atual no Brasil
- Opinión
Está em curso no Brasil uma crise conjuntural que se manifesta nos planos econômico, social e politico-institucional e que teve origem nas vicissitudes vivenciadas pelo programa neoliberal moderado a partir da crise econômica mundial. Sua faceta mais visível é a crise de legitimidade do governo Dilma Roussef e do PT; apesar dos outros partidos, mesmo os de oposição de direita, também apresentarem perda de legitimidade. No entanto, apesar do caráter integrado da atual crise, é importante frisar que ainda estamos longe de uma crise de hegemonia, pois a perspectiva política do grande capital, expressa no programa neoliberal, tem conseguido se impor, apesar da recessão econômica e do forte descontentamento popular com o neoliberalismo, capitalizando a adesão de setores sociais mobilizados pelo antipetismo, particularmente a classe média. Na verdade, o que ocorre é um processo de reacomodação na correlação de forças no interior do bloco no poder, com o fortalecimento das posições já hegemônicas do capital financeiro (portador de juros, melhor dizendo), em detrimento do capital produtivo (principalmente o industrial), e a imposição da perspectiva neoliberal extremada como programa de governo para o combate à crise. Tal processo se desdobra nos planos institucional e político-partidário, com o PT perdendo, e tendendo a perder ainda mais, a condição de fiador e principal operacionalizador politico da hegemonia burguesa. Se em 2001-2002 a crise do programa neoliberal extremado abriu caminho para a ascensão do neoliberalismo moderado, tudo indica que no momento estamos vivenciando o movimento inverso.
A crise (definitiva?) do programa neoliberal moderado aplicado pelos governos do PT desde 2003 é o resultado de seu próprio êxito. Isto porque ao garantir taxas de crescimento econômico significativas para padrões neoliberais, ampliar as políticas sociais compensatórias, trazendo uma pequena melhoria para os setores sociais mais empobrecidos e, em grande medida em conseqüência disto, passivizar o movimento dos trabalhadores e suas principais organizações políticas e sociais o neoliberalismo moderado dos governos petistas inviabilizou o desenvolvimento de um padrão de acumulação capitalista alternativo, não-neoliberal, capaz de reduzir a vulnerabilidade externa da economia brasileira, promover um processo consolidado de distribuição de renda, ampliar direitos sociais e fortalecer os setores da economia capazes de reduzir a dependência externa. Além disso, a ampliação das políticas sociais compensatórias e as medidas favoráveis aos setores mais pobres mostraram-se claramente insuficientes diante das novas perspectivas de renda, consumo e de acesso aos serviços sociais que suscitaram. A partir de 2007-2008 a crise econômica mundial deu início à eliminação progressiva das condições favoráveis à sua implementação, tornando cada vez mais evidente sua incapacidade em se manter como alternativa ao neoliberalismo extremado para as principais frações do capital.
Desde 2011, a piora nas condições externas levou o governo do PT, já na gestão Dilma Roussef, a combinar cada vez mais seu programa neoliberal moderado com medidas próprias do neoliberalismo extremado, como corte de gastos, aumento de juros, novas reformas neoliberais, etc. Esta postura do governo federal favoreceu um movimento de regressão política fazendo o eixo politico girar mais para a direita, com a intensificação da repressão e criminalização das lutas e movimentos sociais, a aprovação de novas reformas neoliberais, etc.(1). Tal “giro à direita” desencadeou um movimento de reforço jurídico e institucional da autocracia burguesa e manifestou-se em sua plenitude no avanço eleitoral das forças de direita e extrema direita nas eleições de 2014 e nas recentes manifestações contra o governo e pelo impeachment.
Diante deste quadro, a manutenção do programa neoliberal moderado tornou-se cada vez mais difícil, apesar do governo tentar retomá-lo com novos investimentos públicos em obras de infra-estrutura, pacotes de renúncia fiscal e ampliação dos recursos para as políticas sociais compensatórias, principalmente nos anos de 2013 e 2014; reeditando assim a tática adotada em 2008-2010 para evitar o agravamento da crise econômica. A eclosão dos protestos populares em 2013 obrigou o governo a optar por este caminho, em função do próprio desgaste do neoliberalismo como política de governo, sem, no entanto, evitar o agravamento da crise econômica, descontentando “gregos e troianos”.
