O desmonte das políticas sociais, emancipatórias e culturais
- Opinión
Na última semana, entre os dias 15 e 16 de junho, a Fundação Perseu Abramo (FPA) reuniu gestores dos governos do PT, lideranças sociais e partidárias, economistas e especialistas para debater “O Brasil do Golpe: o Plano Temer sob análise”.
Na primeira mesa do seminário, três ex-ministros dos governos Dilma e Lula - Nilma Lino Gomes (Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos), Juca Ferreira (Cultura) e Márcia Helena Carvalho Lopes (Desenvolvimento Social e Combate à Fome) - denunciaram o desmonte de suas respectivas áreas, dimensionando o retrocesso em curso, hoje, no país.
Ministra da pasta de Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, durante o governo Dilma, Nilma Gomes sintetizou as concepções do governo interino – e ilegítimo - de Michel Temer, que giram em torno de “um mundo gerido pela economia de mercado; da criminalização da luta e dos movimentos sociais; da aversão à diversidade e de uma concepção homogeneizadora de sociedade, das políticas sociais e dos sujeitos dessa política.
Ela destacou, ainda, “a concepção patriarcal, misógina, racista LGBT-fóbica e fundamentalista de sociedade, de mundo e de ser humano”, apontando que o Plano Temer visa atingir “não só os governos progressistas ou partidos de esquerda”, mas “as políticas públicas de caráter emancipatório e os sujeitos dessas políticas”.
Debatendo o peso da “herança colonial, patriarcal e escravista” no golpe e no país, ela avaliou o retrocesso em curso, citando, por exemplo, a reforma ministerial que levou à fusão e extinção de pastas como os ministérios das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude, Direitos Humanos e Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
Ministérios, apontou, que “garantiam políticas estratégicas e que representavam a “marca identitária do PT e da esquerda brasileira”.
Ressaltando a “associação entre o discurso econômico atrelado à visão fundamentalista que serve, abertamente, as agências internacionais”, ela alertou também para “o desmonte de um estado democrático de direito com a implantação de um Estado cada vez mais autoritário que se pretende centralizador”.
Imaginário colonial
Ao avaliar a “tensão entre as forças emancipatórias e conservadoras” que marcam a história do país, a ex-ministra também apontou a necessidade de autocrítica dos governos petistas: “esse imaginário colonial e suas práticas se alimentam de lacunas e brechas que nós deixamos”.
Citou, ainda, várias propostas e projetos de lei que reforçam esse imaginário e ameaçam cercear direitos humanos e sociais no país, por exemplo, a redução da maioridade penal; a PEC 215 sobre a demarcação de terras indígenas e quilombolas; o PL 5069, de 2013, que dificulta o atendimento da saúde às mulheres vítimas de estupro; a revogação do estatuto do desarmamento; o novo código de mineração; e o Estatuto da Família que traz uma definição conservadora de família.
“Está em curso, a retirada de expressão população negra do Estatuto da Igualdade Racial” e “a transformação da Lei 12.711, sobre as cotas sócio raciais nas universidades”, alertou.
“Nós estamos diante de um golpe que não é só parlamentar ou só midiático, mas um golpe de classe, de raça e de gênero”, concluiu Nilma Gomes, analisando a imagem da equipe ministerial estampada nos jornais: “todos homens, todos brancos, mais ou menos da mesma geração, com uma sinalização heteronormativa, vários latifundiários, e a grande maioria com processos no Judiciário e alguns envolvidos na Lava-Jato”
“Retrocesso é uma realidade”
Em sua análise, o ex-ministro Juca Ferreira (MinC) destacou uma contradição central no atual governo interino (e ilegítimo): ao mesmo tempo em que ele precisa “adquirir características de legalidade”, deve “sustentar os lobbies que deram sustentação ao processo golpista, alimentando demandas das mais caricaturais possíveis”. Resultado: “anunciam de manhã uma medida e, de noite, eles voltam atrás. Movimentos pendulares estão acontecendo o tempo inteiro”.
Destacando que “o retrocesso é uma realidade”, Juca Ferreira ponderou que, caso permaneçam até 2018, os golpistas “vão precisar colocar esse programa perverso nas ruas” e, para tal, “a repressão aos movimentos sociais e a restrição da liberdade de expressão serão incorporadas”.
