Acesso às redes, direitos e desenvolvimento sustentável

01/06/2017
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
desc_-_uruguaygalicia.org_.jpg
-A +A
Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 521: Internet y derechos económicos, sociales y culturales 10/02/2017

Os direitos humanos são cruciais para o desenvolvimento. A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável imagina “um mundo em que seja universal o respeito aos direitos humanos e à dignidade das pessoas, ao estado de direito, à justiça, à igualdade e à não discriminação; onde se respeitem as raças, a origem étnica e a diversidade cultural e exista igualdade de oportunidades para que o potencial humano seja plenamente realizado e para contribuir com uma prosperidade compartilhada... um mundo justo, igualitário, tolerante, aberto e socialmente inclusivo, em que as necessidades dos mais vulneráveis sejam atendidas.”

 

Os direitos humanos são definidos em uma série de instrumentos internacionais, dentre os quais o mais importante é a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)[1]. Os compromissos dos governos em relação aos direitos incluídos na DUDH estão formalizados no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP)[2] no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC)[3]. Os governos devem evitar violar estes direitos e são responsáveis por habilitar os cidadãos a desfrutar deles[4].

 

O PIDCP abrange os direitos individuais, incluindo a liberdade de expressão e associação, e o direito à privacidade. O PIDESC se ocupa de direitos sociais mais amplos, cuja satisfação requer dos governos um compromisso com políticas e investimento a longo prazo – um processo chamado “realização progressiva”. Além de afirmar a autodeterminação e a igualdade de gênero, as principais cláusulas do Pacto têm a ver com o direito ao trabalho, condições de trabalho e direitos sindicais, direito à previdência social e a um “padrão adequado de vida”, a não passar fome, à proteção da família, à saúde e à educação e a participar da vida cultural, incluindo os “benefícios do avanço científico e suas aplicações”. Alguns destes direitos concernentes a crianças e mulheres se desenvolvem mais detalhadamente na CEDAW e CRC.

 

A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável[5] inclui 17 Objetivos (ODS) e 169 metas. Os direitos incluídos no PIDESC vão além e oferecem um marco de apoio e referência para muitos destes ODS, enquanto as metas estabelecem objetivos quantificáveis, que ajudarão no cumprimento destes direitos. Por exemplo, os objetivos para acabar com a pobreza e a fome (ODS 1 e 2) e para garantir o acesso à água e à energia (ODS 6 e 7) se relacionam ao direito a um adequado padrão de vida e alimentação, presente no Pacto. Os ODS 3 e 4 estão ligados aos direitos à saúde e à educação e o ODS 8 ao “trabalho decente para todos”.

 

Muito se discutiu sobre a relação entre as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) e o desenvolvimento sustentável, incluindo os ODS. Como diversas outras organizações, a Associação para o Progresso das Comunicações (APC) expressou sua preocupação a respeito da forma limitada como é reconhecido o potencial das TICs e da internet na Agenda 2013 e seus objetivos.

 

A Agenda reconhece que “a expansão das tecnologias da informação e comunicação e a interconexão mundial trazem grandes possibilidades para acelerar o progresso humano, superar a desigualdade digital e desenvolver as sociedades do conhecimento”. Mas não existe nenhum objetivo relacionado especificamente às TICs, e apenas uma das 169 metas se relaciona ao acesso às TICs, embora as mencione em outras três (sobre empoderamento das mulheres, educação e pesquisa e desenvolvimento).

 

Observamos que há um reconhecimento muito maior na Agenda do valor do acesso à informação – tanto a informação que permita às pessoas tomarem decisões sobre sua vida, como a que possibilita àqueles que determinam as políticas tratar mais efetivamente o desenvolvimento econômico, social e cultural. Entretanto, os papéis transversais, tanto da informação como da comunicação, encontram-se pouco representados no marco geral.

 

Os resultados do processo de revisão de dez anos de contribuições da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI+10) da ONU mostravam a urgência das partes interessadas construírem uma relação mais efetiva entre as TICs e os ODS. A APC acredita que há três aspectos importantes a considerar a este respeito, cada um dos quais é crucial para acessar e exercer os direitos econômicos, sociais e culturais:

 

• Com as TICs, estão mudando as maneiras como os governos, as empresas e os cidadãos se comportam. Os governos e outras partes interessadas devem compreender estas mudanças, aproveitar aquelas que trazem novas oportunidades para cumprir os ODS e permanecer atentos para reduzir os riscos que possam destruir os objetivos.