De um lado, o descontentamento das classes burguesas com o programa neoliberal moderado adotado pelo PT acentuou-se nos últimos dois anos, levando até mesmo setores importantes das frações do grande capital mais beneficiadas por ele, como o capital industrial e o agronegócio, a uma postura de distanciamento em relação ao governo e à candidatura governista. Tal descontentamento se deveu a duas razões. Em primeiro lugar à crescente incapacidade deste programa em manter o ritmo de crescimento econômico com equilíbrio fiscal, além de determinadas políticas governamentais ferirem diretamente interesses bastante poderosos, como a melhoria da renda salarial, o fortalecimento dos bancos públicos e o barateamento do crédito. A redução da atividade econômica, a piora nas contas externas, o aumento da inflação e a tendência de déficit publico, além do avanço do processo de desindustrialização, ampliaram a audiência dos defensores do ajuste fiscal, do aumento da taxa de juros para conter a inflação e da redução do “custo Brasil” (leia-se, encargos sociais e trabalhistas e impostos) entre as frações burguesas, fortalecendo a perspectiva neoliberal extremada. Em termos gerais, diante da crise o grande capital aqui instalado acompanhou a posição dominante no cenário internacional: defender o corte de gastos públicos, a redução dos direitos sociais e trabalhistas e o favorecimento do rentismo, em suma, jogar o ônus da crise sobre as costas dos trabalhadores.
Em segundo lugar, o aumento significativo do número de greves nos últimos anos e os protestos e mobilizações de 2013 e 2014 evidenciaram a crescente incapacidade do governo petista e das forças políticas e sindicais a ele vinculadas (principalmente PT e CUT) de exercer uma função fundamental no apoio burguês à sua ascensão ao poder desde 2003, qual seja a de passivizar os trabalhadores e seus movimentos sociais. A ocorrência de inúmeras greves realizadas à revelia das direções sindicais e a hostilização do governo, do PT e da CUT nos protestos de 2013 e 2014, além da recusa à cooptação político-institucional por parte dos seus principais movimentos, trouxeram à superfície o esgarçamento do transformismo petista e as crescentes dificuldades de manutenção da “chantagem do mal menor”
De outro lado, os protestos populares iniciados em 2013 apresentaram uma perspectiva majoritariamente antineoliberal, apesar da presença crescente de forças políticas de direita que hoje funcionam como base de massa do neoliberalismo extremado. A perspectiva antineoliberal se manifestou na crítica às péssimas condições do transporte público, da saúde e da educação, na denúncia do uso de recursos públicos para a acumulação capitalista privada, enquanto que o discurso da direita privilegiou o antipetismo e o combate à corrupção. Anunciando uma polarização política que se manifestaria plenamente nas eleições presidenciais de 2014 e que se prorroga ainda hoje.
Diante disto, na campanha eleitoral de 2014, principalmente no segundo turno, o governo e o PT buscaram reeditar a chantagem do “mal menor” sobre os movimentos sociais e partidos de esquerda com vistas a enfrentar o avanço eleitoral das forças políticas de direita. Para tanto, a candidatura do governo petista criticou duramente o projeto neoliberal e se comprometeu com uma perspectiva neodesenvolvimentista como alternativa ao agravamento da crise econômica no segundo mandato de Dilma Roussef. Tal manobra política foi exitosa, garantindo a vitória da candidatura governista nas eleições presidenciais, apesar da pequena margem em relação à candidatura tucana. O apoio popular à candidatura governista, capaz de garantir-lhe a vitória eleitoral, expressou claramente a perspectiva de ultrapassagem do neoliberalismo moderado, apontando para o estabelecimento de novas bases políticas de sustentação do governo e de enfrentamento da crise.
No entanto, logo após o segundo turno prevaleceu a perspectiva de recomposição política com o grande capital, levando o governo petista a adotar um conjunto de medidas que negavam os compromissos de campanha (aumento dos juros, corte de direitos trabalhistas, cortes orçamentários, tarifaço nos combustíveis e na energia elétrica) e de compor o novo ministério com forças de direita, visando garantir a “governabilidade” e a formação de uma base política no Congresso Nacional. O governo e o PT apostam na transitoriedade desta situação, enxergando na segunda metade do mandato a possibilidade de ressurreição do neoliberalismo moderado e de reconstituição de suas bases de apoio. No entanto, esta possibilidade é bastante remota, em função da própria ausência de condições econômicas e políticas para tanto.
Tal atitude criou uma crise de legitimidade que está no centro da atual crise conjuntural, isolando o PT e o governo de sua tradicional base de apoio e tornando-o refém das pressões articuladas do grande capital, da grande mídia e das forças políticas de direita, mesmo daquelas consideradas “aliadas”. Na verdade o que há é a tentativa de diversos partidos e forças políticas de ocuparem o lugar do PT como principal operacionalizador politico da hegemonia burguesa. A pressão do PMDB no Congresso Nacional e em busca de mais espaço no governo Dilma e sua tentativa de se colocar como alternativa de governo no caso de um impeachment apenas expressa esta situação de forma mais evidente. O PSDB e seus aliados históricos (PFL-DEM e PPS) também tentam capitalizar política e eleitoralmente a mobilização em torno do antipetismo e contra o governo, colocando-se como opção preferencial do bloco no poder nas eleições de 2016 e de 2018, interrompendo assim o prolongado ciclo de derrotas eleitorais por que tem passado. Mesmo o PSB se movimenta para ocupar este espaço, apesar da derrota de 2014 e do processo de redefinição político-ideológica que vivencia atualmente.