Em sua avaliação, “a base social que experimentou essa possibilidade de se pensar o futuro, de enfrentar as mazelas, vai resistir organizada ou desorganizadamente. Nós teremos um nível de instabilidade onde a repressão e a força terá de fazer parte com um nível de presença muito mais forte do que neste primeiro momento de um golpe”.
O ex-ministro, também apontou erros do partido e do governo, seja “ausência de atitude, insuficiência conceitual ou mimetização da política tradicional”. O fato, alertou, é que “quando a esquerda se comporta como a direita, quem ganha é a direita”.
“Não podíamos ter chegado tão perto nesse processo de mimetização, pelo contrário, deveríamos ter sido o instrumento social de superação dessas deficiências da democracia brasileira. Isso nos tirou parte da legitimidade e da confiança da sociedade”, afirmou.
Cultura e Resistência
Mencionando a resistência ao golpe, Juca afirmou que está acontecendo um amplo processo de reconstituição e ampliação do apoio na sociedade. Uma reação frente ao projeto “antissocial, antisustentabilidade, antidemocrático e antisoberania da sociedade brasileira”, explicitado pelos golpistas.
Segundo o ex-ministro, a partir dessa reação se abre a “possibilidade da retomada da disputa política, inclusive, com condições de se construir uma nova hegemonia política”.
Ele também analisou o papel estratégico da cultura no país. Em sua avaliação, “a fragilidade cultural do país é tão grande que dificulta a convivência democrática sólida, a aceitação do diferente, a superação dessas mazelas oriundas da escravidão”. Parte da “confusão” que aconteceu na sociedade e da “facilidade de manipulação pela grande mídia e pela direita advêm de debilidades culturais”.
Em sua avaliação, o processo de ascensão social, ocorrido nos últimos anos, não foi capitalizado de forma correta, justamente, “por falta de um processo político, cultural e educativo capazes de explicar à sociedade o que estava sendo vivido e que se tratava de luta de classes e de um processo político de enfrentamento de privilégios e desigualdades estruturais”.
Ele destacou, ainda, a subestimação dos governos petistas “da construção de um processo de política de Estado para alargar o desenvolvimento cultural da nossa sociedade”. Um desenvolvimento que, em última instância, “trata-se da capacidade de ver e compreender o mundo, de forma positiva, desenvolver a capacidade crítica”.
Para eles, o Estado é pasto
Entre os vários exemplos do desmonte da cultura no país – além da própria tentativa de extinção do MinC – o ex-ministro denunciou o ataque contra o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a política de patrimônio do Brasil, “uma das mais desenvolvidas no mundo”.
“Estão criando uma Secretaria do Patrimônio dentro da estrutura central do Ministério, um órgão para concorrer com o IPHAN, para reduzir sua capacidade técnica e de intervenção, no sentido da preservação no confronto com a especulação imobiliária e outras atividades. Vão monetarizar o nosso patrimônio rapidamente, porque essa é uma das áreas de expansão urbana”, denunciou.
“Nem a ditadura teve coragem de bulir com isso. Em alguns aspectos eles são mais reacionários do que a ditadura militar. Para eles, o Estado é pasto para atender a demanda dos lobbies, dos três “bês” (bancadas da bala, da Bíblia e do boi), e de outros lobbies igualmente medíocres”, apontou.
O enfrentamento na área cultura será decisivo, segundo o ex-ministro. Neste momento as debilidades, também, vão aparecer. “Faltou consciência da nossa família política de que essa era uma área estratégica para a firmação de um projeto político que estava em disputa e responsável pelo governo”, concluiu.
Direitos sociais sob grave ameaça
As políticas sociais estão com os dias contatos. A avaliação é da ex-ministra Márcia Helena Carvalho Lopes (Desenvolvimento Social e Combate à Fome) que, em sua participação no debate, ressaltou o contraponto das ações, programas e sistemas construídos pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) frente aos interesses dos conservadores e grupos econômicos que “insistem em fragmentar o econômico e o social no país”.
Ressaltando que as necessidades dos mais pobres sempre foram tratadas fora do contexto da organização do Estado – “o que era destinado à grande massa era visto como um campo à parte das políticas públicas” – Márcia Helena relembrou como as políticas sociais eram tratadas nos anos FHC.