 

• As políticas e programas de desenvolvimento podem aproveitar o potencial das TICs para implementar os ODS de muitas maneiras: desde reunir evidências para elaborar e implementar projetos de desenvolvimento, até facilitar o acesso à informação. Os governos e outras partes interessadas deveriam aproveitar plenamente estas vantagens para apoiar o cumprimento de cada um dos ODS.

 

• As TICs podem melhorar o monitoramento e a medição do progresso dos ODS. Os governos e outras partes interessadas de veriam aproveitar isto ao máximo, para melhorar a eficácia da implementação dos ODS, ao mesmo tempo que se protegem os direitos à privacidade e à informação.

 

Uma forma de reunir estes temas é colocar a relação entre as TICs e os ODS no marco dos direitos econômicos, sociais e culturais estabelecidos no PIDESC.

 

A revisão da CMSI+10 declarou que os direitos humanos são “centrais na visão da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação”. A Assembleia Geral também declarou que “os mesmos direitos que as pessoas têm na sociedade devem ser garantidos no mundo virtual”, o que implica que os direitos na rede e fora dela devem ser equivalentes.

 

A maior parte do debate sobre as TICs, a internet e os direitos humanos centrou-se nos direitos civis e políticos. A internet, em particular, abriu novas oportunidades para as pessoas exercerem a liberdade de expressão e publicarem suas opiniões, acessarem a informação, associarem-se entre si on-line e no mundo fora da rede, e participar em atividades sociais e políticas. Ao mesmo tempo, criou novas ameaças à privacidade, exercidas tanto pelos governos como pelas empresas, e mudou as maneiras como os direitos à informação e à expressão podem ser cumpridos ou violados.[6]

 

Prestou-se muito menos atenção ao impacto das TICs e da internet nos direitos econômicos, sociais e culturais (DESC). No entanto, estes são tão importantes no regime internacional de direitos como os direitos civis e políticos. As TICs e a internet desempenham um papel cada vez mais importante em todos os aspectos da vida econômica, social e cultural. E sua relevância nestes âmbitos está crescendo a cada ano, à medida que as TICs e a internet estão mais presentes no mundo, e que os serviços, os aplicativos e os dispositivos que as pessoas utilizam se tornam cada vez mais sofisticados. A iminente Internet das Coisas trará um crescimento veloz à sua onipresença, sofisticação e influência.

 

Conectando TICs, ODS e DESC

 

Os direitos econômicos, sociais e culturais são fundamentais para o desenvolvimento. De vem ser protegidos e promovidos, devido ao impacto que a educação, a saúde, o emprego e as outras dimensões da vida incluídas neles têm sobre os indivíduos e as comunidades. Estes direitos apoiam e são apoiados pelos direitos civis e políticos, mas não estão subordina dos a eles.

 

A maioria dos direitos no PIDESC requer investimento e compromisso político sustentados ao longo do tempo. Consequentemente, sua aplicação está estreitamente relacionada aos marcos estratégicos para o desenvolvimento, a mobilização de recursos e o desdobramento de infraestruturas, adotados pelos governos e respaldados por organismos financeiros e de desenvolvimento internacionais.

 

Os ODS oferecem um marco adequado para advogar e aplicar os direitos econômicos, sociais e culturais dentro de um enfoque global do desenvolvimento sustentável que melhora a prosperidade econômica, promove a igualdade social e facilita a expressão da identidade cultural. Embora os DESC se expressem em termos gerais como princípios, os ODS também oferecem um marco de metas, que poderiam ser consideradas para estabelecer objetivos de direitos e/ou contra os quais se podem medir os avanços em direção à sua realização.

 

Os parágrafos seguintes desenvolvem três aspectos importantes da relação entre as TICs, os DESC e os ODS.