A tática de manter o governo contra a parede visa abortar no nascedouro qualquer veleidade neodesenvolvimentista de sua parte, enfraquecer sua capacidade de contrapor-se à pauta política claramente conservadora que vem sendo encaminhada no Congresso Nacional (veja-se o veto ao fortalecimento político dos conselhos populares na definição das políticas públicas, a redução da maioridade penal, a desfiguração do estatuto do desarmamento e a própria lei da terceirização), em resposta à pressão dos movimentos sociais e colocar a esquerda e o movimento dos trabalhadores na defensiva. Aliás, indiretamente o antipetismo também afeta o conjunto da esquerda socialista, que adota uma postura de oposição desde o primeiro mandato de Lula, mas que também sofre os efeitos do anticomunismo e do conservadorismo político embutidos na ofensiva contra o governo e o PT. Além disso, ao mesmo tempo em que enfraquece os setores petistas do governo, inclusive a presidente da República, fortalece a direção política de forças e grupos não petistas e mesmo antipetistas representadas por Joaquim Levy, Michel Temer, Gilberto Kassab, que passam à condição de “fiadores” do governo.
Como admitem os quadros políticos mais lúcidos do grande capital, a tese do impeachment serve bem como ameaça e instrumento de chantagem, não como realidade fática, pois neste caso a administração da crise até o final do mandato ficaria sob exclusiva responsabilidade da direita que hoje fustiga o governo petista e o PT e os mantém como reféns. Um governo pós-Dilma seria dirigido pelo PMDB de Temer, Cunha e Renan com o provável apoio de setores do PSDB e do PFL-DEM, o que poderia significar um ônus demasiadamente pesado nas eleições de 2018 diante do messianismo lulista. Além disso, um processo de impeachment poderia suscitar a mobilização social e cimentar uma aliança do governo e do PT com os movimentos sociais e as forças de esquerda, instabilizando ainda mais a situação política. Nestas condições, é mais vantajoso manter o governo acuado, reverberando o máximo possível cada nova denúncia de corrupção, dificultando a aprovação das medidas que buscam recompor sua base social entre as classes trabalhadoras e impedindo que a pressão popular e dos movimentos sociais o faça mudar de rota; ao mesmo tempo em que a campanha de desconstrução do PT e da própria esquerda continua, procurando quebrar sua força política e eleitoral. As próprias iniciativas de diversas lideranças políticas para “baixar a fervura” indicam que este é o caminho preferencial para o grande capital e seus representantes políticos. No entanto, apesar de funcionar como uma referência decisiva, esta posição não impede de todo a promoção de “aventuras” por determinadas forças políticas motivadas por interesses partidários estritos (setores do PMDB e da oposição de direita), com o apoio de instituições importantes como o Congresso e o STF. Isto porque a própria crise de legitimidade pode evoluir para uma crise de governabilidade de conseqüências imprevisíveis, caso o governo não aplique o ajuste fiscal e as medidas neoliberal extremadas e/ou os trabalhadores e os movimentos sociais passem à ofensiva.
Na situação atual os trabalhadores poderão sofrer derrotas ainda maiores, a não ser que intensifiquem suas lutas e os movimentos sociais e a esquerda socialista recusem abertamente a “chantagem do mal menor” e qualquer veleidade de apoio a um governo neoliberal extremado, enfrentando abertamente esta política e construindo uma perspectiva de autonomia e independência. A proposta de constituição de uma frente contra o ataque aos direitos sociais e trabalhistas é uma iniciativa importante e deve ser apoiada sem vacilações. No entanto, é preciso ir além, é preciso fazer a crise conjuntural evoluir para uma crise de hegemonia.
- David Maciel é professor da UFG e do Comitê Editorial de marxismo21.
Agradeço a leitura atenta, as críticas e sugestões de Danilo Martuscelli e Walmir Barbosa; os equívocos que porventura este artigo possua são de inteira responsabilidade do autor.
1) MACIEL, David. De Lula à Dilma Rousseff: crise econômica, hegemonia neoliberal e regressão política, in: http://marxismo21.org/wp-content/uploads/2013/06/D-Maciel-2.pdf
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