“O governo anterior fez o programa Comunidade Solidária que sabemos o que significou”. Hoje entre os que ocupam o Ministério estão muitos que participaram do programa tucano, quando “a pobreza era administrada com fins absolutamente aleatórios, jamais com estrutura, sistema público e perspectiva de universalização e de respeito às instancias federativas e aos órgãos de controle social”.
“Chegava em dezembro, os prefeitos tinham que devolver os recursos para o Governo Federal, sem saber o que ia acontecer com as crianças, as famílias, os idosos, as comunidades ribeirinhas, quilombolas...”, lembrou a ex-ministra.
Uma realidade alterada a partir de 2003, quando o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) passou a construir uma estrutura de política de estado no setor. Este processo começou com a 4ª. Conferência Nacional de Assistência Social e a reinstalação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA).
“Nestes dois grandes Conselhos, começou um novo pacto de gestão com os estados e municípios”, destacou.
Ela também comentou a importância do Cadastro Único, uma “gambiarra” nos governos tucanos que, ao longo dos governos petistas, transformou-se em um reconhecido sistema de planejamento e de “fotografia” das reais condições sociais do país, reunindo dados sobre 26 milhões de brasileiros.
“Essa tecnologia está sendo exportada para o mundo, é uma das grandes demandas que os países trazem para nós, porque diz respeito à vida da população em todas as áreas, quem são as mulheres, quem são os quilombolas, indígenas, crianças, idosos, pessoas com deficiência”, afirmou Márcia Helena.
Ela também citou os números do investimento federal no MDS durante os governos petistas. De R$ 8 bilhões iniciais, o orçamento chegou a R$ 42 bilhões em 2010 e a R$ 84 bilhões no governo Dilma atual. “Tratam-se de recursos federais transferidos para os fundos municipais de assistência social, para as prefeituras, para as entidades, para a grande rede de assistência social e de segurança alimentar e nutricional”.
A partir desses recursos, o Bolsa Família (BF), por exemplo, pode contemplar 13 milhões de famílias; e o benefício de prestação continuada, atender 4,5 milhões de idosos e pessoas com deficiência, que contam com o reforço de um salário mínimo na luta pela sobrevivência.
Ambos os programas estão sob ameaça.
“O primeiro discurso do novo ministro foi dizer que o BF é bom, importante, mas há muitas distorções” e “nós vamos mudar isso”. Recentemente o MDS passou um recado aos gestores municipais: “quanto mais pobres forem tirados do cadastro, quanto mais famílias saírem do programa, mais recurso o município vai receber”.
Lamentando o desmonte, ela destacou que o programa é, hoje, mundialmente reconhecido pela sua estrutura, consistência e poder tripartite (governo federal, estadual e municipal) - “cada prefeito assina a responsabilidade civil pelo programa no seu município”.
Márcia Helena também alertou para a grave transferência do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) para a área da Presidência, comentando as óbvias intenções da medida: “há uma força propulsora da sociedade, seja o MST, os movimentos, a articulação do semiárido, a Liga Camponesa. Todos os grandes movimentos de trabalhadores estão engajados ou no MDA, ou no MDS, ou na área de Segurança Alimentar que, também, está sendo desmantelada”.
Já sobre a Previdência Social, denunciou a apropriação, pelo Estado e pela Fazenda dos recursos da previdência, das contribuições dos empregados e empregadores, como se elas fossem uma receita do Estado”.
Segundo Márcia Helena, há o retrocesso na área social pode chegar aos níveis dos anos anteriores a 2003. “Há um desmonte do sistema de proteção social do Brasil. Um desmonte absolutamente incompatível com a legislação, com a estrutura do Estado e com a Constituição”, afirmou.
E complementou: “se querem mudança na estrutura, esse deve ser um debate amplo, coletivo, de toda a sociedade brasileira; e não de meia dúzia de pessoas que chegam sem o menor critério e sem a menor responsabilidade”.
Cliquem aqui e confiram a íntegra do debate “O Brasil do Golpe: o Plano Temer sob análise”.
Créditos da foto: Lula Marques
20/06/2016
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