 

A adoção das metas ODS relacionadas aos DESC

 

O primeiro se refere à forma como os ODS proporcionaram objetivos específicos, mediante os quais é possível monitorar e medir o progresso em direção a alguns DESC. A saúde é um bom exemplo. O artigo 12 do PIDESC reconhece o direito de todos a “desfrutar do mais alto nível possível de saúde física e mental”, esforços para reduzir a mortalidade infantil, prevenir enfermidades e melhorar a higiene. O ODS 3 estabelece metas específicas para a redução da mortalidade materna e infantil, da mortalidade por doenças epidêmicas e não transmissíveis e outros objetivos relacionados à saúde.

 

Outros DESC também se traduzem em objetivos específicos nos ODS. As TICs são importantes neste contexto de duas formas. Em primeiro lugar, podem ser utilizadas para melhorar o acesso e a difusão dos direitos e objetivos, tais como os relativos à saúde e à educação, por exemplo, mediante a promoção da saúde e o diagnóstico a distância, e por meio de recursos educacionais abertos e o acesso a computadores em escolas. Em segundo lugar, as TICs podem melhorar a qualidade da compilação e a análise de dados, com os quais se pode medir com maior eficácia o progresso, tanto no que diz respeito aos direitos como aos ODS.

 

A importância do acesso às TICs para alcançar os DESC e ODS

 

O acesso à internet e a outras TICs é crucial para desempenhar estas funções. O PIDCP outorga às pessoas o direito a “receber e transmitir informação e ideias de todo tipo”. Esse direito respalda a capacidade dos cidadãos para aproveitar os recursos que a internet pode colocar à disposição para melhorar sua saúde e educação, previdência social e qualidade de vida – direitos econômicos, sociais e culturais que estão incluídos no PIDESC. O PIDESC outorga às pessoas o direito a “gozar dos benefícios do progresso científico e suas aplicações”, que deveria incluir os benefícios do acesso à infraestrutura e aos serviços de telecomunicações que dão suporte à internet. O acesso a essas redes e serviços pode, por tanto, ser considerado necessário dentro do regime de direitos.

 

Entretanto, além do acesso, os governos e outras partes interessadas devem usar o potencial das TICs para avançar nos ODS que facilitam os DESC. É importante atingir uma conectividade generalizada, para que os governos e outras partes interessadas possam prestar serviços iguais a todos os cidadãos. E os próprios cidadãos precisam de acesso para aproveitar as oportunidades de autoempoderamento necessárias tanto para os direitos como para as metas. O acesso, neste contexto, vai muito além da conectividade generalizada. Também requer que as redes sejam acessíveis e que as pessoas tenham a capa cidade de fazer pleno uso dos recursos que põem à disposição, incluídas habilidades de alfabetização, pesquisa e destrezas técnicas. Alcançar os DESC na sociedade da informação requer que os formuladores de políticas abordem todos estes requisitos.

 

A complexa relação das TICs com os DESC

 

As TICs podem ter impactos negativos e positivos tanto nos direitos como nos objetivos de desenvolvimento. A ameaça que as TICs supõem à privacidade (artigo 17 do PIDCP) é bem conhecida. O Banco Mundial argumentou recentemente que “em muitos países a internet beneficiou desproporcionalmente as elites políticas”[7]. Embora as TICs possam apoiar o cumprimento dos DESC, esses mesmos direitos também podem necessitar de novos tipos de proteção.

 

Os direitos trabalhistas estabelecidos no PIDESC exemplificam este desafio. O artigo 6 do Pacto reconhece “o direito ao trabalho”, incluindo o “direito de toda pessoa a ter a oportunidade de ganhar a vida com um trabalho livremente escolhido ou aceito”, enquanto o artigo 7 agrega “o direito de todas as pessoas a condições de trabalho igualitárias e satisfatórias”, incluindo uma remuneração justa, proteção à saúde e segurança e igualdade de oportunidades. O artigo 8 outorga uma forte proteção aos sindicatos. O ODS 8, de forma similar, demanda o “emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todas as mulheres e homens”, e para a proteção dos direitos trabalhistas em “um entorno de trabalho seguro e sem riscos”[8].

 

Entretanto, há uma preocupação crescente de que a digitalização cada vez maior das economias reduza oportunidades de emprego, enquanto os regimes de emprego mais flexíveis nas novas empresas digitais (a chamada “economia gig”) reduz a sua qualidade, a remuneração e a afiliação sindical. Necessita-se muito mais pesquisa e análise para identificar como se podem manter os direitos e alcançar os objetivos de desenvolvimento em um entorno trabalhista que se transforma rapidamente.

 

O que é preciso fazer?

 

A sociedade da informação oferece oportunidades para ajudar a concretizar os direitos econômicos, sociais e culturais e seus ODS correspondentes, de uma maneira que antes não era possível, mas ao mesmo tempo tem o potencial de ameaçar estes direitos. O acesso desigual às TICs oferece o risco de que o acesso aos direitos e aos resultados do desenvolvimento também se tornem desiguais, minem a conquista de uma maior igualdade, crucial para o desenvolvimento sustentável. As partes interessadas do setor das TICs devem maximizar o valor potencial destas tecnologias para o desenvolvimento e os direitos, mas também buscar mitigar os problemas.

 

Algumas das conquistas em matéria de direitos e metas derivados das TICs estão estreitamente relacionadas aos direitos civis e políticos. Por exemplo, permitem um maior acesso à informação em áreas como a saúde, a educação e a agricultura, que os indivíduos – assim como os profissionais – podem utilizar para tomar decisões que melhorem suas vidas e seus entornos. A interatividade que as tecnologias facilitam permite às pessoas compartilhar experiências, conhecimentos e preocupações em grupos, assim como entre indivíduos, fomentando os tipos de solidariedade em que se baseia o sindicalismo e a ação comunitária. Em áreas como saúde e educação, a produção de alimentos e o emprego, o bem-estar social e a família, um melhor acesso à informação e a outras experiências pode ser fundamental para conseguir satisfazer os direitos econômicos, sociais e culturais, assim como os civis e políticos.

 

Estes fatores ilustram até que ponto os direitos civis e políticos estão vinculados aos direitos econômicos, sociais e culturais. Estes últimos, no entanto, se distinguem em aspectos significativos. A necessidade de investimento e a realização progressiva dos DESC requerem um enfoque estratégico e integrado, coerente com as agendas de desenvolvimento que agora estão sendo desenhadas para implementar os ODS. A presença limitada das TICs dentro dos ODS, e portanto nessas agendas, pode ser um problema. As TICs e a internet poderiam ter um impacto muito mais importante na implementação dos ODS do que se havia pensado. Também devem estar mais profundamente integradas nas estratégias de sustentabilidade.

 

Um elemento crucial é a necessidade de um maior diálogo e entendimento entre os atores envolvidos nas três áreas discutidas neste artigo: as TICs, os direitos e o desenvolvimento sustentável. Os enfoques multissetoriais, que se tornaram mais comuns nos últimos anos nos três campos, poderiam ajudar a estimular este diálogo. Também o desenvolvimento de marcos analíticos para monitorar o progresso em direção aos ODS. Os governos e as agências de desenvolvimento poderiam e deveriam fazer mais para envolver a ampla gama de partes interessadas dentro das comunidades em processos de governança transparentes, responsáveis e com os recursos adequados. Os atores da sociedade civil podem apoiar este processo, ao continuarem enfatizando a associação entre os direitos e o desenvolvimento, em busca de prosperidade econômica, igualdade social e sustentabilidade ambiental.

 

 

David Souter escreve em um blog semanal para APC (em inglês) www.apc.org/node/22140

 

 

 

[4] Outros instrumentos cruciais têm a ver com os direitos das mulheres (Convenção para a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, CEDAW – http://www.un.org/womenwatch/daw/cedaw/text/sconvention.htm); das crianças (Convenção sobre os direitos da criança, CRC – http://www.ohchr.org/SP/ProfessionalInterest/Pages/CRC.aspx) e com a discriminação racial (Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, ICERD – http://www.ohchr.org/SP/ProfessionalInterest/Pages/CERD.aspx).

[6] Mais detalhes em Souter, D. (2012). Human Rights and the Internet: A review of perceptions in human rights organisations. APC. https://www.apc.org/en/system/files/HumanRightsAndTheInternet_20120627.pdf

[7] World Bank. 2016). World Development Report 2016: Digital Dividends. http://bit.ly/1ROyaSA

[8] ODS 8, metas 8.5 y 8.8

https://www.alainet.org/de/node/185873

Publicado en Revista: Internet y derechos económicos, sociales y culturales

521thumb.png
America Latina en Movimiento - RSS abonnieren